sábado, 11 de abril de 2009

Lévi-Strauss e os sentidos da História




Marcio Goldman1

Professor do Departamento de Antropologia – Museu Nacional





Em um de seus ensaios sobre a história da biologia, Stephen Jay Gould (1991) 2 segue a pista de uma imagem oferecida com freqüência aos leitores de todo o mundo a fim de fazê-los visualizar um desses pequenos antepassados do cavalo contemporâneo. Ele revela, assim, que uma enorme quantidade de autores, na Europa, América, Ásia, e em toda parte, busca esclarecer que o animal em questão possuía, aproximadamente, o tamanho de um cão fox terrier. Intrigado com a aparente invenção independente de uma imagem no final das contas nada óbvia, Gould acaba por descobrir que todas as formulações se originam de um único texto, transmitido de autor para autor, de geração para geração, citado de segunda, terceira ou quarta mãos, sem que ninguém sentisse a menor necessidade de recorrer ao "original" — seja o texto, seja o animal usado como signo. Para ser mais preciso, o que ocorria de fato é que não importava a ninguém saber quem era o criador da imagem, ou mesmo conhecer o que lhe servia de significante.

Neste caso específico, esse processo, que poderíamos denominar de geração e transmissão de uma vulgata, não parece tão grave. Afinal, tudo indica que os animais comparados possuem efetivamente dimensões similares, e parece que nenhum dano real ao conhecimento tenha sido produzido por esse lugar-comum. Mais graves — e, ao mesmo tempo, muito mais interessantes — são os casos em que certas torções estão presentes. Assim, Dominique Merllié sugeriu que uma série de mal-entendidos em torno da obra de Lucien Lévy-Bruhl devem-se justamente ao fato de que "todo mundo tendo ‘lido’ Lévy-Bruhl, ninguém tinha necessidade de lê-lo, e a vulgata deformada mantinha-se a si mesma" (1989: 427).

O que é grave em casos desse tipo não é tanto a suposta deturpação em si — sempre questionável —, ou a "ofensa" a determinado autor — nunca muito importante, afinal de contas. O grave é que equívocos desse gênero tendem a reprimir possíveis desenvolvimentos que uma compreensão mais, digamos, "empática" poderia engendrar. Em outros termos, ao adquirir autoridade, a vulgata tende a não ser mais contestada, o que provoca a paralisia do pensamento. O fato de Lévy-Bruhl, por exemplo, ter permanecido durante meio século na penumbra do pensamento antropológico não é nem lamentável em si mesmo, nem moralmente condenável: é empobrecedor por ter nos privado de alguns instrumentos importantes que poderiam ajudar o desenvolvimento de nossas próprias démarches.

A menção a Lévy-Bruhl pode parecer meio fora de lugar aqui. Não apenas porque tudo indica que continua a não ser de muito bom tom invocar o "teórico da mentalidade primitiva" em um encontro de antropólogos, mas também porque o autor que hoje aqui homenageamos parece a ele se opor sob todos os aspectos. Não apenas os intelectuais ou teóricos — sobre os quais haveria muito a dizer — mas, para retomar as palavras de Roger Bastide, como o claro se opõe ao obscuro. Figura central da história da antropologia nos últimos cinquenta anos, poder-se-ia imaginar que Claude Lévi-Strauss estaria a salvo senão das leituras apressadas, ao menos daquelas de segunda ou terceira mãos — a salvo da vulgata, portanto.

É evidente que todos sabemos que isso não é verdadeiro, ainda que cada um possa ter seu próprio Lévi-Strauss e discordar de outras leituras. Tomemos, por exemplo, um trecho de um artigo recentemente publicado por Joanna Overing — escolhido não apenas porque é espantosamente claro no que diz respeito às relações do pensamento de Lévi-Strauss com a história, mas também porque, de meu ponto de vista, sua autora faz parte do grupo dos melhores antropólogos em atividade hoje. Após criticar a "versão particularmente interessante da defesa da ‘a-historicidade’" supostamente embutida na distinção entre poder coercitivo e não-coercitivo de Pierre Clastres (Overing, 1995: 107), Overing se dirige ao que poderia ser considerado a fonte dessa versão:

"A mais famosa de todas as formulações da a-historicidade dos povos indígenas é a de Lévi-Strauss (…) [que] estabelece sua famosa distinção (muitas vezes entendida de modo equivocado) entre sociedades "quentes" e "frias". Ao estabelecer este contraste, o autor separa os povos dotados de história dos que não a possuem. Ele argumenta que estes últimos deliberadamente subordinam a história ao sistema e à estrutura, e por causa desta subordinação as sociedades onde eles vivem podem ser chamadas de "frias" (… ). Essa atemporalidade, segundo ele, é um princípio que visa a eliminação da história (...)". (: 108)

Logo voltaremos a esse texto. Antes, contudo, eu insistiria ainda na oposição entre Lévi-Strauss e Lévy-Bruhl. Pois esta oposição também é aquela entre um autor indubitavelmente "maior" e um que pelo menos veio a se tornar "menor". É claro que não estou empregando esses termos em seu sentido valorativo tradicional, mas naquele proposto por Gilles Deleuze. "Maior" e "menor" não são dados ou características "objetivas" de textos e autores; são operações. Não há, pois, nem divisão rígida, nem maniqueísmo (menor = bom; maior = mau). Qualquer autor é simultaneamente maior e menor. Ou antes: toda obra pode ser explorada no que tem de maior ou de menor (Deleuze & Bene, 1979: 97-101).

