terça-feira, 31 de março de 2009

A Terceira Margem do Rio



Guimarães Rosa




Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação. Do que eu mesmo me alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe era quem regia, e que ralhava no diário com a gente — minha irmã, meu irmão e eu. Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa.

Era a sério. Encomendou a canoa especial, de pau de vinhático, pequena, mal com a tabuinha da popa, como para caber justo o remador. Mas teve de ser toda fabricada, escolhida forte e arqueada em rijo, própria para dever durar na água por uns vinte ou trinta anos. Nossa mãe jurou muito contra a idéia. Seria que, ele, que nessas artes não vadiava, se ia propor agora para pescarias e caçadas? Nosso pai nada não dizia. Nossa casa, no tempo, ainda era mais próxima do rio, obra de nem quarto de légua: o rio por aí se estendendo grande, fundo, calado que sempre. Largo, de não se poder ver a forma da outra beira. E esquecer não posso, do dia em que a canoa ficou pronta.

Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapéu e decidiu um adeus para a gente. Nem falou outras palavras, não pegou matula e trouxa, não fez a alguma recomendação. Nossa mãe, a gente achou que ela ia esbravejar, mas persistiu somente alva de pálida, mascou o beiço e bramou: — "Cê vai, ocê fique, você nunca volte!" Nosso pai suspendeu a resposta. Espiou manso para mim, me acenando de vir também, por uns passos. Temi a ira de nossa mãe, mas obedeci, de vez de jeito. O rumo daquilo me animava, chega que um propósito perguntei: — "Pai, o senhor me leva junto, nessa sua canoa?" Ele só retornou o olhar em mim, e me botou a bênção, com gesto me mandando para trás. Fiz que vim, mas ainda virei, na grota do mato, para saber. Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se indo — a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa.

Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para. estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia. Os parentes, vizinhos e conhecidos nossos, se reuniram, tomaram juntamente conselho.

Nossa mãe, vergonhosa, se portou com muita cordura; por isso, todos pensaram de nosso pai a razão em que não queriam falar: doideira. Só uns achavam o entanto de poder também ser pagamento de promessa; ou que, nosso pai, quem sabe, por escrúpulo de estar com alguma feia doença, que seja, a lepra, se desertava para outra sina de existir, perto e longe de sua família dele. As vozes das notícias se dando pelas certas pessoas — passadores, moradores das beiras, até do afastado da outra banda — descrevendo que nosso pai nunca se surgia a tomar terra, em ponto nem canto, de dia nem de noite, da forma como cursava no rio, solto solitariamente. Então, pois, nossa mãe e os aparentados nossos, assentaram: que o mantimento que tivesse, ocultado na canoa, se gastava; e, ele, ou desembarcava e viajava s'embora, para jamais, o que ao menos se condizia mais correto, ou se arrependia, por uma vez, para casa.

No que num engano. Eu mesmo cumpria de trazer para ele, cada dia, um tanto de comida furtada: a idéia que senti, logo na primeira noite, quando o pessoal nosso experimentou de acender fogueiras em beirada do rio, enquanto que, no alumiado delas, se rezava e se chamava. Depois, no seguinte, apareci, com rapadura, broa de pão, cacho de bananas. Enxerguei nosso pai, no enfim de uma hora, tão custosa para sobrevir: só assim, ele no ao-longe, sentado no fundo da canoa, suspendida no liso do rio. Me viu, não remou para cá, não fez sinal. Mostrei o de comer, depositei num oco de pedra do barranco, a salvo de bicho mexer e a seco de chuva e orvalho. Isso, que fiz, e refiz, sempre, tempos a fora. Surpresa que mais tarde tive: que nossa mãe sabia desse meu encargo, só se encobrindo de não saber; ela mesma deixava, facilitado, sobra de coisas, para o meu conseguir. Nossa mãe muito não se demonstrava.

Mandou vir o tio nosso, irmão dela, para auxiliar na fazenda e nos negócios. Mandou vir o mestre, para nós, os meninos. Incumbiu ao padre que um dia se revestisse, em praia de margem, para esconjurar e clamar a nosso pai o 'dever de desistir da tristonha teima. De outra, por arranjo dela, para medo, vieram os dois soldados. Tudo o que não valeu de nada. Nosso pai passava ao largo, avistado ou diluso, cruzando na canoa, sem deixar ninguém se chegar à pega ou à fala. Mesmo quando foi, não faz muito, dos homens do jornal, que trouxeram a lancha e tencionavam tirar retrato dele, não venceram: nosso pai se desaparecia para a outra banda, aproava a canoa no brejão, de léguas, que há, por entre juncos e mato, e só ele conhecesse, a palmos, a escuridão, daquele.

A gente teve de se acostumar com aquilo. Às penas, que, com aquilo, a gente mesmo nunca se acostumou, em si, na verdade. Tiro por mim, que, no que queria, e no que não queria, só com nosso pai me achava: assunto que jogava para trás meus pensamentos. O severo que era, de não se entender, de maneira nenhuma, como ele agüentava. De dia e de noite, com sol ou aguaceiros, calor, sereno, e nas friagens terríveis de meio-do-ano, sem arrumo, só com o chapéu velho na cabeça, por todas as semanas, e meses, e os anos — sem fazer conta do se-ir do viver. Não pojava em nenhuma das duas beiras, nem nas ilhas e croas do rio, não pisou mais em chão nem capim. Por certo, ao menos, que, para dormir seu tanto, ele fizesse amarração da canoa, em alguma ponta-de-ilha, no esconso. Mas não armava um foguinho em praia, nem dispunha de sua luz feita, nunca mais riscou um fósforo. O que consumia de comer, era só um quase; mesmo do que a gente depositava, no entre as raízes da gameleira, ou na lapinha de pedra do barranco, ele recolhia pouco, nem o bastável. Não adoecia? E a constante força dos braços, para ter tento na canoa, resistido, mesmo na demasia das enchentes, no subimento, aí quando no lanço da correnteza enorme do rio tudo rola o perigoso, aqueles corpos de bichos mortos e paus-de-árvore descendo — de espanto de esbarro. E nunca falou mais palavra, com pessoa alguma. Nós, também, não falávamos mais nele. Só se pensava. Não, de nosso pai não se podia ter esquecimento; e, se, por um pouco, a gente fazia que esquecia, era só para se despertar de novo, de repente, com a memória, no passo de outros sobressaltos.

Minha irmã se casou; nossa mãe não quis festa. A gente imaginava nele, quando se comia uma comida mais gostosa; assim como, no gasalhado da noite, no desamparo dessas noites de muita chuva, fria, forte, nosso pai só com a mão e uma cabaça para ir esvaziando a canoa da água do temporal. Às vezes, algum conhecido nosso achava que eu ia ficando mais parecido com nosso pai. Mas eu sabia que ele agora virara cabeludo, barbudo, de unhas grandes, mal e magro, ficado preto de sol e dos pêlos, com o aspecto de bicho, conforme quase nu, mesmo dispondo das peças de roupas que a gente de tempos em tempos fornecia.

Nem queria saber de nós; não tinha afeto? Mas, por afeto mesmo, de respeito, sempre que às vezes me louvavam, por causa de algum meu bom procedimento, eu falava: — "Foi pai que um dia me ensinou a fazer assim..."; o que não era o certo, exato; mas, que era mentira por verdade. Sendo que, se ele não se lembrava mais, nem queria saber da gente, por que, então, não subia ou descia o rio, para outras paragens, longe, no não-encontrável? Só ele soubesse. Mas minha irmã teve menino, ela mesma entestou que queria mostrar para ele o neto. Viemos, todos, no barranco, foi num dia bonito, minha irmã de vestido branco, que tinha sido o do casamento, ela erguia nos braços a criancinha, o marido dela segurou, para defender os dois, o guarda-sol. A gente chamou, esperou. Nosso pai não apareceu. Minha irmã chorou, nós todos aí choramos, abraçados.

Minha irmã se mudou, com o marido, para longe daqui. Meu irmão resolveu e se foi, para uma cidade. Os tempos mudavam, no devagar depressa dos tempos. Nossa mãe terminou indo também, de uma vez, residir com minha irmã, ela estava envelhecida. Eu fiquei aqui, de resto. Eu nunca podia querer me casar. Eu permaneci, com as bagagens da vida. Nosso pai carecia de mim, eu sei — na vagação, no rio no ermo — sem dar razão de seu feito. Seja que, quando eu quis mesmo saber, e firme indaguei, me diz-que-disseram: que constava que nosso pai, alguma vez, tivesse revelado a explicação, ao homem que para ele aprontara a canoa. Mas, agora, esse homem já tinha morrido, ninguém soubesse, fizesse recordação, de nada mais. Só as falsas conversas, sem senso, como por ocasião, no começo, na vinda das primeiras cheias do rio, com chuvas que não estiavam, todos temeram o fim-do-mundo, diziam: que nosso pai fosse o avisado que nem Noé, que, por tanto, a canoa ele tinha antecipado; pois agora me entrelembro. Meu pai, eu não podia malsinar. E apontavam já em mim uns primeiros cabelos brancos.

Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio — pondo perpétuo. Eu sofria já o começo de velhice — esta vida era só o demoramento. Eu mesmo tinha achaques, ânsias, cá de baixo, cansaços, perrenguice de reumatismo. E ele? Por quê? Devia de padecer demais. De tão idoso, não ia, mais dia menos dia, fraquejar do vigor, deixar que a canoa emborcasse, ou que bubuiasse sem pulso, na levada do rio, para se despenhar horas abaixo, em tororoma e no tombo da cachoeira, brava, com o fervimento e morte. Apertava o coração. Ele estava lá, sem a minha tranqüilidade. Sou o culpado do que nem sei, de dor em aberto, no meu foro. Soubesse — se as coisas fossem outras. E fui tomando idéia.

Sem fazer véspera. Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra doido não se falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se condenava ninguém de doido. Ninguém é doido. Ou, então, todos. Só fiz, que fui lá. Com um lenço, para o aceno ser mais. Eu estava muito no meu sentido. Esperei. Ao por fim, ele apareceu, aí e lá, o vulto. Estava ali, sentado à popa. Estava ali, de grito. Chamei, umas quantas vezes. E falei, o que me urgia, jurado e declarado, tive que reforçar a voz: — "Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!..." E, assim dizendo, meu coração bateu no compasso do mais certo.

Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n'água, proava para cá, concordado. E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes, ele tinha levantado o braço e feito um saudar de gesto — o primeiro, depois de tamanhos anos decorridos! E eu não podia... Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado. Porquanto que ele me pareceu vir: da parte de além. E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão.

Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio.



Texto extraído do livro "Primeiras Estórias", Editora Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 1988, pág. 32


segunda-feira, 30 de março de 2009

Velha Chácara














A casa era por aqui...
Onde? Procuro-a e não acho.
Ouço uma voz que esqueci:
É a voz deste mesmo riacho.

Ah quanto tempo passou!
(Foram mais de cinqüenta anos.)
Tantos que a morte levou!
(E a vida... nos desenganos...)

A usura fez tábua rasa
Da velha chácara triste:
Não existe mais a casa...

- Mas o menino ainda existe.


(Manuel Bandeira)


domingo, 29 de março de 2009

Quando zen...



Nos círculos zen costuma-se dizer: "Antes de eu começar a praticar, as montanhas eram montanhas e os rios eram rios. Depois que comecei a praticar, as montanhas não eram mais montanhas, e os rios não eram mais rios. Agora, como pratiquei por um bom tempo, as montanhas voltaram a ser montanhas e os rios voltaram a ser rios".




