quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

"O antropólogo é um especialista em generalidades"

Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1991.



Leia na íntegra a entrevista realizada por Flávio de Almeida com Eduardo Viveiros de Castro, publicada no Boletim Informativo da UFMG (Nº 1483 - Ano 31 - 12.5.2005):


Convidado para ocupar a cátedra de Humanidades do IEAT, o professor Eduardo Viveiros de Castro diz, nesta entrevista ao BOLETIM, que a Antropologia é uma atividade essencialmente transdisciplinar, porque trabalha com "sociedades generalizadas, onde a prática social e cognitiva não se compartimentaliza em domínios de autoridade, atividade ou saber".

Viveiros discute a distinção entre o pensamento científico, associado à sociedade ocidental, e o selvagem, relacionado aos povos indígenas. "O pensamento ocidental é apenas uma entre outras técnicas de domesticação do pensamento selvagem, ainda que seja a mais poderosa e de efeitos empíricos mais espetaculares".


Viveiros de Castro: só há pensamento selvagem
Foto: Divulgação


O senhor foi convidado a estrear uma cátedra na UFMG destinada aos estudos transdisciplinares. Como a questão da transdisciplinaridade está presente em suas pesquisas?

A Antropologia é uma prática essencialmente transdisciplinar, pois seu objeto típico é aquilo que Marcel Mauss chamava de "fatos sociais totais", complexos multidimensionais de ações, crenças e instituições que são, ao mesmo tempo, econômicos, psicológicos, políticos, sociais, estéticos, tecnológicos e assim por diante. Os antropólogos, sobretudo os que fazem pesquisas de campo de longa duração em sociedades pequenas, como as atuais sociedades indígenas no Brasil, são "obrigados", por assim dizer, a levar em conta todas as dimensões da vida humana nestas sociedades: da ecologia à cosmologia, das técnicas de caça à arte verbal, da biologia humana à teoria política. O antropólogo não deixa de ser um especialista em generalidades, na medida em que sua especialidade, por excelência, são sociedades generalizadas, onde a prática social e cognitiva não se compartimentaliza em domínios de autoridade, atividade ou saber.

Sempre houve uma oposição entre o "pensamento indígena" ou "selvagem" e a chamada sociedade civilizada. Como o senhor trabalha essa oposição? Essas duas instâncias do saber são assim tão antagônicas ou é possível, em algum momento, convergi-las?

Em primeiro lugar, o "pensamento (em estado) selvagem", nos termos em que a expressão foi cunhada e usada por Lévi-Strauss, está presente exatamente do mesmo modo nas sociedades indígenas e nas sociedades ditas civilizadas. É uma dimensão de todo pensamento humano, apenas distintamente "administrado", digamos assim, em diferentes regimes sociopolíticos. No caso do ocidente moderno, por exemplo, Lévi-Strauss argumenta que o pensamento selvagem "oficial" está principalmente confinado ao domínio da arte. Ao contrário, nos mundos indígenas americanos, como em tantos outros mundos humanos do planeta, esse estilo cognitivo e conceitual subjaz a todas _ ou a quase todas _ dimensões da prática humana.

Em segundo lugar, é preciso levar em conta que, em certo sentido, só há pensamento selvagem: o pensamento técnico-científico é uma transformação ou diferenciação específica do pensamento humano genérico, que é sempre "selvagem". Não pode haver antagonismo entre espécie e gênero. Em terceiro lugar, todo pensamento humano culturalmente encarnado, na medida em que se apresenta como fruto de uma história, é resultado de tecnologias cognitivas e outras de "domesticação". O pensamento tecno-científico ocidental é, no meu entender, apenas uma entre outras técnicas de domesticação do pensamento selvagem, ainda que seja a mais poderosa e de efeitos empíricos mais espetaculares.

Existem na sociedade moderna espaços para a expressão e/ou tradução do pensamento indígena?

Existem. Mas primeiro é preciso que os brasileiros não-índios comecem a reconhecer integralmente a existência dos índios. Este é um país indígena, com centenas de línguas nativas faladas em seu território, com uma porção enorme de sua população com raízes étnico-culturais diretamente indígenas. A impressão que tenho é que as pessoas sabem muito mais os nomes dos atores de Hollywood, ou das bandas de rock, que das mais de 200 sociedades indígenas que compartilham o território conosco.

Nada contra as bandas de rock. Mas é preciso que a cultura brasileira assuma, em todas as suas conseqüências, que as culturas indígenas são das partes mais ricas e originais de qualquer herança cultural que o Brasil pode legar ao patrimônio da humanidade. A arte e a filosofia praticadas no país ainda precisam saber ouvir e falar com esse pensamento não-europeu que nos envolve no Brasil.

Há no Brasil _ ainda que de forma precária _ um processo de incorporação dos povos indígenas à sociedade moderna. Como essa incorporação pode se concretizar em termos não-predatórios e de respeito às particularidades da cultura indígena?

A difusão do conhecimento disponível sobre os povos indígenas é a primeira e mais urgente medida. Não se respeita o que não se conhece: ou se o teme, ou se o despreza. Respeito é outra coisa.

Algumas universidades brasileiras _ incluindo a UFMG _ estudam a implantação de licenciaturas e cursos voltados para os povos indígenas? Como o senhor vê essa tendência? Este seria um caminho para a inclusão do índio e para o resgate e preservação de sua cultura?

Vejo esse movimento com simpatia, como vejo com simpatia todas as tentativas de ação afirmativa que procuram reparar ou compensar, na medida do possível, injustiças e iniqüidades históricas. Mas é preciso cuidar para que a articulação entre a universidade e os índios não seja usada para incluir os índios e excluir suas culturas.



Extraído de: http://www.ufmg.br/boletim/bol1483/quinta.shtml

2 comentários:

Anônimo disse...

E o que você tem a dizer das moscas, hein???

jholland disse...

Muito boa a entrevista. Estou colocando no Blog. Bjs.