Ora, penso que, entre outras virtudes, a reflexão sobre o lugar da história no pensamento de Lévi-Strauss pode permitir, talvez, atingir certas dimensões usualmente tidas como secundárias — ou "menores" — na obra daquele que é indubitavelmente um autor "maior". Pois o tema da história, em seus múltiplos sentidos, permeia a obra de ponta a ponta, algumas vezes de modo explícito, outras de forma mais discreta. Entre os textos capitais estão, sem dúvida, "História e etnologia", de 1949, "Raça e História" (1952), a "Aula inaugural" (1960), "As descontinuidades culturais e o desenvolvimento econômico" (1960), as entrevistas com Georges Charbonnier (1961), os dois últimos capítulos de O pensamento selvagem (1962), o segundo "História e Etnologia" (publicado nos Annales em 1983), "Um outro olhar" (1983), História de Lince (1991), "Voltas ao passado" (1998) — além, é claro, de trechos, mais longos ou mais curtos, em praticamente todos os livros do autor. É importante também observar que é justamente nesses textos que a ênfase de Lévi-Strauss incide muito mais sobre a questão da diversidade sociocultural do que sobre a famosa "unidade do espírito humano".

Assim como ocorre em relação a outros pontos, creio que no que diz respeito à história, Lévi-Strauss retomou e ampliou os efeitos que a experiência da antropologia social ou cultural pode ter sobre o tema, fazendo com que passassem a ser capazes de funcionar como uma crítica de alguns pressupostos muito arraigados na sociedade e no pensamento ocidentais. Pois tudo indica que, ao menos desde o Iluminismo, a história exerça um certo imperialismo entre nós, apoiado sobre a suposta certeza de que a única forma de compreensão dos fatos humanos passa necessariamente pela recuperação do processo que fez com que chegassem a ser como são. Lembremos, de passagem, que Lévi-Strauss esboça uma hipótese para explicar esse fascínio pela história:

"E como acreditamos, nós próprios, apreender nosso devir pessoal como uma mudança contínua, parece-nos que o conhecimento histórico vem ao encontro da evidência mais íntima". (1962: 292)

É claro que ao aproximar a crença na história dessa "ilusão" de uma "suposta continuidade do eu" (1962: 292), Lévi-Strauss já indica o partido que toma.

Mas há mais aqui. Todos sabemos que a própria antropologia se constituiu no final do século XIX em um ambiente marcado justamente por esse imperialismo da história. Como ressaltou Richard Lewontin, o evolucionismo não é bem uma "teoria", mas uma "ideologia", ou seja, "um modo de organizar o conhecimento do mundo (…), uma visão de mundo, mais geral, que (…) permeou todas as disciplinas nos últimos duzentos anos"(1985: 234, 238). A crítica a esse modelo — que poderíamos chamar "diacrônico" e que não é exclusivo do evolucionismo social, permeando também as teorias da Escola Sociológica Francesa e da antropologia boasiana — se manifestará a partir da década de 20, quando, quase simultaneamente, o funcionalismo britânico e o culturalismo norte-americano colocarão em questão o privilégio do eixo temporal, propondo sua substituição por um modelo sincrônico que deveria ressaltar descontinuidades e especificidades de ordem sobretudo espacial.

Devemos ressaltar, também, que as críticas funcionalista e culturalista ao evolucionismo (e ao privilégio da história, consequentemente) são sobretudo de ordem "metodológica". Ou seja, estão exclusivamente preocupadas com a quase impossibilidade de obter dados históricos confiáveis acerca das sociedades que, em geral, os antropólogos estudam. Ora, a crítica levistraussiana é muito mais ambiciosa. Partindo, certamente, das dificuldades encontradas pelo conhecimento histórico em face das sociedades ditas primitivas, Lévi-Strauss não apenas dirige um ataque verdadeiramente epistemológico ao evolucionismo social (em "História e Etnologia", "Raça e História" e outros textos) como elabora uma crítica mais profunda ao imperialismo da história em geral — crítica que se encontra sobretudo nos dois últimos capítulos de O pensamento selvagem.

Com efeito, desde 1949, Lévi-Strauss chamava a atenção para o fato do debate entre método histórico e método sociológico ter sido transposto para o interior da antropologia praticamente desde o momento em que esta disciplina se constitui como tal (1949: 15). E de não ser nada difícil opor, na história do pensamento antropológico, aqueles que ocupam uma posição "historicista" e aqueles que puderam chegar a ser considerados verdadeiros "inimigos da história".

Sob o pretexto de construir uma restrita defesa da antropologia contra as investidas da história, Lévi-Strauss, na verdade, utiliza a experiência da antropologia para elaborar uma crítica generalizada do imperialismo da história no pensamento ocidental. O primeiro passo é explicitar a polissemia do termo. Como todos sabemos, mas tendemos por vezes a esquecer, por história pode-se entender pelo menos três coisas bem diferentes: a "história dos homens", ou historicidade (aquela que eles fazem "sem saber"), a "história dos historiadores" e a "história dos filósofos", ou filosofia da história (Lévi-Strauss, 1962: 286).

Os problemas de Lévi-Strauss com a história se resumiriam, aparentemente, ao terceiro sentido do termo, e é contra a idéia de que haveria algum sentido privilegiado na história, e de que esta definiria a própria humanidade dos homens, que o último capítulo de O pensamento selvagem foi escrito. No entanto, creio ser preciso ter em mente que é muito difícil para a história dos historiadores livrar-se completamente das tentações da filosofia da história. E é extremamente significativo que algumas das páginas mais importantes de "História e dialética" sejam consagradas justamente a demonstrar que o conhecimento histórico é tão esquemático quanto outro qualquer; e que, mais do que isso, a antropologia — por buscar adotar uma perspectiva estranha a qualquer sociedade particular e por voltar-se para o inconsciente — tende a produzir um saber mais abrangente que o da história.