(in: CULTIVANDO A MENTE DO AMOR – Thic Nhat Hanh)




Extraído de: http://www.nossacasa.net/shunya/default.asp?menu=472

sábado, 28 de março de 2009

Nos vemos no escuro



Apagando as luzes artificiais, ficamos com a escuridão natural da noite -- mas é quase impossível ter uma noite escura nesta nossa civilização artificial...

Nesta Hora de luzes apagadas, podemos encontrar-nos em meditação... Acendemos velas, incenso -- e a luz da nossa plena consciência!

Assim, nos vemos hoje no escuro, dentro da nossa luz.




Hora do Planeta 2009; para saber mais sobre este ato planetário, por favor acesse:http://www.earthhour.org/action/br:pt-BR



Post extraído de: http://paraserzen.blogspirit.com/

Outono



飯時や戸口に秋の入日影  樗良

meshidoki ya toguchi ni aki no irihi kage

Hora do almoço.
Pela porta, com os raios de sol,
As sombras do outono.


Chora



Imagem extraída de: http://farm1.static.flickr.com/169/415443389_41862ce1b9.jpg
Haicai extraído de: http://www.kakinet.com/caqui/antojapon.shtml

sexta-feira, 27 de março de 2009

Montaigne e o Brasil



Já que o texto é muito longo, estou colocando aqui apenas o resumo dele. Para quem se interessar, o endereço do Scielo onde se encontra o artigo (em formato pdf) original e completo é: http://www.scielo.br/pdf/ra/v49n2/01.pdf





Informações:


LESTRINGANT, Frank. O Brasil de Montaigne. Rev. Antropol. [online]. 2006, vol. 49, no. 2, pp. 515-556. ISSN 0034-7701.


Resumo:

Este artigo propõe uma nova leitura dos célebres ensaios dedicados por Montaigne à América e a seus povos, inicialmente à luz da forma retórica da declamação, neles adotada. A comparação entre os Ensaios "americanos" permite ainda evidenciar o lugar privilegiado do Brasil, e de seus Canibais, na reflexão de Montaigne acerca do Novo Mundo, e a composição de uma imagem de todos os seus povos como ao mesmo tempo conformada ao modelo edênico dos Tupinambá e elevada à dignidade dos grandes homens da Antiguidade - "tupinambizada" e "romanizada".


Palavras-chave : Montaigne; ameríndios; declamação; primitivismo; Tupinambá; Bom Selvagem; relativismo cultural; filosofia da história.

quinta-feira, 26 de março de 2009

O "Círculo Max Weber de Heidelberg...(1)"

Parte I: O "Círculo" como principal núcleo anticapitalista da Alemanha

Max Weber: um proeminente círculo
de pensadores neo-românticos
e anti-capitalistas



O principal centro de pensamento sociológico na Alemanha do início do século XX era Heidelberg, onde se reunia em torno de Max Weber uma plêiade brilhante de intelectuais e universitários.
Entre os participantes regulares ou episódicos deste famoso “Círculo Weber de Heidelberg” encontram-se, de 1906 a 1918: os sociólogos Ferdinand Tönnies, Werner Sombart, Georg Simmel, Alfred Weber (o sociólogo da cultura, irmão de Max), Arthur Salz (membro do Verein für Sozialpolitik dos “socialistas de cátedra”), Robert Michels (nesta época, “sindicalista revolucionário”), Ernst Troeltsch (sociólogo das religiões, de orientação “social-cristã”), Paul Honigsheim (então jovem estudante); os filósofos neokantianos Wilhelm Windelband, Hugo Münsterberg e Emil Lask, os neo-hegelianos Ehrenberg (judeu tornado místico-cristão) e Rosenzweig; o jurista George Jellinek; o esteta Friedrich Gundolf (amigo do poeta Stephan George); o poeta pacifista Ernst Toller; o psiquiatra e futuro filósofo kierkegaardiano Jaspers; o especialista em Dostoievsky Nikolai von Bubnov; e dois dostoievskyanos escatológicos: Ernst Bloch e György von Lukács...


George Simmel, um dos integrantes do Círculo de Heidelberg...



...juntamente com Jaspers, dentre outros.


Evidentemente, não se pode falar de uma ideologia comum a este conjunto heterogêneo e disparatado, mas nele se encontra indiscutivelmente uma potente corrente anticapitalista romântica; segundo o testemunho muito esclarecedor de Paul Honisgsheim,

“mesmo antes da guerra, havia em vários meios uma tendência a se distanciar do modo burguês de vida, da cultura da cidade, a racionalidade instrumental, a quantificação, a especialização científica, e todos os outros elementos considerados então como repugnantes...Lukács e Bloch, Ehrenberg e Rosenzweig eram partidários desta tendência. Este neo-romantismo, se assim se pode chamá-lo, estava ligado ao velho romantismo por múltiplas, ainda que ocultas, pequenas correntes de influência; podemos dar alguns exemplos: Schopenhauer, Nietzsche, o velho Schelling, Constantin Franz...o movimento de Juventude...O neo-romantismo sob suas diversas formas estava representado em Heidelberg...e seus adeptos sabiam a qual porta bater: a porta de Max Weber.”

Uma das manifestações deste estado de espírito era um estranho renascimento da religiosidade, como forma de rejeição radical do racionalismo burguês; segundo Paul Honisgsheim “era uma época em que a religião começava a estar na moda – nos salões e nos cafés – em que se liam naturalmente os místicos e se simpatizava espontaneamente com o catolicismo, uma época em que era de bom-tom lançar um olhar de desprezo sobre o século XVIII...para poder em seguida invectivar de coração aberto contra o liberalismo”. Esta tendência também se manifestava no círculo de Max Weber, entre outros, em Bloch e Lukács, que gostavam de fazer, então, “louvações extasiadas ao catolicismo”.

Entretanto, mais que a Igreja Católica, era a música e a literatura russa que faziam a unanimidade do círculo de Heidelberg; era ainda um modo de recusar a civilização ocidental capitalista. Graças a esta eslavofilia – estimulada pela participação nas reuniões de domingo (com Weber) de Nikolai von Bubnov, professos de História do Misticismo em Heidelberg, autor de publicações diversas sobre filosofia religiosa russa, em geral, e sobre Dostoievsky, em particular, e pela presença do escritor Feodor Stepum, que introduz no público alemão a obra do teórico do misticismo russo Vladimir Soloviev. A obra de Tolstoi e Dostoievsky encontrava-se no centro dos debates do círculo de Max Weber, particularmente no contexto da contradição entre a ética absoluta colocada pelos escritores russos (radical e sem concessões) e a ética da responsabilidade, implicando que se tomasse sobre si o fardo do pecado, como em “O Grande Inquisidor” de Dostoievsky...Esta problemática obcecava ainda Max Weber em 1919: no seu célebre discurso aos estudantes sobre a vocação política, ele menciona explicitamente o “Grande Inquisidor” de Dostoievsky como a apresentação mais notável desta contradição.

Veremos que os dilemas ético-políticos de Lukács em 1918-1919 apresentam uma similitude espantosa com a perspectiva de Weber, partindo das mesmas fontes: Dostoievsky e Tolstoi.

Lukács em 1919

O círculo de Max Weber tinha certas relações com outro grupo de Heidelberg, muito mais esotérico e fechado: o círculo de Stephan George, que reunia os amigos e admiradores quase religiosos em torno do célebre poeta.



O poeta místico Stephan George

Ao menos um membro deste grupo, o crítico de arte Friedrich Gundolf, participava dos dois círculos,e o próprio Weber lia com interesse os poemas de George. Lukács dedica em 1918 um ensaio a Stephan George (publicado em seguida A Alma e as Formas) em que sublinha o caráter “profundamente aristocrático” de seu lirismo que “mantém longe de si toda escandalosa banalidade, todos os suspiros fáceis e as moções baratas do coração”. Entretanto, o ensaio não agradou aos iniciados do círculo místico dos adoradores do poeta, porque não reconhecia os pretensos dons proféticos sobrenaturais de George. Alguns anos mais tarde (1946), Lukács retorna sobre a significação da obra de Stephan George; sublinha a “não-fraternidade aristocrático-estética de sua visão de mundo” e acrescenta:

“George recusa apaixonadamente a vida social de sua época. Não vê nela senão a prosa mortífera para a alma, a perdição encarnada...São claras as conseqüências do matiz alemão do anticapitalismo romântico. É do ódio contra este mundo, o mundo do capitalismo e da democracia, que nasceu o ‘profetismo’ de George...”.

Lukacs insistirá, em seu livro Brève histoire de la littérature allemande, nas implicações políticas desse "profetismo", por meio do qual George

"converte-se no chefe espiritual da reação que avança. Mão se contenta em formular apaixonadas acusações contra o mundo contemporâneo; anuncia também, com virulência crescente, sua queda necessária e o advento de um mundo novo, de um novo "Reich", que salvará da maldade e da fealdade... Fundando-se em tais poemas o fascismo o reclama para si. [Mas] não estava inteiramente justificado no que concerne ao poeta. George não quis saber nada do hitlerismo: morreu em exílio voluntário...Não existem laços essenciais ao menos objetivamente." (Lukacs, Brève histoire de la littérature allemande, 1949)

São visíveis as afinidades possíveis com a corrente neo-romântica do círculo de Max Weber.

Na realidade o próprio Max Weber não pode ser classificado como um neo-romântico. Aliás, é muito difícil definir sua posição político-ideológica: é um “liberal”, como pretende Merlau-Ponty, um “representante ativo da política do capital monopolista”, como pensava a Academia de Ciências da URSS, ou um aristocrata nietzscheano como sugere Jean-Marie Vincent ? Ele era contrário ou favorável à democracia parlamentar, ao militarismo, à social-democracia ? Sem querer, de forma alguma, truncar o debate, desejamos somente chamar a atenção sobre certa “afinidade eletiva”, malgrado diferenças significativas, entre a sociologia de Weber e o anticapitalismo romântico. Jean-Marie Vincent caracteriza com razão a ideologia weberiana como “uma espécie de humanismo precário, estranho às tendências fundamentais do desenvolvimento social (burocratização, desencantamento)”, um pessimismo que recusa com obstinação alguns aspectos da evolução do mundo moderno. Desse ponto de vista, ele foi, sem dúvida, profundamente influenciado por Tönnies, do qual retoma freqüentemente as categorias de análise, tentando superá-las em direção a uma visão mais objetiva da realidade sócio-econômica moderna.

(...)

“...é horrível pensar que um dia o mundo será ocupado somente por estas pequenas peças, por pequenos homens que se agarram a pequenos empregos e procuram obter outros maiores – uma situação que...tem um papel crescente no espírito de nosso sistema administrativo presente...Esta paixão pela burocracia é suficiente para pôr-nos em desespero...A grande questão não é saber como promover e estimular esta evolução, mas como se opor a esta máquina para manter uma parte da humanidade livre desse desmembramento da alma, desta suprema dominação do modo burocrático de vida.”
(Max Weber, Gesammelte Aufsätze zur Soziologie und Sozialpolitik)

(...)

Sem esta dimensão anticapitalista – que seguramente não é senão um aspecto de um sistema teórico complexo, matizado e às vezes contraditório – é difícil de compreender alguns fenômenos como a simpatia de Weber pelos sindicatos operários:

“Eles são os únicos no interior do Partido Social-Democrata que...não se rebaixaram, e que mantiveram o idealismo em face da mediocridade do Partido...O único refúgio do trabalho idealista no seio do Partido Social-Democrata são e serão, em nossas condições alemãs, os sindicatos.”

(...)

