sábado, 7 de fevereiro de 2009

Viveiros de Castro fala sobre Lévi-Strauss

Entrevista com o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro publicada na Folha de S. Paulo em 25/11/2008.
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u471165.shtml




Leia entrevista com Eduardo Viveiros de Castro sobre Lévi-Strauss


CAIO LIUDVIK
colaboração para a Folha de S.Paulo



Um dos principais antropólogos brasileiros, Eduardo Viveiros de Castro se notabilizou também pela retomada criativa, em livros como "A Inconstância da Alma Selvagem" (ed. Cosac Naify), dos métodos e do projeto teórico de Claude Lévi-Strauss.
E tal dívida intelectual fica patente pelo entusiasmo com que, na entrevista a seguir, saúda o centenário do pai da antropologia estrutural. Professor no Museu Nacional (RJ), Viveiros de Castro também comenta o percurso de Lévi-Strauss, sua recepção pela antropologia brasileira e sua atualidade como paradigma científico e forma de compreensão crítica dos impasses do mundo global.

Folha - Como sintetizaria a importância de Lévi-Strauss para a antropologia e o pensamento ocidentais?

Eduardo Viveiros de Castro - Lévi-Strauss reinventou a antropologia, ao desmontar os fundamentos metafísicos do colonialismo ocidental, e ao mesmo tempo revolucionou a filosofia, ao abrir um dos principais caminhos do século [20] para que outros pudessem desmontar os fundamentos colonialistas da metafísica ocidental.

Quais de suas obras o sr. destacaria? Por quê?

Viveiros de Castro - Todas. "As Estruturas Elementares do Parentesco" (1949) é um dos grandes clássicos do pensamento sociológico, um livro de mesma estatura que "Economia e Sociedade", de Max Weber, ou que "As Formas Elementares da Vida Religiosa", de Durkheim.

"Tristes Trópicos" (1955) suscitou uma modificação dramática na sensibilidade européia em relação ao lugar da civilização ocidental na história humana.

"O Pensamento Selvagem" (1962) colocou os mundos intelectuais que estavam fora da órbita das chamadas "grandes tradições" (as culturas estatais, antigas ou modernas) ao alcance do horizonte filosófico euro-americano.

Isso tudo dito, penso, porém, que os estudos mais tardios sobre as mitologias ameríndias, a saber, a tetralogia "Mitológicas" (1964-71) e as três monografias posteriores ("A Via das Máscaras", 1979, "A Oleira Ciumenta", 1985, e "História de Lince", 1991) são o ponto alto da trajetória intelectual de Lévi-Strauss.

Com esses livros, Lévi-Strauss tirou o pensamento ameríndio do gueto em que jazia desde o século 16 e lhe deu carta de cidadania para ingressar com a cabeça erguida no futuro intelectual da espécie.

A partir das "Mitológicas", a obra de Lévi-Strauss se torna o momento em que o pensamento ameríndio faz seu lance de dados, ultrapassando seu próprio "contexto" cultural e se mostrando capaz de dar a pensar a outrem, isto é, a todo aquele que, persa ou francês, se disponha a pensar --sem mais.

Meu livro favorito de Lévi-Strauss são dois: "As Origens dos Modos à Mesa", o terceiro volume das "Mitológicas", maravilhosamente bem pensado, e "História de Lince", livro curto e grandioso, sombrio e genial, onde se acha exposta a teoria indígena da "descoberta" da América pelos europeus.

Folha - Em que circunstâncias o sr. entrou em contato pela primeira vez com a obra lévi-straussiana? Que impacto esse "encontro" teve para o seu próprio modo de conceber e praticar a antropologia? Poderia exemplificar com alguma de suas obras?

Viveiros de Castro - Os dois primeiros livros de antropologia que li foram "As Estruturas Elementares" e "O Cru e o Cozido", em 1970-71, em cursos que [o crítico] Luiz Costa Lima dava na PUC-RJ na época.

Note-se que, se foram os patronos da USP que trouxeram Lévi-Strauss ao Brasil nos anos 1930, não foi a USP quem trouxe o estruturalismo para essas plagas, a partir do final dos anos 1960. A antropologia estrutural custou um bocado a pegar no ambiente paulistano, por razões muito características, que não cabe adentrar aqui. A exceção que confirma a regra, para o caso de São Paulo, foi o grande Bento Prado Jr., que sempre esteve um passo ou dois à frente de seus congêneres.

A experiência de leitura de "O Cru e o Cozido" (volume 1 das "Mitológicas"), em particular, foi decisiva para mim.

Mergulhado como me achava, aos vinte e bem poucos anos, na efervescência cultural da época, a época da tropicália e da antropofagia (uma teoria política da bricolagem cultural), dos experimentos radicais da arte conceitual brasileira, da ascese barroca da poesia concreta, da querela do formalismo versus conteudismo em arte, do nacional-popular, das raízes, e tendo tomado fervorosamente o partido tropical-concreto, a leitura daquela série de mitos picarescos analisados por Lévi-Strauss, pornográficos às vezes, surrealistas sempre, tropicalistas literalmente, mitos tratados de modo impavidamente algébrico em "O Cru e o Cozido", me ofereceu à imaginação esse objeto perfeito: uma matemática rabelaisiana. Lévi-Strauss é a síntese, muito gálica, de Rabelais e Descartes.




Folha - Hoje é possível considerar a antropologia estrutural, em algum sentido, ultrapassada?