Apesar das aparências, é então evidente que Lévi-Strauss sempre soube que o verdadeiro problema reside nas formas de se conceber a história em seu primeiro sentido, ou seja, como história dos homens e como historicidade. A vulgata também sempre o soube, e sob a capa das acusações de inimigo da história (filosofia ou ciência) subjaz sempre aquela, mais grave, de suposto desconhecimento da própria historicidade. É verdade que o autor sempre buscou refutar tais acusações, mas mesmo essas refutações não nos devem fazer esquecer o essencial: a novidade introduzida por Lévi-Strauss no que diz respeito às formas de se pensar a historicidade.

Em primeiro lugar, essa novidade deriva do fato de que a história começa a ser pensada do ponto de vista da antropologia, ou seja, da diversidade. E ainda que Lévi-Strauss se atenha a algumas poucas, o fato é que, ao menos de direito, podem existir tantas formas de historicidade quanto de parentesco ou de religião. A distinção entre "história fria" e "história quente" desempenha, justamente, a função de demonstrar este ponto.

Introduzidos em 1961, nas entrevistas concedidas na Rádio Francesa a Georges Charbonnier, esses termos se prestaram a todo tipo de mal entendido — como atesta o trecho de Joanna Overing citado no início desta exposição. Desde O pensamento selvagem, Lévi-Strauss tratou de se explicar, explicação retomada em 1983, no segundo "História e Etnologia" e em "Um outro olhar", e resumida com perfeição em um artigo recente que busca responder às críticas de dois neo-sartreanos:

"Imputar a mim a mesma concepção errônea implica um equívoco sobre o sentido e o alcance da distinção que propus fazer entre "sociedades frias" e "sociedades quentes". Ela não postula, entre as sociedades, uma diferença de natureza, não as coloca em categorias separadas, mas se refere às atitudes subjetivas que as sociedades adotam frente à história, às maneiras variáveis com que elas a concebem. Algumas acalentam o sonho de permanecer tais como imaginam ter sido criadas na origem dos tempos. É claro que elas se enganam: tais sociedades não escapam mais da história do que aquelas — como a nossa — a quem não repugna se saber históricas, encontrando na idéia que têm da história o motor de seu desenvolvimento". (Lévi-Strauss, 1998: 108)

Comentando a questão em uma entrevista posterior, Lévi-Strauss atribui o mal-entendido ao fato de que "ninguém se deu ao trabalho de refletir. Havia uma velha distinção, povos com história e povos sem história, então eles dizem que minha distinção é idêntica a essa" (Viveiros de Castro, 1998: 119).

Temos que reconhecer, contudo, que o caráter objetivo ou subjetivo da oposição entre história fria e quente não é tão simples assim. Em um texto publicado há trinta e cinco anos, Marc Gaboriau sublinhava, na obra de Lévi-Strauss, a existência de dois modelos para pensar a sociedade e, mais especificamente, a questão da história. O primeiro, que Gaboriau denomina "psicanalítico", mas que poderia chamar de "durkheimiano",

"atribui à sociedade uma espécie de reflexão objetiva que não coincide com a consciência do indivíduo (…). A sociedade é como um sujeito, reagindo a um exterior, corrigindo suas próprias deficiências. (Gaboriau, 1963: 153)

O segundo modelo, que coexiste com o primeiro, trataria a sociedade como "máquina", os ajustes e reações derivando de seu funcionamento objetivo, não de consciências individuais ou coletivas.

Em suma: é óbvio que Lévi-Strauss não aceita qualquer dicotomia aparentemente objetiva entre sociedades "com história" e "sem história"; por outro lado, as formas de se reagir à temporalidade são ora encaradas como o simples efeito de um determinado tipo de estrutura social, ora como o resultado de uma espécie de vontade coletiva.

Alguns anos antes da introdução da distinção entre história fria e quente, Lévi-Strauss já havia proposto uma outra dicotomia visando demarcar distintas formas de historicidade — proposta que, talvez ainda mais do que a outra, tenha sofrido uma incompreensão fundamental e suponho que isso se deva ao fato de "Raça e História" — na qual a oposição entre história estacionária e cumulativa é apresentada — e teve como destino a rubrica de texto "introdutório". Lido por quase todos no momento de nossos primeiros estudos de antropologia, é raramente revisitado quando nos tornamos capazes de uma reflexão mais séria; preferimos indicá-lo a nossos alunos, o que fecha o círculo e relança a maldição.

Como parte de nossas "introduções à antropologia", "Raça e História" é quase inteiramente reduzido àquilo que não passa de seu preâmbulo: a crítica ao etnocentrismo e ao "falso evolucionismo" ou "evolucionismo social". Pouco se atenta, assim, para o fato de que esse texto talvez seja a única proposta de aplicação, no campo das ciências sociais, de um modelo verdadeiramente evolucionista, quer dizer, não a transposição de um lamarckianismo ou de um darwinismo já fora de moda mesmo no domínio das ciências naturais, mas a evocação da possibilidade de um neo-darwinismo sociológico. Ou seja, de uma reflexão inspirada pelas transformações radicais que as descobertas de Mendel provocaram na teoria evolucionista, colocando em seu centro noções como as de acaso, probabilidade, mutação e encadeamento de transformações — justamente aquelas que Lévi-Strauss pretende recuperar para a antropologia.