Segundo Eduard Baumgarten, para Weber, os sindicatos constituem precisamente um contrapeso ao aburguesamento e à burocratização do Partido, ponto de vista que aproxima o eminente sociólogo de Heidelberg de seu discípulo “sindicalista revolucionário” Robert Michels. O próprio Michels sublinha em outro lugar o interesse de Weber por suas idéias e a abertura das páginas do Archi für Sozialwissenschaft para a corrente sindicalista, com a publicação de artigos de Hubert Lagardelle, Arturo Labriola, Enrico Leone etc. Enfim, segundo o testemunho sempre revelador e penetrante de Paul Honisgsheim, a Weltanschauung de Weber transporta-o para a “vizinhança dos anarquistas e, sobretudo, dos sindicalistas bergsonianos”.

Lukács na maturidade



É somente dentro deste contexto que se pode compreender o comentário surpreendente que fez Lukács a seus amigos de Heidelberg:

“Max Weber é o homem que poderá arrancar o socialismo do miserável relativismo produzido pela ação de Frank (um dirigente social-democrata revisionista e direitista) e seus asseclas” (...).






(Texto extraído de: "Para uma Sociologia dos Intelectuais Revolucionários", Michel Löwy, pags.28 e segs)


Fonte: http://metamorficus.blogspot.com/search/label/C%C3%ADrculo%20Max%20Weber

quarta-feira, 25 de março de 2009

As grandes cidades e a vida do espírito (1903)*







Georg Simmel


Os problemas mais profundos da vida moderna brotam da pretensão do indivíduo de preservar a autonomia e a peculiaridade de sua existência frente às superioridades da sociedade, da herança histórica, da cultura exterior e da técnica da vida — a última reconfiguração da luta com a natureza que o homem primitivo levou a cabo em favor de sua existência corporal. Se o século XVIII pode clamar pela libertação de todos os vínculos que resultaram historicamente no estado e na religião, na moral e na economia, para que com isso a natureza originalmente boa, e que é a mesma em todos os homens, pudesse se desenvolver sem empecilhos; se o século XIX reivindicou, ao lado da mera liberdade, a particularidade humana e de suas realizações, dadas pela divisão do trabalho, que torna o singular incomparável e o mais indispensável possível, mas com isso o atrela mais estreitamente à complementação por todos os outros; se Nietzsche vê a condição para o pleno desenvolvimento dos indivíduos na luta mais brutal dos singulares, ou o socialismo, precisamente na manutenção do nível mais baixo de toda concorrência — em tudo isto atua o mesmo motivo fundamental: a resistência do sujeito a ser nivelado e consumido em um mecanismo técnico-social. Onde os produtos da vida especificamente moderna são indagados acerca de sua interioridade; onde por assim dizer o corpo da cultura é indagado acerca de sua alma — como me parece ser atualmente o caso no que diz respeito às nossas grandes cidades —, a resposta precisa ser buscada na equalização promovida por tais formações entre os conteúdos individuais e supra-individuais da vida, nas adaptações da personalidade, mediante as quais ela se conforma com as potências que lhe são exteriores.



O fundamento psicológico sobre o qual se eleva o tipo das individualidades da cidade grande é a intensificação da vida nervosa, que resulta da mudança rápida e ininterrupta de impressões interiores e exteriores. O homem é um ser que faz distinções, isto é, sua consciência é estimulada mediante a distinção da impressão atual frente a que lhe precede. As impressões persistentes, a insignificância de suas diferenças, a regularidade habitual de seu transcurso e de suas oposições exigem por assim dizer menos consciência do que a rápida concentração de imagens em mudança, o intervalo ríspido no interior daquilo que se compreende com um olhar, o caráter inesperado das impressões que se impõem. Na medida em que a cidade grande cria precisamente estas condições psicológicas — a cada saída à rua, com a velocidade e as variedades da vida econômica, profissional e social —, ela propicia, já nos fundamentos sensíveis da vida anímica, no quantum da consciência que ela nos exige em virtude de nossa organização enquanto seres que operam distinções, uma oposição profunda com relação à cidade pequena e à vida no campo, com ritmo mais lento e mais habitual, que corre mais uniformemente de sua imagem sensível-espiritual de vida. Com isso se compreende sobretudo o caráter intelectualista da vida anímica do habitante da cidade grande, frente ao habitante da cidade pequena, que é antes baseado no ânimo e nas relações pautadas pelo sentimento. Pois estas lançam raízes nas camadas mais inconscientes da alma e crescem sobretudo na calma proporção de hábitos ininterruptos. Em contraposição a isto, o lugar do entendimento são as camadas mais superiores, conscientes e transparentes de nossa alma; ele é, de nossas forças interiores, a mais capaz de adaptação. Ele não necessita, para acomodar-se com a mudança e oposição dos fenômenos, das comoções e do revolver interior, sem os quais o ânimo mais conservador não saberia se conformar ao ritmo uniforme dos fenômenos. Assim, o tipo do habitante da cidade grande — que naturalmente é envolto em milhares de modificações individuais — cria um órgão protetor contra o desenraizamento com o qual as correntes e discrepâncias de seu meio exterior o ameaçam: ele reage não com o ânimo, mas sobretudo com o entendimento, para o que a intensificação da consciência, criada pela mesma causa, propicia a prerrogativa anímica. Com isso, a reação àqueles fenômenos é deslocada para o órgão psíquico menos sensível, que está o mais distante possível das profundezas da personalidade. Essa atuação do entendimento, reconhecida portanto como um preservativo da vida subjetiva frente às coações da cidade grande, ramifica-se em e com múltiplos fenômenos singulares. As grandes cidades sempre foram o lugar da economia monetária, porque a multiplicidade e concentração da troca econômica dão ao meio de troca uma importância que não existiria na escassez da troca no campo. Mas a economia monetária e o domínio do entendimento relacionam-se do modo mais profundo. É-lhes comum a pura objetividade no tratamento de homens e coisas, na qual uma justiça formal freqüentemente se junta com uma dureza brutal. O homem pautado puramente pelo entendimento é indiferente frente a tudo que é propriamente individual, pois do individual originam-se relações e reações que não se deixam esgotar com o entendimento lógico — precisamente como no princípio monetário a individualidade dos fenômenos não tem lugar. Pois o dinheiro indaga apenas por aquilo que é comum a todos, o valor de troca, que nivela toda a qualidade e peculiaridade à questão do mero "quanto". Todas as relações de ânimo entre as pessoas fundamentam-se nas suas individualidades, enquanto que as relações de entendimento contam os homens como números, como elementos em si indiferentes, que só possuem um interesse de acordo com suas capacidades consideráveis objetivamente — assim como o habitante da cidade grande conta com seus fornecedores e fregueses, seus criados e mesmo freqüentemente com as pessoas de seu trato de dever social, em contraposição ao caráter do círculo menor, onde o conhecimento inevitável das individualidades cria também inevitavelmente uma coloração plena de ânimo do comportamento, um estar para além da mera consideração das capacidades e compensações. Aqui, o essencial no terreno da psicologia econômica é que nas relações mais primitivas se produz para o cliente que encomenda a mercadoria, de modo que produtor e freguês se conhecem mutuamente. A cidade grande moderna, contudo, alimenta-se quase que completamente da produção para o mercado, isto é, para fregueses completamente desconhecidos, que nunca se encontrarão cara a cara com os verdadeiros produtores. Com isso, o interesse das duas partes ganha uma objetividade impiedosa, seus egoísmos econômicos, que calculam com o entendimento, não têm a temer nenhuma dispersão devida aos imponderáveis das relações pessoais. E isso está, evidentemente, em uma interação tão estreita com a economia monetária — que domina nas grandes cidades e desaloja os últimos restos da produção própria e da troca imediata de mercadorias e que reduz dia a dia o trabalho para o cliente —, que ninguém saberia dizer se é inicialmente aquela constituição intelectualista, anímica, que impulsiona rumo à economia monetária, ou se é esta o fator determinante daquela. Seguro é apenas que a forma da vida na cidade grande é o solo mais frutífero para essa interação, o que gostaria ainda de comprovar com a palavra do mais importante dos historiadores ingleses da constituição: no decurso de toda a história inglesa, Londres nunca foi considerada o coração da Inglaterra, mas freqüentemente seu entendimento e sempre sua bolsa!




Em um traço aparentemente insignificante da superfície da vida unificam-se, de modo não menos característico, as mesmas correntes anímicas. O espírito moderno tornou-se mais e mais um espírito contábil. Ao ideal da ciência natural de transformar o mundo em um exemplo de cálculo e de fixar cada uma de suas partes em fórmulas matemáticas corresponde a exatidão contábil da vida prática, trazida pela economia monetária. Somente a economia monetária preencheu o dia de tantos seres humanos com comparações, cálculos, determinações numéricas, redução de valores qualitativos a valores quantitativos. Mediante a essência contábil do dinheiro chegou-se, na relação dos elementos da vida, a uma precisão, a uma segurança na determinação de igualdades e desigualdades, a uma univocidade nos acordos e combinações — tal como, externamente, foi propiciado pela difusão geral dos relógios de bolso. Contudo, são as condições da cidade grande que são tanto as causas como os efeitos desse traço essencial. As relações e oportunidades do habitante típico da cidade grande costumam ser tão variadas e complicadas, e sobretudo: mediante a acumulação de tantos homens, com interesses tão diferenciados, suas relações e atividades engrenam um organismo tão complexo que, sem a mais exata pontualidade nas promessas e realizações, o todo se esfacelaria em um caos inextricável. Se repentinamente todos os relógios de Berlim andassem em direções variadas, mesmo que apenas no intervalo de uma hora, toda a sua vida e tráfego econômicos, e não só, seriam perturbados por longo tempo. A isto se acresce, de modo aparentemente ainda mais exterior, a grandeza das distâncias, que torna toda espera e viagem perdida, uma perda de tempo insuportável. Assim, a técnica da vida na cidade grande não é concebível sem que todas as atividades e relações mútuas tenham sido ordenadas em um esquema temporal fixo e supra-subjetivo. Mas aqui também se põe em evidência o que, no final das contas, pode ser a tarefa completa destas considerações: que de qualquer ponto na superfície da existência, por mais que ele pareça brotar apenas nessa superfície e a partir dela, se pode sondar a profundidade da alma, que todas as exterioridades, mesmo as mais banais, estão ligadas, por fim, mediante linhas de direção, com as decisões últimas sobre o sentido e o estilo da vida. A pontualidade, a contabilidade, a exatidão, que coagem a complicações e extensões da vida na cidade grande, estão não somente no nexo mais íntimo com o seu caráter intelectualístico e econômico-monetário, mas também precisam tingir os conteúdos da vida e facilitar a exclusão daqueles traços essenciais e impulsos irracionais, instintivos e soberanos, que pretendem determinar a partir de si a forma da vida, em vez de recebê-la de fora como uma forma universal, definida esquematicamente. Se tais existências autocráticas e caracterizadas não são absoluta e completamente impossíveis na cidade, são contudo opostas ao seu tipo, e daí o ódio apaixonado pela cidade grande de naturezas como Ruskin e Nietzsche — naturezas que encontram o valor da vida não naquilo que é atribuível igualmente para todos, mas sim no que é peculiar e não-esquemático, e nas quais, portanto, brotam da mesma fonte tanto o ódio contra a economia monetária como contra o intelectualismo da existência.

Os mesmos fatores que, desse modo, na exatidão e na precisão de minutos da forma de vida, correm em conjunto rumo a uma formação da mais alta impessoalidade, atuam por outro lado de um modo altamente pessoal. Talvez não haja nenhum fenômeno anímico que seja reservado de modo tão incondicional à cidade grande como o caráter blasé. Ele é inicialmente a conseqüência daqueles estímulos nervosos — que se alteram rapidamente e que se condensam em seus antagonismos — a partir dos quais nos parece provir também a intensificação da intelectualidade na cidade grande. Justamente por isso homens tolos e de antemão espiritualmente sem vida não costumam ser blasé. Assim como uma vida desmedida de prazeres torna blasé, porque excita os nervos por muito tempo em suas reações mais fortes, até que por fim eles não possuem mais nenhuma reação, também as impressões inofensivas, mediante a rapidez e antagonismo de sua mudança, forçam os nervos a respostas tão violentas, irrompem de modo tão brutal de lá para cá, que extraem dos nervos sua última reserva de forças e, como eles permanecem no mesmo meio, não têm tempo de acumular uma nova. A incapacidade, que assim se origina, de reagir aos novos estímulos com uma energia que lhes seja adequada é precisamente aquele caráter blasé, que na verdade se vê em todo filho da cidade grande, em comparação com as crianças de meios mais tranqüilos e com menos variações.