Viveiros de Castro - Essa questão faria mais sentido se aplicada à coleção de verão de 2007 de algum costureiro ou a alguma droga ou ritmo da moda nas discotecas (ainda se chamam assim?) de Londres, Mikonos ou Recife.

Mas, se é para a respondermos: bem, sim, a antropologia estrutural está, em alguns sentidos, ultrapassada, como a filosofia de Kant está em alguns sentidos ultrapassada, ou a poesia de Dante.

Mas, como sabemos, isso não impede que ninguém se possa chamar filósofo se não leu e meditou profundamente sobre Kant, nem poeta se não leu nem se maravilhou com Dante.

Em outros sentidos, a antropologia estrutural nem sequer começou a ser explorada em toda a sua complexidade.


O estruturalismo está muito longe de ter tido todas as suas potencialidades analíticas esgotadas, e a fase das leituras brutalmente simplificadoras da obra lévi-straussiana --simplificação dialeticamente necessária, sem dúvida, para o prodigioso florescimento de novos temas e problemas na antropologia dos últimos 30 anos (e para a ressurreição de alguns temas bem velhos; já ia dizer, ultrapassados) --aproxima-se de seu fim.

Após a recauchutagem do evolucionismo pela psicoantropologia cognitiva, essa ciência perpetuamente promissora; após a ressurgência do difusionismo com a sociologia crítica da "invenção da tradição"; depois da volta do funcionalismo (mas ele alguma vez foi mesmo embora?) com a economia política da globalização; bem, talvez tenha chegado a hora de desesquecer e recomplicar --como dizia Leach, de "repensar"-- o estruturalismo.

Folha - Em "As Idéias de Lévi-Strauss" (ed. Cultrix), Edmund Leach mostra que a antropologia anglo-americana é herdeira de Malinowski na ênfase em aspectos como observação participante, menos generalizações e foco nas diferenças --mais do que nas semelhanças-- entre as culturas. E por isso tais antropólogos tenderiam a criticar o viés de Lévi-Strauss, que seria mais comparável ao de Frazer: erudição monumental, mas pouco trabalho de campo e uma vontade de elucidar os traços universais da "mente humana", negligenciando as particularidades culturais. Como vê tais críticas?

Viveiros de Castro - Leach era um piadista, um caso curioso de enfant terrible vitalício da antropologia britânica. Pois suas críticas a Lévi-Strauss devem ser lidas tendo-se em mente que Leach foi justamente o principal difusor do estruturalismo nas terras malinowskianas da antropologia britânica.

(A antropologia norte-americana tem pouco a ver com Malinowski: não misturemos as estações).
Foi aliás graças ao ensino de Leach que, hoje, se pode dizer que o verdadeiro espirito do estruturalismo está mais vivo na antropologia britânica, graças à liderança intelectual de uma ex-estudante de Leach em Cambridge, a antropóloga Marilyn Strathern (o maior nome surgido na disciplina desde Lévi-Strauss), do que na França, onde o pensamento lévi-straussiano foi submetido, por alguns antropólogos eminentes no plano local, a uma empresa sistemática de sabotagem intelectual.

Quanto a isso de erudição monumental (não consigo imaginar essa expressão como significando uma crítica) versus particularidades culturais --tal coisa não existe.

A distinção entre antropologias francesa e britânica não se reduz a --nem sequer passa por-- um contraste entre generalizações e busca de semelhanças versus estudos monográficos particularizantes.

Aliás, nada mais particularizante e minuciosamente etnográfico que a etnologia francesa de hoje. E Lévi-Strauss nunca se interessou pelas semelhanças, mas pelas diferenças. Ou melhor, pelos sistemas formados pelas diferenças entre as diversas culturas particulares.

A oposição entre universal e particular é uma roubada epistemológica. Isso não existe.

Folha - Outro grande nome da antropologia contemporânea, Clifford Geertz, teceu críticas duras a "Tristes Trópicos", dizendo tratar-se de um livro a ser lido sobretudo como ficção, literatura, mais do que como etnologia. O sr. concorda? Como o sr. avalia essa obra de Lévi-Strauss?

Viveiros de Castro - As críticas de Geertz (aliás, já morto há algum tempo) não são tão recentes assim. As primeiras delas datam do começo dos anos 1970, se não me falha a memória. De qualquer modo, elas são irrelevantes.

Geertz se distinguiu por criticar logo os dois estilistas máximos, no sentido literário tanto como conceitual, que a antropologia jamais conheceu: o britânico Evans-Pritchard e o francês Lévi-Strauss.

Parece coisa de inveja da excelência alheia.

"Tristes Trópicos" não é um livro de ficção. É um livro que redefiniu as fronteiras e as funções intelectuais da ficção e da etnologia. Eu troco a obra inteira de Geertz --que não é nada má, diga-se de passagem-- por um único capítulo de "Tristes Trópicos".

Folha - Em que medida as fortes denúncias de Lévi-Strauss contra o etnocentrismo do Ocidente ajudam hoje a pensar os rumos da civilização globalizada?

Viveiros de Castro - As denúncias de Lévi-Strauss simplesmente anteciparam o que hoje está cada vez mais evidente: que a espécie entrou em um apertadíssimo beco sem saída.

E que, se alguma esperança há, esta reside em nossa capacidade de prestar a mais humilde, séria e solícita das atenções à tradição intelectual dos povos que não tiveram a pretensão inacreditavelmente estúpida e arrogante de se colocar como maiores do que o mundo em que vivem.

1 comentários:

Anônimo disse...

ele fala coisas que até o levi-strauss duvida!