"Raça e História" procede por etapas. Em um primeiro momento, história cumulativa e história estacionária parecem simples substitutos da oposição com/sem história. Em seguida, somos convidados a reconhecer, com exemplos extraídos da América pré-colombiana, que a cumulatividade não é um privilégio ocidental. Finalmente, a essa relativização "de fato", segue-se uma relativização "de direito": a distinção deriva sempre de uma espécie de ilusão de ótica, e se a história da América parece cumulativa, é porque somos capazes de nela recortar e selecionar acontecimentos similares, em sentido e orientação, àqueles que privilegiamos em nosso próprio devir. Se, como diz Lévi-Strauss, "a história não é, pois, nunca a história, mas a história-para", pode-se dizer, com mais razão ainda, que a história da América é cumulativa "para nós". Em outros termos, se a distinção entre história fria e quente é de ordem "subjetiva", aquela entre história estacionária e cumulativa o é em um grau ainda mais elevado:

"Todas as vezes que somos levados a qualificar uma cultura humana de inerte ou de estacionária, devemos, pois, nos perguntar se este imobilismo aparente não resulta da nossa ignorância sobre os seus verdadeiros interesses, conscientes ou inconscientes, e se, tendo critérios diferentes dos nossos, esta cultura não é, em relação a nós, vítima da mesma ilusão". (Lévi-Strauss, 1952: 73)

Observemos, contudo, que a mesma ambigüidade existente no modelo história fria e quente reaparece no que diz respeito ao par estacionária/cumulativa. Assim como o primeiro pode ser interpretado ou como parte do funcionamento de uma máquina social, ou derivando de algo como uma vontade coletiva, o segundo é interpretado ora como efeito das perspectivas relativas de uma sociedade diante da outra (em uma espécie de relação de intersubjetividade social, portanto), ora como o resultado objetivo do fato de uma cultura se achar isolada ou, ao contrário, de fazer parte de uma "coligação" cultural com outras sociedades:

"Neste sentido, podemos dizer que a história cumulativa é a forma característica de história desses superorganismos sociais que os grupos de sociedade constituem, enquanto que a história estacionária — se é que verdadeiramente existe — seria a característica desse gênero de vida inferior que é o das sociedades solitárias". (Lévi-Strauss, 1952: 89)

Antes de retomarmos o triplo sentido de "história", propondo uma outra leitura de seu significado, afastemos, preliminarmente, a aparente contradição entre modelo "psicanalítico" e "mecânico". Não creio, de fato, que eles se oponham. Poderíamos sustentar, talvez, que se trata de dois modos alternativos de descrição dos mesmos fenômenos, mas isso seria fraco demais, ainda que correto. Melhor dizer que termos como desejo ou vontade não remetem necessariamente para constantes enraizadas em uma suposta natureza humana ou social dada de antemão; que eles podem ser compreendidos como efeitos subjetivos de funcionamentos que se dão sobre um plano de intersubjetividade primeira, e que se manifestam igualmente em nível do sociológico propriamente dito. A "vontade" de uma sociedade resistir à história é o correlato — nem causa, nem consequência — de uma maquinaria social que funciona dificultando o trabalho da história.

Acredito ser possível, agora, tentar reunificar o campo semântico, apenas na aparência disperso, dos três sentidos de história. Parece-me que ao recortar o campo desse modo, Lévi-Strauss está fazendo algo bem mais profundo do que simplesmente lembrar que a passagem do tempo é inevitável, que os historiadores tratam de mapear e organizar os fenômenos decorrentes desse fato, e que a filosofia da história é apenas uma duvidosa forma de auto-consciência das sociedades ocidentais.

Parece-me, com efeito, que o tripé é hierarquizado. As distintas historicidades peculiares a cada sociedade ou cultura constituem a forma particular através da qual elas reagem ao fato inelutável de que estão no tempo ou no devir. Nesse sentido, tanto a "história dos historiadores" quanto a "filosofia da história" fazem parte constitutiva de nossa forma particular de historicidade, ou, ao menos, daquela dominante no Ocidente há muitos séculos. O que significa simplesmente dizer que da nossa forma de reagir à temporalidade faz parte um certo tipo de reflexão sobre ela. Talvez aqui resida um dos sentidos da aproximação entre mito e história, ou da hipótese de que a história funciona, entre nós, como nosso mito. Muito mais que uma mera "relativização" do saber científico, trata-se aqui de revelar que diferentes tipos de historicidade estão articulados com diferentes tipos de reflexão acerca delas, os quais, por sua vez, fazem parte do tipo de historicidade sobre o qual refletem.

A história, como forma de saber e/ou auto-consciência, é, então, característica dessas sociedades que "interiorizam resolutamente o movimento progressivo histórico, para dele fazer o motor de seu desenvolvimento" (Lévi-Strauss, 1962: 268). Poderíamos, pois, dizer que fazemos parte de uma sociedade que é, acima de tudo, "a favor da história", ainda que aqui ou ali possa a ela reagir. Se isso for verdadeiro, não seria demais considerar que também existem sociedades "contra a história", aquelas que buscam, "graças às instituições que se dão, anular, de forma quase automática, o efeito que os fatores históricos poderiam ter sobre seu equilíbrio e sua continuidade" (ibidem).

Ora, "contra a história" é uma expressão que deve, evidentemente, ser entendida no mesmo sentido em que Pierre Clastres fala de "sociedades contra o Estado". Ou seja: não como simples ausência ou privação, mas como um princípio ativo — o que afasta de imediato toda ameaça de etnocentrismo. Mais do que isso, creio que é possível imaginar que boa parte dos protestos contra os que, supostamente, recusam às outras sociedades as bênçãos da história, deriva de uma espécie de etnocentrismo elevado à segunda potência. Pois, afinal, quem disse que para haver dignidade humana é preciso que a história, tal qual a conhecemos, esteja presente? E que não se imagine, tampouco, que a distinção entre essas duas atitudes em face da história caracterizariam dois grupos ou tipos de sociedades. Ainda que sempre em uma relação de subordinação, atitudes distintas estão simultaneamente presentes em qualquer sociedade humana.