A essa fonte fisiológica do caráter blasé da cidade grande somam-se as outras, que desaguam na economia monetária. A essência do caráter blasé é o embotamento frente à distinção das coisas; não no sentido de que elas não sejam percebidas, como no caso dos parvos, mas sim de tal modo que o significado e o valor da distinção das coisas e com isso das próprias coisas são sentidos como nulos. Elas aparecem ao blasé em uma tonalidade acinzentada e baça, e não vale a pena preferir umas em relação às outras. Essa disposição anímica é o reflexo subjetivo fiel da economia monetária completamente difusa. Na medida em que o dinheiro compensa de modo igual toda a pluralidade das coisas; exprime todas as distinções qualitativas entre elas mediante distinções do quanto; na medida em que o dinheiro, com sua ausência de cor e indiferença, se alça a denominador comum de todos os valores, ele se torna o mais terrível nivelador, ele corrói irremediavelmente o núcleo das coisas, sua peculiaridade, seu valor específico, sua incomparabilidade. Todas elas nadam, com o mesmo peso específico, na corrente constante e movimentada do dinheiro; todas repousam no mesmo plano e distinguem-se entre si apenas pela grandeza das peças com as quais se deixam cobrir. Em casos singulares, essa coloração, ou melhor, essa descoloração das coisas mediante sua equivalência com o dinheiro pode ser imperceptivelmente pequena; mas na relação do rico com os objetos que podem ser obtidos mediante dinheiro, talvez até mesmo no caráter total que o espírito público compartilha atualmente por toda parte com esses objetos, isso já se acumulou em uma grandeza bem perceptível. Eis porque as cidades grandes, centros da circulação de dinheiro e nas quais a venalidade das coisas se impõe em uma extensão completamente diferente do que nas situações mais restritas, são também os verdadeiros locais do caráter blasé. Nelas de certo modo culmina aquele resultado da compressão de homens e coisas, que estimula o indivíduo ao seu máximo de atuação nervosa. Mediante a mera intensificação quantitativa das mesmas condições, esse resultado se inverte em seu contrário, nesse fenômeno peculiar de adaptação que é o caráter blasé, em que os nervos descobrem a sua derradeira possibilidade de se acomodar aos conteúdos e à forma da vida na cidade grande renunciando a reagir a ela — a autoconservação de certas naturezas, sob o preço de desvalorizar todo o mundo objetivo, o que, no final das contas, degrada irremediavelmente a própria personalidade em um sentimento de igual depreciação.

Enquanto o sujeito se ajusta inteiramente por conta própria a essa forma de existência, a sua autoconservação frente à cidade grande exige-lhe um comportamento não menos negativo de natureza social. A atitude espiritual dos habitantes da cidade grande uns com os outros poderia ser denominada, do ponto de vista formal, como reserva. Se o contato exterior constante com incontáveis seres humanos devesse ser respondido com tantas quantas reações interiores — assim como na cidade pequena, na qual se conhece quase toda pessoa que se encontra e se tem uma reação positiva com todos —, então os habitantes da cidade grande estariam completamente atomizados interiormente e cairiam em um estado anímico completamente inimaginável. Em parte por conta dessa situação psicológica, em parte em virtude do direito à desconfiança que temos perante os elementos da vida na cidade grande, que passam por nós em um contato fugaz, somos coagidos àquela reserva, em virtude da qual mal conhecemos os vizinhos que temos por muitos anos e que nos faz freqüentemente parecer, ao habitante da cidade pequena, como frios e sem ânimo. Decerto, se não me engano, o lado interior dessa reserva exterior não é apenas a indiferença, mas sim, de modo mais freqüente do que somos capazes de perceber, uma leve aversão, uma estranheza e repulsa mútuas que, no momento de um contato próximo, causado por um motivo qualquer, poderia imediatamente rebentar em ódio e luta. Toda a organização interior de uma vida de circulação ampliada de tal modo baseia-se em uma gradação extremamente multifacetada de simpatias, indiferenças e aversões, das mais efêmeras como das mais duradouras. A esfera da indiferença não é assim tão grande como parece superficialmente; a atividade de nossa alma responde contudo a quase toda impressão vinda de outro ser humano com uma sensibilidade determinada de algum modo, cuja inconsciência, fugacidade e mudança parece suprimi-la em uma indiferença. De fato, essa última ser-nos-ia tão pouco natural, assim como a indistinção de sugestões recíprocas indiscriminadas nos seria insuportável. Diante desses dois perigos típicos da cidade grande, a antipatia nos protege; antagonismo latente e estágio prévio do antagonismo prático, ela realiza as distâncias e os afastamentos, sem o que esse tipo de vida não se poderia realizar: suas medidas e suas misturas, o ritmo de seu aparecimento e desaparecimento, as formas nas quais ela se satisfaz — isso forma, com os motivos unificadores em sentido estrito, o todo indissociável da configuração da vida na cidade grande: o que aparece aqui imediatamente como dissociação é na verdade apenas uma de suas formas elementares de socialização.


Essa reserva, com o seu harmônico da aversão oculta, aparece contudo novamente como forma ou roupagem de um ser espiritual muito mais geral da cidade grande. Ela garante precisamente ao indivíduo uma espécie e uma medida de liberdade pessoal, com relação à qual não há nenhuma analogia em outras situações: com isso ela remonta a uma das grandes tendências de desenvolvimento da vida social, a uma das poucas para a qual se pode encontrar uma fórmula aproximadamente geral. O estádio mais inicial das formações sociais, que se encontra tanto nas formações históricas como naquelas que se formam atualmente, é este: um círculo relativamente pequeno, com uma limitação excludente rigorosa perante círculos vizinhos, estranhos ou de algum modo antagônicos, e em contrapartida com uma limitação includente estrita em si mesmo, que permite ao membro singular apenas um espaço restrito de jogo para o desdobramento de suas qualidades peculiares e movimentos mais livres, de sua própria responsabilidade. Assim começam os grupos políticos e familiares, as formações de partidos, as confrarias religiosas; a autoconservação de associações muito jovens exige o estabelecimento rigoroso de limites e a unidade centrípeta e não pode portanto conceder ao indivíduo nenhuma liberdade e particularidade de desenvolvimento interior e exterior. A partir desse estádio, a evolução social bifurca-se simultaneamente para dois lados diferentes, e no entanto correspondentes. Na medida em que o grupo cresce — numericamente, espacialmente, em significação e em conteúdos de vida —, então justamente afrouxa-se a sua unidade interior imediata; a pregnância da delimitação originária frente aos outros se atenua mediante relações mútuas e conexões. Ao mesmo tempo, no grupo que agora cresceu, o indivíduo ganha liberdade de movimento para muito além da delimitação inicial, invejosa, e ganha uma peculiaridade e particularidade para as quais a divisão do trabalho dá oportunidade e necessidade. Segundo essa fórmula desenvolveram-se o estado e o cristianismo, as guildas e os partidos políticos, assim como inumeráveis outros grupos, tanto mais naturalmente as condições e forças particulares do singular modificam o esquema geral. Isso também me parece ser claramente perceptível no desenvolvimento da individualidade no interior da vida citadina. A vida na cidade pequena, tanto na Antiguidade como na Idade Média, impunha ao singular, limites de movimento e de relações em direção ao exterior e de autonomia e diferenciação em direção ao interior, sob os quais o homem moderno não conseguiria respirar — ainda hoje o habitante da cidade grande sente um pouco dessa espécie de aperto ao se mudar para uma cidade pequena. Quanto menor é o tal círculo que forma o nosso meio, quanto mais limitadas as relações que dissolvem os limites perante os outros, com tanto mais inquietude ele vigia as realizações, a condução da vida e a mentalidade do indivíduo, e tanto antes uma especificação quantitativa e qualitativa explodiria o quadro do todo. Nessa direção, a antiga pólis parece ter possuído inteiramente o caráter de cidade pequena. A ameaça constante de sua existência por inimigos próximos e longínquos possibilitou aquela coesão rígida na relação política e militar, aquela fiscalização do cidadão pelo cidadão, aquele ciúme do todo diante do singular, cuja vida peculiar era mantida em tal medida em um nível baixo, que o máximo que ele tinha como compensação era o despotismo com relação a sua casa. A enorme mobilidade e agitação, o colorido único da vida ateniense explica-se talvez pelo fato de que um povo de personalidades formadas de modo incomparavelmente individual lutava contra a pressão interna e externa constante de uma cidade pequena desindividualizadora. Isso resultou em uma atmosfera de tensão, em que os mais fracos foram submetidos e os mais fortes foram estimulados às mais apaixonadas provas de si mesmos. E precisamente por isso ocorreu em Atenas aquele florescimento que se precisa designar, sem se poder circunscrevê-lo com exatidão, como o "universalmente humano" no desenvolvimento espiritual de nossa espécie. Pois esse é o nexo cuja validade tanto objetiva como histórica aqui se assevera: os conteúdos e formas de vida os mais amplos e universais estão intimamente ligados com os mais individuais; ambos têm seu estádio prévio comum, ou mesmo seu opositor comum, nas configurações e agrupamentos restritos, cuja autoconservação defendem tanto contra a amplitude e universalidade que lhes é exterior, como contra o que se move livremente e é individual em seu interior. Assim como na época feudal o homem "livre" era aquele que estava sob o direito comum, isto é, sob o direito do maior círculo social, mas não era livre quem extraía seu direito apenas do círculo restrito de uma corporação feudal, sob a exclusão daquele outro — assim ocorre hoje, em um sentido mais refinado e espiritualizado, com o habitante da cidade grande, que é "livre" em contraposição às miudezas e prejuízos que limitam o habitante da cidade pequena. Pois a reserva e indiferença mútuas, as condições espirituais de vida dos círculos maiores, nunca foram sentidas tão fortemente, no que diz respeito ao seu resultado para a independência do indivíduo, do que na densa multidão da cidade grande, porque a estreiteza e proximidade corporal tornam verdadeiramente explícita a distância espiritual. Decerto é apenas o reverso dessa liberdade se, sob certas circunstâncias, em nenhum lugar alguém se sente tão solitário e abandonado como precisamente na multidão da cidade grande; pois aqui, como sempre, não é de modo algum necessário que a liberdade do ser humano se reflita em sua vida sentimental como um sentir-se bem. Não é apenas a grandeza imediata do distrito e o número de pessoas que, em virtude da correlação histórico-universal entre a ampliação do círculo e a liberdade pessoal, interior e exterior, tornam a cidade grande o local dessa última, mas sim o fato — ultrapassando essa amplitude de visão — de que as cidades grandes são também os locais do cosmopolitismo. De modo comparável à forma do desenvolvimento financeiro — a partir de uma determinada grandeza a propriedade desenvolve-se em progressões cada vez mais rápidas e como que por si mesma —, o círculo de visão, as relações econômicas, pessoais e espirituais da cidade, os seus arredores ideais, assim que ultrapassam um determinado limiar, ampliam-se como em progressão geométrica. Toda expansão dinâmica realizada torna-se patamar para uma nova expansão, não igual, mas maior. Junto aos fios que são tecidos por ela crescem continuamente outros novos, como por si mesmos, exatamente do mesmo modo como no interior da cidade o unearned increment da renda da terra conduz o proprietário a ganhos que brotam de si mesmos, mediante o simples aumento do tráfico. Nesse ponto a quantidade da vida converte-se de modo muito imediato em qualidade e caráter. A esfera de vida da cidade pequena é, no principal, fechada em si mesma e consigo mesma. Para a cidade grande, é decisivo o fato de que sua vida interior se espraia em ondas sobre um território nacional ou internacional mais amplo. Weimar não é nenhum contra-exemplo, pois sua significação estava ligada a personalidades singulares e morreu com elas, enquanto a cidade grande se caracteriza precisamente em virtude de sua independência essencial, mesmo com relação às personalidades singulares mais significativas — a contrapartida e o preço da independência que o singular desfruta em seu interior. A essência mais significativa da cidade grande repousa nessa grandeza funcional, para além de seus limites físicos: e essa atuação sua atua de volta sobre si mesma e dá peso, consideração e responsabilidade a sua vida. Assim como um ser humano não se esgota nos limites de seu corpo ou do distrito que ele preenche com sua atividade imediata, mas somente na soma dos efeitos que se irradiam dele temporal e espacialmente: assim também uma cidade constitui-se da totalidade de seus efeitos, que ultrapassam o seu imediatismo. Só esse é o seu âmbito real, no qual se exprime o seu ser. Isso já indica que a liberdade individual, a complementação lógica e histórica dessa amplitude, não deve ser compreendida apenas em sentido negativo, como mera liberdade de movimento e ausência de preconceitos e filisteísmos. Seu traço essencial é de fato que a particularidade e incomparabilidade que, no final das contas, toda natureza possui, se exprime na configuração da vida. Que sigamos as leis da própria natureza — e isso é decerto liberdade —, só nos é claro e convincente, assim como aos outros, quando as manifestações dessa natureza se distinguem também das dos outros; somente a sua não-intercambialidade com as dos outros comprova que nosso modo de existência não nos é imposto pelos outros. Inicialmente, as cidades são o local da mais elevada divisão econômica do trabalho; elas criam assim fenômenos tão extremos como, em Paris, a lucrativa profissão de quatorzième: pessoas, que se dão a conhecer por letreiros em suas casas, que à hora do jantar estão prontas, com trajes adequados, a serem rapidamente convocadas a participar de jantares em que o número de pessoas à mesa seja treze. Precisamente na medida de sua expansão, a cidade oferece cada vez mais as condições decisivas da divisão do trabalho: um círculo que, mediante a sua grandeza, é capaz de absorver uma variedade extremamente múltipla de realizações, ao mesmo tempo em que a concentração dos indivíduos e sua luta pelo cliente coagem o singular a uma especialização das realizações, na qual ele não possa ser tão facilmente desalojado por um outro. O decisivo é que a vida citadina metamorfoseou a luta com a natureza por obtenção de alimento em uma luta entre os homens, de sorte que o ganho que se disputa não é concedido pela natureza, mas sim pelos homens. Pois nisso atua não somente a fonte mencionada da especialização, mas também uma mais profunda: aquele que oferece precisa tratar de criar necessidades sempre novas naqueles que corteja. A necessidade de especializar as realizações a fim de encontrar uma fonte de ganho ainda não esgotada, uma função que não seja facilmente substituível, estimula a diferenciação, o refinamento, o enriquecimento das necessidades do público, que acabam evidentemente por conduzir a variedades pessoais crescentes no interior desse público.