Joanna Overing tem, pois, ao menos o mérito de ter intuído corretamente a aproximação entre Clastres e Lévi-Strauss. Porque não seria difícil mostrar que além de estar apoiado sobre dados etnográficos precisos aos quais ninguém dava muita atenção, o modelo de Clastres deriva justamente de uma profunda reflexão sobre esses textos "menores" de Lévi-Strauss. Afinal, como demonstrou François Châtelet, qualquer que seja o sentido que se queira emprestar ao termo "história", esta é parte essencial dessas sociedades que, há muito tempo, escolheram o partido do Estado. E o próprio Lévi-Strauss o lembrava quando, na entrevista a Charbonnier, empregava uma belíssima metáfora e chamava a atenção para o fato de que as sociedades de "história fria" funcionam como "relógios", ou seja, em equilíbrio e sem grandes desigualdades — sem poder coercitivo, diria Clastres. Aquelas que conhecem a "história quente", ao contrário, são como "máquinas a vapor", gerando uma enorme quantidade de energia e acelerando o tempo às custas das crescentes desigualdades entre os homens que todos conhecemos — sobretudo hoje, quando o sonho saintsimoniano de Lévi-Strauss, de uma sociedade que deixaria o "governo dos homens" para dedicar-se à "administração das coisas", parece cada dia mais distante, substituído por uma verdadeira e terrível "administração dos homens".

Ainda que isso possa parecer um tanto paradoxal, creio que ao distinguir e separar a historicidade em si dos discursos que, sob o pretexto de reconhecê-la plenamente, fazem o possível para eliminá-la, Lévi-Strauss abriu o caminho para uma reflexão histórica afastada das armadilhas de todos os evolucionismos e de todas as ideologias celebratórias. Livre das falsas totalidades e das filosofias da história, a historicidade pode reaparecer na forma do acontecimento e do devir, e a história pode retomar seus direitos como reflexão crítica.

Eu arriscaria, pois, dizer que alguns dos desenvolvimentos contemporâneos usualmente tidos como absolutamente estranhos ao pensamento de Lévi-Strauss encontraram nele o ponto de apoio a partir do qual puderam se lançar — e é principalmente na obra de Michel Foucault que penso aqui 3.

Se fosse preciso atenuar um pouco a estranheza sugerida pela idéia de que Lévi-Strauss poderia ser situado nas origens de alguns dos quase-historicismos contemporâneos, eu citaria apenas o testemunho de um autor pouquíssimo suspeito de complacência para com visões anti-históricas ou mesmo para com o chamado "estruturalismo" — essa figura de mídia que nunca ninguém soube exatamente o que é. É justamente através de uma longuíssima citação, reunindo trechos extraídos do último capítulo de O pensamento selvagem, que Paul Veyne (1978: 23-4) proclama com todas as letras o fato de que "tudo é histórico", e de que, portanto, "a História", no singular e com maiúscula, "não existe". E é justamente a partir dessa demonstração que seu livro Como se escreve a História busca revelar a viabilidade de um modelo inteiramente historicista para o exercício da disciplina histórica. Em um momento em que todos os tipos de tolices em torno do "progresso" e da "modernidade" são repetidos até mesmo por alguns antropólogos, essa lição de Lévi-Strauss não deveria ser esquecida.

É difícil, para mim, achar as palavras adequadas para agradecer ao convite para participar desta homenagem absolutamente necessária. Eu gostaria, então, de terminar com uma nota de admiração, palavra que deve ser entendida quase que em seu sentido etimológico, o de uma aproximação que não exclui a distância, bem como na acepção de espanto e assombro — condição de todo trabalho intelectual. Há anos foi a leitura da obra de Claude Lévi-Strauss que me convenceu que, no campo das Ciências Sociais, era a antropologia que poderia me abrir o tipo de reflexão que desejava. Reflexão crítica, capaz de abordar as questões mais abrangentes sem perder o contato com a experiência mais vivida. Um dos maiores valores dessa aventura intelectual foi justamente o de ter me modificado profundamente, fazendo, assim, com que eu afastasse progressiva e parcialmente das idéias de seu inspirador. O que, é claro, não tem a menor importância. Como diz Paul Veyne, a quem eu gostaria de citar mais uma vez para terminar,

"é mais importante ter idéias do que conhecer a verdade; é por isso que as grandes obras (…), mesmo quando refutadas, se mantêm significativas e clássicas (...). A verdade não é o mais elevado dos valores do conhecimento". (Veyne, 1976: 42)


Notas


1 Professor do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro); pesquisador do CNPq; pesquisador do NuAP (Núcleo de Antropologia da Política — Pronex 1997); autor de Razão e Diferença. Afetividade, Racionalidade e Relativismo no Pensamento de Lévy-Bruhl (Editora Grypho/Editora da UFRJ, Rio de Janeiro, 1994).

2 Agradeço a Peter Gow por ter me revelado a existência desse texto. Agradeço também, de modo mais geral, a Tânia Stolze Lima por uma série de sugestões acerca de pontos específicos do texto.

3 Conta-se que provocado pelos irmãos Campos — que observavam que sua obra parecia se deter em um limiar situado aquém das transformações mais contemporâneas da poesia —, João Cabral de Melo Neto teria dito que imaginava sua obra como um trampolim: a extremidade bem flexível a fim de possibilitar os saltos, mas a base necessariamente muito firme.