E isto desemboca em uma individualização espiritual (em sentido estrito) dos atributos anímicos, propiciada, em virtude de sua grandeza, pela cidade. É evidente uma série de causas. Inicialmente, a dificuldade de fazer valer a própria personalidade nas dimensões da vida na cidade grande. Onde o aumento quantitativo de significação e energia se aproxima de seus limites, o homem agarra-se à particularização qualitativa, a fim de, por meio do excitamento da sensibilidade de distinção, ganhar de algum modo para si a consciência do círculo social: o que conduz finalmente às mais tendenciosas esquisitices, às extravagâncias específicas da cidade grande, como o exclusivismo, os caprichos, o preciosismo, cujo sentido não está absolutamente no conteúdo de tais comportamentos, mas sim em sua forma de ser diferente, de se destacar e, com isso, de se tornar notado — para muitas naturezas definitivamente o único meio de resguardar para si, mediante o desvio pela consciência dos outros, alguma auto-estima e preencher um lugar na consciência. No mesmo sentido atua um momento inaparente, mas recorrente, em seus efeitos decerto perceptível: a brevidade e raridade dos encontros que cada singular concede aos outros — comparado com o tráfico na cidade pequena. Pois dessa forma a tentação de se apresentar do modo o mais característico, gracioso, concentrado fica muito mais forte do que onde um se encontrar longa e freqüentemente propicia aos outros uma imagem inequívoca da personalidade.

Esse me parece ser o motivo mais profundo pelo qual justamente a cidade grande sugere a pulsão rumo à existência pessoal a mais individual — pouco importa se sempre com razão e com sucesso. O desenvolvimento da cultura moderna caracteriza-se pela preponderância daquilo que se pode denominar espírito objetivo sobre o espírito subjetivo, isto é, tanto na linguagem como no direito, tanto na técnica de produção como na arte, tanto na ciência como nos objetos do âmbito doméstico encarna-se uma soma de espírito, cujo crescimento diário é acompanhado à distância cada vez maior e de modo muito incompleto pelo desenvolvimento espiritual dos sujeitos. Se considerarmos, por exemplo, a cultura monstruosa que se encarnou nos últimos 100 anos em coisas e conhecimentos, em instituições e bem-estar, e a compararmos com o progresso da cultura dos indivíduos no mesmo tempo — pelo menos nos estratos mais elevados —, vemos uma diferença de riqueza terrível entre as duas, e mesmo, em muitos pontos, um retrocesso da cultura dos indivíduos com relação à espiritualidade, delicadeza e idealismo. Essa discrepância é essencialmente o sucesso da divisão do trabalho; pois esta exige do singular uma realização cada vez mais unilateral, cuja potencialização freqüentemente deixa atrofiar a sua personalidade como um todo. De qualquer modo, o indivíduo está cada vez mais incapacitado a se sobrepor à cultura objetiva. Ele foi rebaixado a uma quantité négligeable, a um grão de areia em uma organização monstruosa de coisas e potências, que gradualmente lhe subtraiu todos os progressos, espiritualidades e valores e os transladou da forma da vida subjetiva à forma da vida puramente objetiva, talvez de modo menos consciente do que na prática e nos obscuros sentimentos que dela se originam. Basta notar que as grandes cidades são os verdadeiros cenários dessa cultura, que cresce para além de tudo o que é pessoal. Nas construções e instituições de ensino, nos milagres e confortos da técnica, que domina o espaço, nas formações da vida em comum e nas instituições visíveis do estado revela-se um espírito que se tornou tão impessoal, que se cristalizou em uma multiplicidade de tal modo imponente, que a personalidade, por assim dizer, não se pode contrapor a isso. Por um lado, a vida torna-se infinitamente mais fácil, na medida em que estímulos, interesses, preenchimentos de tempo e consciência se lhe oferecem de todos os lados e a sugam em uma corrente na qual ela praticamente prescinde de qualquer movimento para nadar. Mas, por outro lado, a vida compõe-se cada vez mais desses conteúdos e programas impessoais, que pretendem recalcar as colorações verdadeiramente pessoais e o que é incomparável. E isso de tal modo, que para salvar o que há de mais pessoal é preciso convocar o que há de extremo em peculiaridade e particularização, e é preciso exagerá-las para que se possa tornar audível, inclusive para si mesmo. A atrofia da cultura individual mediante a hipertrofia da cultura objetiva é um fundamento do ódio irado que os pregadores do individualismo extremo, Nietzsche à frente, nutrem contra as grandes cidades; mas é também uma razão pela qual eles são tão apaixonadamente queridos precisamente nas grandes cidades, pois surgem ao habitante destas últimas como os arautos e redentores de sua mais insaciável nostalgia.

Na medida em que se pergunta pela posição histórica das duas formas de individualismo, que são providas pelas relações quantitativas da cidade grande: a independência individual e a formação do modo pessoal e específico, a cidade grande ganha um valor completamente novo na história universal do espírito. O século XVIII encontrou o indivíduo em ligações violentadoras, que se tornaram sem sentido, de tipo político e agrário, corporativo e religioso — limitações que coagiam os homens como que a uma forma não natural e a desigualdades há muito injustas. Nesta situação surgiu o clamor por liberdade e igualdade — a crença na completa liberdade de movimento do indivíduo em todas as relações sociais e espirituais, que permitiria evidenciar imediatamente em tudo o seu núcleo nobre e comum, tal como a natureza o teria semeado em todos e a sociedade e a história o teriam apenas deformado. Ao lado desse ideal do liberalismo cresceu no século XIX, por um lado por intermédio de Goethe e do Romantismo, por outro por meio da divisão econômica do trabalho, a idéia de que os indivíduos, libertos das ligações históricas, querem então também se distinguir uns dos outros. Agora o suporte de seu valor não é mais o "homem universal" em cada singular, mas sim precisamente a unicidade e incomparabilidade qualitativas. Na luta e nas escaramuças mútuas desses dois tipos de individualismo, a fim de determinar o papel dos sujeitos no interior da totalidade, transcorre a história interior e exterior de nossa época. A função das cidades grandes é fornecer o lugar para o conflito e para as tentativas de unificação dos dois, na medida em que as suas condições peculiares se nos revelam como oportunidades e estímulos para o desenvolvimento de ambas. Com isso as cidades grandes obtêm um lugar absolutamente único, prenhe de significações ilimitadas, no desenvolvimento da existência anímica; elas se mostram como uma daquelas grandes formações históricas em que as correntes opostas que circunscrevem a vida se juntam e se desdobram com os mesmos direitos. Mas com isso — sejam-nos simpáticos ou antipáticos seus fenômenos singulares — elas saem completamente da esfera perante a qual nos é adequada a atitude do juiz. Na medida em que tais potências penetraram na raiz e na coroa de toda a vida histórica, a que pertencemos na existência fugidia de uma célula, nossa tarefa não é acusar ou perdoar, mas somente compreender1.



Nota do tradutor

"As grandes cidades e a vida do espírito" ("Die Grossstädte und das Geistesleben") — também conhecido como "A metrópole e a vida mental" — é o texto de uma conferência proferida por Georg Simmel (1858-1918) por ocasião da Exposição das Cidades, ocorrida em Dresden, Alemanha, no inverno de 1902-03. Durante este evento, outros intelectuais alemães da época também proferiram conferências, mas a de Simmel foi, de longe, a de melhor fortuna. Trata-se, entretanto de um rearranjo de idéias já há tempos divulgadas pelo autor, pelo menos desde o final da década de 1880, e que ele já tivera, àquela altura, oportunidade de apresentar em um de seus livros mais importantes, a Filosofia do dinheiro, publicado em 1900 (um livro que tem em comum com a Interpretação dos sonhos não somente o ano de sua publicação). Com efeito, a conferência de 1903 é uma espécie de versão ampliada do capítulo final de Filosofia do dinheiro, intitulado "O estilo de vida". Não obstante, trata-se de um recorte especialmente feliz, que permitiu em poucas páginas sintetizar as linhas mestras das idéias expostas na segunda parte do livro de 1900. Não por acaso, Simmel, ao final da conferência, remete seus leitores a este mesmo livro, no qual tudo se encontra melhor desenvolvido. Ambos, o livro e a conferência, tornaram-se — embora em momentos e com ênfases variadas — textos clássicos das ciências sociais.