Bibliografia


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GABORIAU, MARC[1963] 1968 "Antropologia estrutural e História", in Luiz da Costa Lima (org.), O estruturalismo de Lévi-Strauss, Petrópolis, Vozes, pp.140-56.

GOULD, S. J. 1991 "The Case of the Creeping Fox Terrier Clone", in Bully For Brontosaurus. Reflections in Natural History, New York, London, W. W. Norton & Company, pp. 79-93.

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[1952] 1978 "Raça e História", in Os Pensadores, vol. L, São Paulo, Abril Cultural.

1960a [1973] "Le Champ de l’Anthropologie", in Anthropologie Structurale Deux, Paris, Plon.

[1960b] 1973 "Les Discontinuités Culturelles et le Développement Économique et Social", in Anthropologie Structurale Deux, Paris, Plon.

[1962] 1976 O pensamento selvagem, São Paulo, CEN.

1983a "Histoire et Ethnologie", Annales E.S.C., 38 (6): 1217-31.

1983b "Un Autre Regard", L’Homme 126-128: 9-10.

1991 Histoire de Lynx, Paris, Plon.

1998 "Voltas ao Passado", Mana, Estudos de Antropologia Social 4 (2): 107-17.

LEWONTIN, R. C.& LEVINS, R.1985 "Evolução", in Orgânico/Inorgânico. Evolução, Enciclopédia Einaudi , r6: 234-87, Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda.

MERLLIÉ, D.1989 "Présentation. Le Cas Lévy-Bruhl", Revue Philosophique de la France et del’Étranger, 4: 419-48.

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1978 Comment on Écrit l’Histoire, Paris, Seuil.

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Fonte:
Revista de Antropologia
versionPrint ISSN 0034-7701
Rev. Antropol. vol.42 n.1-2 São Paulo 1999
doi: 10.1590/S0034-77011999000100012

terça-feira, 7 de abril de 2009

Incenso fosse música



isso de querer ser
exatamente aquilo
que a gente é
ainda vai
nos levar além


(Paulo Leminski)

sexta-feira, 3 de abril de 2009

A Mata













A mata agita-se, revoluteia, contorce-se toda e sacode-se!
A mata hoje tem alguma coisa para dizer.
E ulula, e contorce-se toda, como a atriz de uma pantomima
trágica.
Cada galho rebelado
Inculca a mesma perdida ânsia.
Todos eles sabem o mesmo segredo pânico.
Ou então - é que pedem desesperadamente a mesma instante coisa.

Que saberá a mata? Que pedirá a mata?
Pedirá água?
Mas a água despenhou-se há pouco, fustigando-a, escorraçando-a,
saciando-a como aos alarves.

Pedirá o fogo para a purificação das necroses milenárias?
Ou não pede nada, e quer falar e não pode?
Ter surpreendido o segredo da terra pelos ouvidos finíssimos
das suas raízes?

A mata agita-se, revuloteia, controce-se toda e sacode-se!
A mata está hoje como uma multidão em delírio coletivo.

Só uma touça de bambus, à parte,
Balouça... levemente... levemente... levemente...
E parece sorrir do delírio geral.




(Manuel Bandeira)

quinta-feira, 2 de abril de 2009

O Rio
















Ser como o rio que deflui
Silencioso dentro da noite.
Não temer as trevas da noite.
Se há estrelas no céu, refleti-las
E se os céus se pejam de nuvens,
Como o rio as nuvens são água,
Refleti-las também sem mágoa
Nas profundidades tranqüilas.


(Manuel Bandeira)

quarta-feira, 1 de abril de 2009

"O que é a porta?" Roger Bastide e o Barroco nordestino





Apresentação



Ao longo de seus dezesseis anos de permanência no Brasil, de 1938 a 1954, Roger Bastide interessou-se por quase todos os aspectos da vida nacional. Travou contato com gente do porte de Mário de Andrade e Gilberto Freyre, escreveu obras clássicas como Brasil, terra de contrastes ou As religiões africanas no Brasil e tornou-se figura de destaque na recém-fundada Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo.1 Neste último âmbito, marcou a fundo a formação do grupo de críticos de arte e literatura reunidos na revista Clima, sobretudo pelo exemplo de um ensaísmo em que as questões sociológicas eram suscitadas pelo comentário minucioso da obra de arte – e não impostas a ela. Entre esses jovens críticos estava Gilda de Mello e Souza (1919-2005), que em 1945 traduziu o compêndio sobre Arte e sociedade de Bastide e, cinco anos depois, publicou sua tese de doutorado sobre O espírito das roupas, escrita sob orientação do mestre francês. Quase três décadas mais tarde, despedindo-se do quadro regular do Departamento de Filosofia da mesma universidade, dona Gilda redigiria um exposé finíssimo, que esmiuçava em benefício dos mais jovens "A estética rica e a estética pobre dos professores franceses" – isto é, as idéias estéticas de Claude Lévi-Strauss, Jean Maugüé e Roger Bastide em seus anos brasileiros. Para tanto, recorria a materiais "de difícil acesso" – conferências, notas de curso, artigos de circunstância –, "esparsos e em geral desconhecidos".2 O ensaio que segue, "Variações sobre a porta barroca", publicado em francês no segundo número da revista Habitat (São Paulo, 1951), com fotografias de Pierre Verger, dá mostra da vivacidade e do interesse desse material, que será parcialmente publicado em 2007 numa antologia inspirada no ensaio de dona Gilda e organizada por Fraya Frehse e Samuel Titan Jr.