É justamente essa a razão que justifica a publicação da presente versão em Mana, mas não somente. Os leitores brasileiros e portugueses há muito conhecem "A metrópole e a vida mental" (do inglês "The Metropolis and Mental Life"), que chegou até nós em uma coletânea intitulada O fenômeno urbano, organizada por Otávio Velho, e publicada ao final dos anos 1960. Desde a década seguinte, Gilberto Velho passou a incorporar as reflexões de Simmel em seus trabalhos, de tal modo que o destino dessa conferência parece estar, em nosso país, definitivamente ligado ao PPGAS/Museu Nacional. Não surpreende, portanto, que em 2005, um grupo de pesquisadores desta instituição tenha se reunido para ler a Filosofia do dinheiro — pois como Simmel muito bem percebeu, quem herda não rouba.

Sei que irei morrer sem herdeiros espirituais (e é bom que seja assim). Meu espólio é como uma herança em dinheiro vivo, que é dividida entre muitos herdeiros: cada um converte a sua parte em alguma aquisição de acordo com a sua natureza, de modo que não se pode enxergar a sua proveniência daquele espólio

Embora na hora de sua morte Simmel não tenha nomeado herdeiros, eles não deixaram de proliferar desde então.

Sobre a tradução. Como, por um lado, a tradução dos anos 1960 foi baseada na tradução norte-americana do texto de Simmel (uma vertente poderosa na história de sua recepção) e, por outro, o livro no qual ela foi publicada se encontra há muito esgotado, julguei válido oferecer uma tradução a partir do texto original, tomado agora do sétimo volume da edição das obras completas de Georg Simmel, ainda em curso pela editora Suhrkamp de Frankfurt-am-Main. A bibliografia nacional e internacional sobre Simmel, por sua vez, oferece amplos e variados materiais para subsidiar e ampliar a discussão desse texto notável, razão pela qual esta nota se abstém de fazê-lo.



Notas

* Texto original: "Die Großstädte und das Geistesleben". In: SIMMEL, Georg. Gesamtausgabe. Frankfurt: M. Suhrkamp. 1995. vol. 7. pp. 116-131. Tradução de Leopoldo Waizbort.

1 O conteúdo desta conferência, por sua própria natureza, não remonta a uma literatura própria. A fundamentação e apresentação de suas principais idéias histórico-culturais é dada pela minha Philosophie des Geldes.


Fonte:

Mana
ISSN 0104-9313 versão impressa
Mana v.11 n.2 Rio de Janeiro out. 2005
doi: 10.1590/S0104-93132005000200010

terça-feira, 24 de março de 2009

Os Tambores do Antropólogo: Antropologia Pós-Social e Etnografia




Marcio Goldman
Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro


“At Los Alamos things were pretty tense from all the work, and there wasn’t any way to amuse yourself (…). But I discovered some drums that the boys’ school, which had been there previously, had collected: Los Alamos was in the middle of New Mexico, where there are lots of Indian villages. So I amused myself (…) just making noise, playing on these drums. I didn’t know any particular rhythm, but the rhythms of the Indians were rather simple, the drums were good, and I had fun (…). When the war was over, and we were going back to “civilization,” the people there at Los Alamos teased me that I wouldn’t be able to play drums any more because they made too much noise. And since I was trying to become a dignified professor in Ithaca, I sold the drum that I had bought sometime during my stay at Los Alamos” (Richard Feynman — Prêmio Nobel de Física, 1965, que trabalhou no Projeto Manhattan).


O convite para publicar o texto que se segue na Ponto.Urbe, a revista eletrônica do Núcleo de Antropologia Urbana, renova a gentileza que fez com que, há cinco anos, um artigo de minha autoria tivesse sido publicado na edição comemorativa dos 50 anos da Revista de Antropologia. A “Apresentação” do número explicava a publicação do texto sustentando que se tratava de “ressaltar, não apenas a presença e importância da etnografia ao longo das páginas da Revista, desde os primeiros números (…), como o papel central e específico que ocupa na prática e na análise antropológica” (
Magnani 2003: 314). E, de fato, este era um dos pontos centrais de “Os Tambores dos Mortos e os Tambores dos Vivos. Etnografia, Antropologia e Política em Ilhéus, Bahia” (Goldman 2003).

No convite feito agora, o editor daquele número especial, José Guilherme Magnani, me sugeriu retomar a questão da etnografia (“considerações, dilemas, desafios contemporâneos…”) e me perguntou se “dá ainda para tirar algum som” daqueles tambores. Creio que estes, na verdade, não pararam de tocar nesses últimos anos. Primeiro, em mim mesmo — e não foi por acaso que utilizei o texto como prólogo de meu livro sobre a política em Ilhéus tal qual pensada pelos ativistas do movimento negro local (Goldman 2006). Segundo, na simpatia com que foi recebido por muitos, em especial por estudantes que começam a se envolver com o trabalho de campo. Finalmente, mas não menos importante, em algumas observações menos simpáticas que sempre acompanharam as diversas apresentações que fiz do texto.

Assim, ao apresentar uma de suas primeiras versões em um encontro de antropologia, soube que alguém comentou que etnógrafos devem escutar seus informantes, não tambores — ainda mais quando tocados pelos mortos. Reação que não é difícil de compreender quando alguém se atreve a utilizar como instrumentos metodológicos uma experiência mística e um sonho! Mas, justamente, um outro ponto do artigo era tentar ilustrar e pensar os limites da nossa capacidade de levar os nativos efetivamente a sério, seja quando pesquisamos candomblé, seja quando estudamos política.

Por outro lado, não foram poucos os que observaram, direta ou indiretamente, o estranho uso que o texto faz de muitas idéias e uns poucos conceitos extraídos do pensamento de Deleuze e Guattari. Aqui, o autor pode ser preso tanto porque tem um cachorro como porque não o tem. Assim, do ponto de vista de antropólogos menos simpáticos às relações de sua disciplina com a filosofia — ou, em todo caso, com a filosofia deleuzeguattariana —, parece difícil compreender como noções aparentemente tão abstratas ou estranhas como “devir” ou como “minoritário” poderiam servir para pensar uma atividade tão concreta e tão terra-a-terra quanto o trabalho de campo ou mesmo a etnografia. Por outro lado, cientistas sociais mais simpáticos a Deleuze e Guattari — para não falar em filósofos mais ou menos devotos — não deixaram de assinalar criticamente essa tentativa paradoxal de tentar salvar uma antropologia “tradicional” utilizando uma filosofia revolucionária.

O problema aqui é que, ao menos do meu ponto de vista, dois dos pontos mais interessantes da filosofia de Deleuze e Guattari consistem justamente, primeiro, no fato de seus conceitos só poderem ser criados e utilizados a partir de experiências muito concretas; e segundo — pragmatismo “oblige” — de, conseqüentemente, só existirem em sua capacidade de utilização e transformação de acordo com as variadas experiências de diferentes usuários dedicados a propósitos muito heterogêneos.

É nessa direção que a antropologia pode reencontrar os passos da esquizoanálise de Deleuze e Guattari, permitindo vislumbrar uma espécie de esquizoetnologia, onde a potencialidade, em geral reprimida, do par paciente-analista explorada pela primeira se desloca para aquela do par nativo-etnógrafo. Redefinição da antropologia que, por sua vez, deveria afetar e contaminar produtivamente práticas e pensamentos inspirados nesses mesmos filósofos. Se as tentativas coletivas de reapropriação da vida por meio de processos de singularização exigem, como escreveu
Guattari (1986: 118), uma “nova teoria dos arcaísmos”, e se estes consistem não em regressões, mas na “utilização diferente de elementos preexistentes, de comportamento ou de representação, para construir uma outra superfície de vida ou um outro espaço afetivo, para dispor de um outro território existencial”, a antropologia poderia ser parte desse processo. Ela seria, assim, uma espécie de cartografia de territórios existenciais reais e/ou em vias de existir — desde que entendamos por território o “conjunto dos projetos ou das representações sobre as quais vão se desenvolver pragmaticamente uma série de comportamentos, de investimentos, no tempo e nos espaços sociais, culturais, estéticos, cognitivos”.

Gostaria, pois, de aproveitar o convite e tentar não apenas refletir sobre questões levantadas no texto de 2003, como, principalmente, tentar articulá-lo com o que vim fazendo desde então. Ou, como escrevi a ele, para “tirar algum som” daqueles tambores é preciso trocar seus couros, dar-lhes um banho de dendê e afiná-los. Começo, contudo, com uma lembrança mais antiga.

Há mais de dez anos, em um encontro que serviria de base para a constituição do Núcleo de Antropologia da Política (NuAP), Moacir Palmeira propôs que uma das questões que todos os membros do núcleo deveriam contemplar era a dos efeitos produzidos pelo fato de se pesquisar política em contexto etnográficos onde o mesmo pesquisador, em outro momento, havia pesquisado outro tema qualquer. Nunca levamos efetivamente a sério, de forma coletiva, a sugestão, mas, pessoalmente, devo dizer que ela nunca saiu da minha cabeça. Sem dúvida, porque, a partir de 1996, fui estudar política no mesmo lugar em que, anos antes, eu havia estudado candomblé.

O texto sobre os tambores refletia, assim, esse movimento de passagem de um estudo sobre candomblé para um estudo sobre política no mesmo contexto etnográfico. Ora, há cerca de dois anos, estou tentando retornar aos estudos sobre o candomblé — sempre no Matamba Tombenci Neto, terreiro de nação angola, situado no bairro da Conquista, em Ilhéus, no sul da Bahia. O que tornaria possível completar a reflexão do texto anterior a partir desse segundo movimento, desta vez da política ao candomblé.

Esse retorno ao candomblé, entretanto, foi muito influenciado e, até certo ponto, determinado, por uma experiência teórico-pedagógica que eu e Eduardo Viveiros de Castro (meu antigo orientador e atual colega) tentamos conduzir já há cerca de três anos no PPGAS do Museu Nacional. Experiência que envolveu, entre outras coisas, a criação de dois sites de tipo “wiki” na Internet (o Amazone e o Abaeté — atualmente em fase de migração para outra plataforma), de uma “rede”, que batizamos de “Rede de Antropologia Simétrica Abaeté”, da realização ininterrupta de seminários todas as sextas-feiras à tarde (!) e de dois cursos realizados em 2006, um no Museu Nacional e um na USP. O curso do Museu foi por nós batizado de “Introdução a uma Antropologia Pós-Social: Redes, Multiplicidades e Simetrizações”; o da USP se chamou “Simetria, Reversibilidade e Reflexividade na Antropologia Contemporânea”.

Como escreveu Guimarães Rosa (em Tutaméia), “tudo se finge primeiro; germina autêntico é depois”. Foi apenas ao longo desses cursos que começamos a levar a sério a expressão “pós-social”. Fomos compreendendo, creio, que só faz sentido empregar o prefixo “pós” quando ele é sinônimo de “pré”. Ou seja, só vale a pena falar em “pós-social” quando já se está pensando em algo ainda por vir, mas que não sabemos e não podemos saber o que é. Este ponto é crucial porque só assim podemos nos livrar dos fantasmas evolucionistas que espreitam expressões como essas: apostamos em um futuro, mas não sabemos e não podemos saber que futuro é esse. E se o chamado “pós-modernismo” (dentro e fora da antropologia) nunca foi capaz de sugerir respostas tão interessantes quanto as questões que levantava, isso se deve, exatamente, à sua insistência em se apresentar como um “estágio” posterior (e superior) à modernidade, em lugar de se pensar como pura transição.