Variações sobre a porta barroca



Roger Bastide



O que é a porta? Um vão. Mas um vão que separa dois domínios: o domínio dos deuses e o dos mortais – a porta do templo; o domínio da vida privada e o da vida pública – a porta da casa; a cidade e o campo – a porta da muralha. Ora, a passagem de um lugar a outro é tão perigosa como a de uma época a outra. Van Gennep notou-o muito bem a propósito dos primitivos em seu livro célebre sobre Os ritos de passagem: há ritos de entrada e ritos de saída – e tudo isso vale tanto para os modernos como para os antigos. O muçulmano deixa os sapatos ao entrar na mesquita; o católico tira o chapéu, molha os dedos na pia de água benta, faz o sinal da cruz – e a gente simples declara que não se deve jamais sair da igreja pela mesma porta pela qual se entrou. E tudo isso vale ainda para a porta da casa como para a do templo. Não é à toa que, em certos países, o recém-casado toma sua jovem esposa nos braços ao transpor a soleira da casa, assim como existe todo um ritual de entrada quando se recebem visitas.

De minha parte, associo a decoração de um portal a tais ritos de passagem. A ornamentação é a cristalização na pedra do cerimonial de entrada ou de saída; seja como for, ela o prolonga e embeleza. Prova disso é a existência de portas sem parede, portas que o arquiteto destacou da casa para jogá-las no meio da rua: os arcos do triunfo. O arco do triunfo, com suas colunas, suas abóbadas, seus frontões mostra a que ponto, no pensamento místico das multidões, a porta é um dos elementos essenciais do cerimonial e como a beleza perecível da madeira esculpida ou a beleza mais permanente da pedra talhada, do mármore colorido, acrescenta grandeza e nobreza ao gesto do homem que caminha, que transpõe o umbral de todo um mundo.

Hoje em dia, em nossa sociedade democratizada e laicizada, a porta perdeu em grande parte essa função social. Tende cada vez mais a ser um simples vão na parede. Um orifício retangular no concreto armado. Apenas a igreja conserva a porta como espetáculo artístico, como uma moldura de quadro em que a tela pintada é substituída por um pintura sempre cambiante – a dos indivíduos que entram e saem e aos quais a escadaria, pela disciplina que impõe aos músculos, confere momentaneamente um ar de dança ou de procissão ritual.




Mas a porta não apenas abre como também fecha, impede a passagem, protege. É a tampa do cofre que guarda um segredo. Em casa, o homem não é mais o homem da rua, ele abandonou, despiu sua personalidade pública, profissional; o batente o defende não apenas contra o ladrão, mas também contra o indiscreto. E sabemos que, outrora, a magia das aberturas tornava-as particularmente perigosas: daí todas as precauções que se tomavam para despistar os maus espíritos, os demônios, e para proibir às influências nefastas – e também aos "maus ares", à doença e ao azar – que penetrassem pela abertura. O gesto, a que já aludimos, de carregar a jovem esposa ao transpor a soleira visa justamente salvar a mulher, mais permeável que o homem, dessas más influências. Ainda hoje, o folclore rural brasileiro dá mostras da permanência dos objetos profiláticos pendurados à porta dos casebres campestres: selos-de-salomão ou cruzes rústicas, papéis com rezas "fortes", ferraduras, figas.

Se essa concepção da porta, que acabamos de esboçar brevemente, for correta, ela nos forçará a modificar a concepção clássica dos historiadores da arte a propósito da porta barroca.

O barroco, ao menos o barroco da Europa meridional, que é o único a nos interessar aqui, por suas ligações com o Brasil, é uma continuação do Renascimento. O Renascimento ressuscitara os elementos da arquitetura romana – os pilares, as colunas e seus entablamentos, o frontão etc.; mas esses elementos tinham uma função utilitária na arquitetura greco-romana: o pilar ou a coluna suportavam o peso do edifício, o frontão formava uma unidade com o teto. No Renascimento, esses elementos perderam suas verdadeiras funções utilitárias, não são mais que um aplique sobre a parede do edifício, ao redor da porta. Daí em diante, são suscetíveis de um tratamento que realça seu caráter artificial: o escultor pode fender o frontão a fim de inserir um cartucho, uma estátua, uma urna, pode cinzelar o pilar, pode retorcer a coluna, que não tem nada a suportar e que não precisa mais de sua solidez primitiva. Isso é o barroco.

Em linhas gerais, a tese é correta, é uma descrição exata do que se passou historicamente. Mas a oposição entre função arquitetural e ornamentação gratuita parecerá exagerada se pensarmos que a porta sempre teve alguma coisa de festivo, de cerimonial da pedra.

Desde as primeiras construções foi necessário introduzir sobre a porta um tronco de árvore que suportasse o peso da parte superior do edifício e, por sua vez, para suportar esse tronco talhado em ângulo reto, outros dois troncos-coluna a cada lado da abertura. Ora, os próprios materiais utilizados suscitavam uma moldura que ultrapassava a parede como saliência reta ou redonda. A função utilitária era também ornamentação e, nos dias de festa, essa ornamentação complicava-se com guirlandas de folhas entrelaçadas a flores, tranças e cipós que o barroco, mais tarde, imobilizará na pedra.




A casa, assim como o templo, respondia a necessidades coletivas, a necessidades sociais. Não se pode conceber um edifício como simples teorema de geometria aplicada, independente das funções sociológicas a que responde. O erro da tese clássica sobre o barroco está justamente em separar arbitrariamente a função arquitetônica pura da função social. A porta sempre foi o lugar privilegiado da ornamentação, em razão dos rituais de entrada e de saída, tanto na arquitetura religiosa como na arquitetura civil, no templo grego como na praça-forte, na arte românica assim como na arte gótica. O que muda com o barroco é a função social da porta, e é isso que, por sua vez, acarreta a passagem da coluna de sustentação à coluna-aplique, do frontão-teto ao frontão ornamental.