O primeiro passo na direção desse futuro que não podemos saber qual é consiste em esboçar linguagens conceituais alternativas, capazes de substituir noções tidas por adquiridas. Por quê? Porque já faz algum tempo que noções como sociedade, identidade e história (entre outras) começaram a se assemelhar a esses remédios que perderam seu prazo de validade (
Latour 2005: 160) e que, em um primeiro momento, se tornam inócuos para, mais tarde, passarem a produzir efeitos essencialmente negativos. Em outros termos, essas noções parecem ter perdido seu poder de nos fazer pensar. Para readquirir esse poder, não basta, é claro, se contentar com os “outros” que cada noção dessas contém como seu reverso: indivíduo, cultura, natureza, pluralismo, relativismo etc. Mais, ou menos, que “criticá-las”, trata-se de abandoná-las de forma radical em benefício de novas construções conceituais. Ocorre, apenas, que no caso da antropologia — ciência empírica e ciência do observado, como já lembrava, há muito tempo, Lévi-Strauss — essas construções conceituais estão necessariamente submetidas à pesquisa etnográfica e a um ponto de vista que não é o nosso.

Claro que a elaboração de linguagens alternativas nunca foi coisa fácil, nem consensual — e nem haveria porque sê-lo. Apesar disso, no caso brasileiro, onde dificilmente discordâncias intelectuais são aceitas como motores potenciais para a produção de novas idéias, a tarefa parece particularmente complicada. Como sabemos, aqui adoramos os debates intelectuais e mandamos nossos alunos estudar, por exemplo, as famosas disputas entre Leach e Fortes ou entre Sahlins e Obeysekere. Mas nós os adoramos desde que sejam travados bem longe, em Cambridge, em Chicago ou em algum outro lugar do primeiro mundo antropológico. Quando os debates acontecem aqui mesmo, entre nós, costumamos imediatamente procurar as (más) intenções pessoais subjacentes e imputar a pelo menos um dos lados em oposição propósitos divisionistas destrutivos, concluindo que o melhor é evitar o assunto. Tudo se passa, como observou judiciosamente
Ordep Serra (1995: 8-9), como se entre nós tendesse a vigorar “uma curiosa regra da etiqueta (…): a praxe de só discutir com os mortos” — quando qualquer pessoa de bom senso sabe que, bem ao contrário, que com os mortos não se deve discutir!

No nosso caso, a dificuldade talvez derive de dois pontos sobre os quais, não obstante, não é possível deixar de insistir. Primeiro, uma recusa — metodológica, eu diria — de aceitar como dados ou como definitivos autores e conceitos consagrados. O fato de ter criado um conceito de sociedade, não concede, por exemplo, nenhuma eternidade a Durkheim; reciprocamente, o fato de ter sido criado por Durkheim, não faz com que o conceito de sociedade tenha que ser aceito como definitivo. Segundo, a necessidade absoluta de (re)aproximar a “etnologia indígena” da “antropologia das sociedades complexas”, reaproximação que, curiosamente, parece particularmente irritante. Provavelmente porque — além, é claro, de não respeitar os feudos institucionalmente estabelecidos — leva às últimas conseqüências a recusa do evolucionismo e do progresso cujas virtudes os antropólogos cantam, mas praticam cada vez mais raramente nessa época de sucesso de certas modalidades contemporâneas de antropologia aplicada, obrigadas, por definição, a conceder universalidade a valores, princípio e modos de pensar sempre particulares e, mais grave, dominantes.

Não há nenhum romantismo, nem nenhum democratismo, aqui. É evidente que consideramos o que fazemos mais interessante do que o que não queremos fazer. Apenas não é necessário conceder a essas preferências nenhum fundamento transcendente ou absoluto. A criação ou ativação de novas idéias e conceitos pode ser efetuada por meio de um procedimento que eu denominaria “arrebatamento” (idéias, conceitos, ou mesmo teorias, podem ser desterritorializados de seu solo original e enxertados em novos contextos, onde se articularão com distintos problemas, levantarão novas questões e apontarão outras respostas) ou por “confrontação” (quando buscamos opor a idéias, conceitos e teorias bem consagrados outras formas de pensar). Nesse último caso, o efeito de desterritorialização é obtido pela desestruturação de um território aparentemente seguro e bem protegido:

“Um sistema pontual será tão mais interessante à medida que um músico, um pintor, um escritor, um filósofo se oponha a ele, e até o fabrique para opor-se a ele, como um trampolim para saltar. A história só é feita por aqueles que se opõem à história (e não por aqueles que se inserem nela, ou mesmo a remanejam). Não é por provocação, mas porque o sistema pontual que encontraram pronto ou que eles próprios inventaram permitia essa operação” (
Deleuze e Guattari 1980: 362-363).


* * *


Parecemos longe da etnografia, mas tentarei tornar tudo isso um pouco mais palpável.

Quando fui estudar a política em Ilhéus já tendo estudado o candomblé lá mesmo, foi quase inevitável levantar a seguinte questão: serei capaz de levar a sério o que meus amigos têm a dizer não apenas sobre os orixás, mas também sobre a democracia? Porque, na verdade, tudo se passa como se fosse mais fácil ouvir o que os “informantes” têm a dizer sobre os orixás do que sobre os políticos. Por quê? Provavelmente porque como temos “certeza” que os primeiros não existem, nada do que os “crentes” dizem sobre ele pode confrontar nosso saber. Ao contrário, certos de que a democracia existe, ou ao menos pode existir, o que eles dizem tem a perigosa capacidade de nos chocar.




Assim, quando comecei a estudar política onde estudara candomblé, descobri rapidamente que agora o crédulo era eu e os céticos meus amigos. E passei a me perguntar quais poderiam ser os efeitos dessa inversão para o estudo de instituições, valores ou processos que a sociedade à qual pertence o antropólogo parece considerar centrais. Ou, em outros termos, minha questão passou a ser a possibilidade de conduzir um experimento antropológico onde tudo se passa como se os “nativos” estivessem plenamente qualificados a falar sobre a democracia. Onde, enfim, eu teria algo a aprender com eles sobre o modo de funcionamento desse sistema, assim como aprendera sobre o candomblé. No final, é claro, fiquei plenamente convencido de que meus amigos de Ilhéus são capazes de revelar aspectos do funcionamento da democracia que nós geralmente não enxergamos justamente porque com eles temos um comprometimento excessivo. O que significa, talvez, que acabei tratando meus amigos como antropólogos capazes de análises melhores, ou mais perspicazes, do que as minhas.

De novo, contudo, não há nenhum romantismo ou ingenuidade aqui. Sei perfeitamente que a condição para que aquilo que meus amigos dizem possa eventualmente receber um mínimo de atenção na academia é que eu seja capaz de “traduzir” o que dizem e fazem para uma forma aceitável — ou, pelo menos, difícil de recusar com muita rapidez — por parte de intelectuais e acadêmicos. Ou, em outras palavras, que eu seja capaz de “simetrizar” seus saberes com aqueles dominantes. Em outros termos, e a posteriori, creio ser possível dizer, hoje, que o que tentei fazer se situa — se me permitem uma imagem tentadora para quem estuda candomblé — em uma espécie de encruzilhada de quatro caminhos: a antropologia simétrica, de
Bruno Latour (1991); a antropologia reversa, de Roy Wagner (1981); a antropologia reflexiva, de Marilyn Strathern (1987); a filosofia da diferença de Gilles Deleuze e Félix Guattari (1980).

Aqui, é crucial ter muito cuidado com o sentido em que cada um desses termos é empregado. Primeiro, simetria não significa nem justiça, nem igualdade, nem eqüidade, nem nenhum desses nobres ideais aos quais não há nada a opor, a não ser o fato de que não é disso que se trata aqui. A simetria não é sequer um princípio geral funcionando da mesma forma em todas as partes. Basta observar, por exemplo, como os “não-humanos” que Bruno Latour pretendeu colocar em rede com os “humanos” a fim de evitar os dilemas suscitados pela oposição entre natureza e cultura tendem a ser coisas ou objetos em suas famosas “redes sociotécnicas”, mas precisam ser substituídos por animais, vegetais, minerais e espíritos quando estudamos sociedades indígenas ou religiões afro-brasileiras. É bem possível mesmo que a verdadeira medida da nossa capacidade de simetrização sejam as transformações simétricas que essa operação suscita ou não, ou seja, o fato de que nossos conceitos e nosso pensamento devem se transformar simetricamente aos conceitos e pensamentos que transformam quando a eles se aplicam. Donde uma certa vantagem do termo “simetrização” sobre “simetria”. Pois o segundo pode, por vezes, sugerir a idéia de um cancelamento teórico e progressivo das diferenças, enquanto simetrização indica inequivocamente uma prática destinada a enfatizar as diferenças em seu sentido intensivo.

É curioso observar, aliás, que a posição de Latour em relação à antropologia parece vir se modificando ao longo do tempo. Assim, se em
1991, ele anunciava sua “antropologia simétrica”, em 2005, parece mais interessado em uma nova sociologia. É verdade que mesmo aí Latour (2005: 41) escreve que para que “a sociologia possa enfim se tornar tão boa quanto a antropologia”, é necessário “conceder aos membros das sociedades contemporâneas tanta flexibilidade para definir a si mesmos quanto aquela oferecida pelos etnógrafos”. Mas esta é, sobretudo, uma derradeira e aparente homenagem, que logo se converte em crítica aberta. Pois tudo indica que o que o autor deseja provar não é que sociologia seja apenas “tão boa” quanto a antropologia, mas sim melhor do que ela: “para o melhor e para o pior, e ao contrário de sua irmã a antropologia, a sociologia não se satisfez jamais com a pluralidade das metafísicas: ela tem também necessidade de abordar a questão ontológica da unidade desse mundo comum” (Latour 2005: 259). Prisioneira do que Latour denomina “culturalismo” e “exotismo”, a antropologia não seria capaz, portanto, de cruzar “esse outro Rubicão, o que conduz da metafísica à ontologia”, na medida em que reduz as metafísicas que descobre a representações, apelando para o relativismo cultural, que, no final das contas, acaba por pressupor a unidade de um mundo explicável pela ciência.

Creio que é o pequeno, mas fundamental, livro que dedicou ao tema do fetichismo, que marca bem essa espécie de transição na obre de Latour. A argumentação do livro é complexa e sofisticada e dela não reterei aqui mais do que um ponto, aquele em que o autor deixa claro que seus interesses dizem exclusivamente respeito à sua (nossa) própria sociedade: “foi somente por mim, é claro, que me interessei, ou antes, por esses infelizes brancos, os quais se quer privar de sua antropologia, encerrando-os em seu destino moderno de anti-fetichistas” (
Latour 1996: 96). Latour pretende, assim, demonstrar que, como todo mundo, também o europeu “é ligeiramente superado por aquilo que construiu” (idem); que entre Pasteur e os fetichistas a diferença é apenas de grau, não de natureza, uma vez que um e outros não são nem inteiramente realistas, nem inteiramente construtivistas; que é possível afirmar tanto do ácido lático do primeiro quanto dos fetiches dos segundos que são, ao mesmo tempo, descobertos e produzidos. O único problema, do ponto de vista de um antropólogo, é que a realização desse projeto exige que Latour deixe explicitamente de lado o que os “fetichistas” têm a dizer a respeito do que fazem, concentrando-se exclusivamente em suas “práticas”.

Não é tão difícil compreender que, ao estudar cientistas, Latour tenha adotado como método uma atenção, se não exclusiva, ao menos privilegiada em suas práticas. Na medida em que tendemos a conceder à ciência o direito de definir nossa realidade, o discurso dos cientistas teria, sem dúvida, o poder de impor como pontos de vista os recortes e categorias que, ao contrário, trata-se de estudar. No entanto, não é assim que as coisas se passam quando escutamos, por exemplo, um adepto do candomblé. Seu discurso, ao contrário daquele do cientista, tende a ser considerados falso ou, em todo caso, como enunciando uma verdade que não é a nossa; nesse sentido, possui um potencial de desestabilização de nossos modos de pensar e definir o real que, creio, é dever dos antropólogos explorar. O que significa que a simetria entre a análise das práticas científicas e outras só pode ser obtida mediante a introdução de uma assimetria compensatória, destinada a corrigir uma situação assimétrica inicial. Mais, ou menos, que uma “antropologia simétrica”, trata-se, penso, de elaborar simetrizações antropológicas.




De fato, em suas conceptualizações acerca do fetiche e do fetichismo, Latour evita a análise cuidadosa das teorias nativas. Conseqüência, creio, de sua hipótese de que apenas “a unidade de um mundo comum” pode garantir a possibilidade -ou estar na base - do interesse por outras sociedades e por outros pensamentos. Assim, como o próprio Latour, não creio que as diferenças “existam para serem respeitadas, ignoradas ou subsumidas” (
Latour 1996: 105-106); mas, ao contrário dele, tampouco acredito que basta defini-las como “chamariz para os sentimentos, alimento para o pensamento”. Os discursos e práticas nativos devem servir, fundamentalmente, para desestabilizar nosso pensamento (e, eventualmente, também nossos sentimentos). Desestabilização que incide sobre nossas formas dominantes de pensar, permitindo, ao mesmo tempo, novas conexões com as forças minoritárias que pululam em nós mesmos.

É essa espécie de “comunicação involuntária” e esse diferencialismo intensivo (voltarei a esses pontos no final) que tornam possível aquilo que creio constituir a característica fundamental da antropologia: o estudo das experiências humanas a partir de uma experiência pessoal (a do etnógrafo). E é por isso, também, que a alteridade constitui a noção ou a questão central da disciplina, o princípio que orienta e inflete, mas também limita, nossa prática. Parte da nossa tarefa consiste em descobrir por que aquilo que as pessoas que estudamos fazem e dizem parece-lhes, eu não diria evidente, mas coerente, conveniente, razoável. Mas a outra parte consiste em estar sempre se interrogando sobre até onde somos capazes de seguir o que elas dizem e fazem, até onde somos capazes de suportar a palavra nativa, as práticas e os saberes daqueles com quem escolhemos viver por um tempo. E, por via de conseqüência, até onde somos capazes de promover nossa própria transformação a partir dessas experiências. Em outros termos, o problema é até onde somos capazes de realmente escutar o que um “nativo”, tem a dizer, de levá-lo a sério — o que não significa, evidentemente, nem concordar com ele, nem constatar que ele concorda conosco, nem, muito menos, forçá-lo a concordar conosco (
Viveiros de Castro 2002).

A única resposta, como observou o próprio
Latour (2005: 48), é: “o máximo possível”; quer dizer, até sermos “postos em movimento pelos informantes”. Estes, aliás, nunca são “informantes” (termo detestável que a antropologia compartilha com a polícia), mas atores dotados de reflexividade própria, ou seja, teóricos com os quais podemos e devemos tentar dialogar e aprender. A capacidade de suportar a palavra nativa, levá-la efetivamente a sério e permitir que conduza a reflexão antropológica até seu limite, me parecem os únicos critérios de qualidade disponíveis em nossa disciplina — qualidade, é evidente, infinita e interminavelmente aperfeiçoável.

Se as dificuldades sentidas por pelo menos alguns antropólogos frente a Latour parecem derivar dessa sua “solidariedade com o ponto de vista do observador”, por meio da qual, há muito tempo,
Lévi-Strauss (1954: 397) definia a sociologia em oposição à antropologia, noções como as de reversão, reflexividade e diferença intensiva podem, talvez, nos recolocar no caminho de uma verdadeira antropologia. Ou seja, daquela que acredita que o valor do diálogo com outras formas de pensar e viver deve se apoiar justamente naquilo que estas têm de diferente, não na hipótese, implícita ou explícita, de que apenas “a unidade de um mundo comum” pode garantir a possibilidade ou estar na base do interesse por outras sociedades e por outros pensamentos. Creio que é apenas a exploração sistemática e infinita dessas diferenças que pode alimentar a esperança de compreender melhor os fenômenos que estudamos e, simultaneamente, tornar mais interessante sua utilização “iluminadora” sobre nós mesmos, estabelecendo conexões mais ricas do que aquelas a que nos limitamos quando apelamos para a necessidade de um “mundo em comum”. Mas não se trata, é claro, de simplesmente trocar a frigideira das visões ocidentais pelo fogo da perspectiva nativa. Trata-se, ao contrário, e se é que a entendo bem, de seguir uma proposta lançada por Marilyn Strathern (1996: 521):




“ao antropologizar alguns desses temas (…) não estou apelando para outras realidades culturais simplesmente porque quero negar o poder dos conceitos euro-americanos (…). O ponto é estendê-los com imaginação social. O que implica perceber como são postos para funcionar em seu contexto indígena e, ao mesmo tempo, como poderiam funcionar em um contexto exógeno”.

É nesse sentido que na noção de “reversão”, tal qual proposta por Roy Wagner, não devemos buscar simplesmente o fato absolutamente banal de que os nativos podem fazer a antropologia de nós mesmos. Devemos perseguir a idéia de que essa inversão — evidentemente imaginada por nós — pode nos tornar capazes de desmontar e remontar os mecanismos essenciais de nossa antropologia por meio do que os nativos dizem de nós. Em outros termos, a “reversão” wagneriana deve ser compreendida, também e principalmente, no sentido em que é empregada na chamada “engenharia reversa”. “Reflexividade”, por sua vez, não significa nem “recursividade” (do tipo “antropologia da antropologia”), nem modo de objetivação (à la Lévi-Strauss ou Bourdieu), nem meio de subjetivação (como no pós-modernismo). Essa modalidade de “reflexividade” está ligada a um dialogismo radical, nem platônico nem dialético, antevisto por
Pierre Clastres (1968) e elaborado por Marilyn Strathern na seqüência de Roy Wagner. Ela é, sobretudo, de ordem etnográfica e depende de uma abertura para a palavra nativa, do reconhecimento da resistência que esta nos impõe — e não da resistência que a ela impomos. Trata-se de explorar o sentido acústico de reflexividade — “um som se reflete de corpo que vibra a corpo que vibra” (Pignarre e Stengers 2005: 178) —, não seu sentido óptico. Ou, nesse caso, reconhecer que, como escreveu Jean Cocteau, “os espelhos deveriam refletir um pouco, antes de devolver as imagens”.

É por isso que o antropólogo não pode ser nem o cientista cujas teorias transcendem a experiência que decidiu partilhar, nem apenas mais um narrador a acrescentar seu relato a todos os demais. “Teorias etnográficas”, como as batizou, de modo algo paradoxal, Malinowski (1935), eis o que fazemos. Em termos mais contemporâneos, talvez fosse possível dizer que tudo a que o etnógrafo pode aspirar — mas isso não é pouca coisa — é estabelecer com os nativos uma dessas “conexões parciais” de que nos fala Strathern (2005): “mais do que um e menos do que dois”, eles passam a constituir um ciborgue, no sentido que
Donna Haraway (1991) deu ao termo. Seremos capazes de dizer algo diferente dos nativos sem nos metermos a dizer algo a mais que eles? Não se trata, então, nem de apenas repetir os conceitos nativos, nem de suprimi-los em benefício dos nossos, nem de projetar os nossos sobre os deles. O único problema verdadeiro é o alinhamento conceitual entre diferentes modos de pensar, o que permite, por um lado, clarear as questões (sem pretender “esclarecer” nada nem, sobretudo, ninguém) e, por outro, as transformações de nosso próprio pensamento. Trata-se de usar os conceitos de forma propriamente conceitual, ou seja, não tipológica. Não como categorias dentro das quais algumas coisas entrariam e outras não, mas como modos de organização e formas de criação. A única particularidade do antropólogo diante do filósofo é que ele escolheu começar com os conceitos dos outros e, só depois, articulá-los ou alinhá-los de algum modo com os seus — mas isso, claro, faz toda a diferença do mundo.

Se há algo a afastar, é a fantasia intelectual da “crença”. Como escreveu
Wagner (1981: 30), “uma antropologia que se recusa a aceitar a universalidade da mediação, que reduz o significado a crenças, dogma e certezas, será empurrada para a armadilha de ter de acreditar ou nos significados nativos, ou nos nossos próprios”. Não é de crença que se trata, mas de experiência, conceitos e teorias. A particularidade do antropólogo, como sustentou Jeanne Favret-Saada (1990), é sua disposição e capacidade de “ser afetado” por outras experiências. O que não significa, claro, que os afetos envolvidos sejam os mesmos no antropólogo e nos nativos, mas apenas que, por estarem todos “afetados”, cria-se uma situação de “comunicação involuntária” entre eles, o que constitui a condição de possibilidade do trabalho de campo e da etnografia.

Chegamos aqui ao quarto caminho que compõe a encruzilhada da antropologia pós-social — a filosofia de Deleuze e Guattari. Porque não se trata de sustentar nenhum tipo de posição “relativista”, enaltecendo as virtudes das chamadas diferenças culturais. O relativismo, hoje, é mais um desses remédios que perderam seu prazo de validade, funcionando como obstáculo para a elaboração de uma antropologia efetivamente alternativa. Dele poder-se-ia dizer o que
Lévi-Strauss (1973: 385) escreveu do evolucionismo: “trata-se de uma tentativa de suprimir a diversidade das culturas fingindo reconhecê-las plenamente”.

Uma perspectiva apoiada na noção de multiplicidade intensiva — aquela que não é nem o múltiplo do uno, nem o oposto da unidade, mas rizoma e singularidade — deve começar reconhecendo a dificuldade em estabelecer o ponto exato onde passam as “fronteiras” entre as “culturas” que “diferem”. Fronteiras certamente existem, mas são sinuosas e incertas. Assim, e por exemplo, o perspectivismo de Nietzsche pode estar mais próximo do perspectivismo ameríndio do que do kantiano. As diferenças cortam os coletivos por dentro tanto quanto por fora e é isso, penso, que faz com que o relativismo ocidental, com o pluralismo que o acompanha, seja sempre acompanhado de uma certeza, desejo ou insinuação de que existe, para falar como
Paul Veyne (1978: 23), um “geometral” que sintetizaria todas as perspectivas parciais; um “julgamento de Deus”, que superaria e deteria todos os juízos particulares.Deleuze e Guattari (1980: 536-537), escreveram que “a história somente traduz em sucessão uma coexistência de devires” e que “tudo coexiste, em perpétua interação”. Se reconhecermos a validade desse princípio também para o eixo espacial, seremos capazes talvez de passar do “ou” do culturalismo” básico da antropologia para o “e” dos devires; de passar, como sugeriu Guattari (1990: 27-28) das teorias sobre o que é para as etnografias do “em vias de”.



NOTAS


Trechos deste texto foram apresentados em conferências no CEBRAP (SP), Universidade Federal de Pelotas (RS), Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e Universidade Estadual de Santa Cruz (BA).

Marcio Goldman é Professor Associado do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro; pesquisador do CNPq e bolsista da FAPERJ. É autor de Razão e Diferença. Afetividade, Racionalidade e Relativismo no Pensamento de Lévy-Bruhl (1994), Alguma Antropologia (1999) e Como Funciona a Democracia. Uma Teoria Etnográfica da Política (2006), além de organizador, em colaboração com Moacir Palmeira, de Antropologia, Voto e Representação Política (1996).

Agradeço aAmir Geiger por essas memórias de Richard Feynman acerca dos seus tambores.



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Extraído de: http://www.n-a-u.org/pontourbe03/Goldman.html