O barroco é o reino da festa perpétua (até mesmo a morte é motivo de festa, com seus grandes catafalcos). E também o reino da representação. Muito se disse sobre a ligação entre o barroco, o absolutismo real e as pretensões católicas do papado. Mas o absolutismo não impede a estratificação da sociedade em classes hierarquizadas, as pretensões da nobreza, a luta da burguesia nascente por um status social, assim como as pretensões pontifícias não impedem a luta das ordens religiosas e a concorrência pelo governo das almas. Todo homem desempenha um papel. A peruca majestosa dos cortesãos, os longos vestidos armados das infantas espanholas, a ordem das procissões pressupõem a porta ornamentada, a abertura festiva do palácio, da mansão ou da igreja. Já a porta da igreja ogival era ornada, mas por uma razão sociológica diferente, ela era uma ilustração da Bíblia, o livro ilustrado do povo analfabeto. A porta da igreja barroca é ornamentada de modo a formar o arco do triunfo do bispo que vem teatralmente abençoar a multidão. O frontão das portas senhoriais se fende para sustentar entre as duas tenazes ou volutas marinhas o brasão que exalta o fidalgo. Em suma, o que me parece essencial não é a passagem do elemento arquitetônico ao aplique ornamental, mas a passagem de um função sociológica da decoração a outra. É a mudança de função que conduz ao aplique.

O barroco brasileiro não é mera imitação. Ele responde, na colônia portuguesa, às mesmas funções que na Europa. É também, para os jesuítas e para as demais ordens religiosas, uma manifestação de poder. É ainda, para os senhores de engenho do Nordeste, uma manifestação de seu status social. Por isso, a porta desempenhará aqui um papel tão importante quanto do outro lado do Atlântico.

O que salta à vista é a falta de distinção, como de resto já acontecia na península Ibérica, entre arquitetura civil e arquitetura religiosa. Com efeito, o brasileiro é muito católico, não imagina a própria vida longe da Virgem e dos santos que protegem a ele e a sua família, santos familiares que, por assim dizer, fazem parte da casa (G. Freyre escreveu a esse respeito algumas páginas clássicas). É por isso que o cartucho do frontão da porta da casa pode conter uma imagem de santo, assim como na igreja. E a igreja, por sua vez, a fim de declarar seu poder temporal e mesmo sua disputa com o senhor de engenho, empregará na manifestação de seu status social os mesmos argumentos de pedra talhada, de enquadramento, de majestade que o leigo utiliza. Desse modo, as armas do arcebispo podem às vezes tomar o lugar da estátua do santo. É bem verdade que os ornamentos que se enrodilham em torno à porta da igreja podem, por um resto de tradição, conservar o trigo da hóstia e a uva do vinho da missa; mas, em geral, é a flor que domina, ou ainda a folha, a concha, o simples entrelaçamento de linhas, de arabescos caprichosos. Ornamentos, de resto, idênticos aos da Europa. Raros são os elementos tirados da terra: às vezes o abacaxi ou a touceira de milho.




Pode-se acompanhar, através das portas da Bahia ou de Recife, a evolução que conduz da porta jesuítica à porta barroca, e desta à porta rococó. Nem sempre se trata de uma mera evolução cronológica, pois há fenômenos de retardamento, tradições que se mantêm em meio às novidades. A porta jesuítica é a mais simples de todas, ainda ligada àquele movimento da Contra-Reforma que, mesmo afirmando o valor das imagens contra o protestantismo, tivera que se haver com o puritanismo: a abertura é realçada apenas pela leve saliência das pilastras. Em seguida, o frontão se fende e a cornija se projeta: é a revelação dos jogos de sombra e luz que, nos Trópicos, assumem um aspecto ainda mais fantástico que na Europa. Com o barroco propriamente dito, por mais que a pilastra continue a predominar no Brasil, surge também a coluna: mas, por vezes, como na igreja de são Francisco de Olinda, ela não serve a mais nada, chegando a prejudicar a beleza do cenário, fazendo parecer mais medíocre o cartucho terminal da porta e conferindo uma impressão de inacabamento. Em seguida, o frontão fendido começa a se curvar, ao passo que as pilastras se lavram em caneluras, em cordames, se arqueiam em folhas de acanto, transformando-se numa espécie de painel florido. A própria porta, de retangular que era, passa ao arco abatido ou cimbrado. Vale fazer uma menção especial à porta do Liceu de Artes e Ofícios da Bahia, não apenas por seu excesso ornamental, de todo modo raro no Brasil, nem por causa das duas estátuas encostadas às pilastras que guardam a porta, mas por causa da coluna e, mais exatamente, de sua base, que nos permite assistir à metamorfose da coluna em cariátide: o trabalho em relevo na pedra esboça o busto feminino, o bojo do ventre, ao passo que as linhas curvas do alto desenham a cabeça de sabe-se lá qual deus pré-colombiano, e as folhas esculpidas, reunindo-se, tornam-se véus a ocultar a nudez da coluna-mulher. Pouco a pouco, a graça sucede à majestade, o grácil ao suntuoso, sentimos o rococó que se aproxima, com suas cornucópias, seus buquês de flores, seu jogo amável de linhas curvas, seus nós de fitas e suas conchas que fazem pensar no nascimento de Vênus. Mas a porta é apenas uma parte do edifício e deve se ligar ao conjunto. O problema nem sempre foi resolvido com a mesma felicidade. Certamente, e sobretudo no caso das igrejas, a escadaria monumental, mesmo que de poucos degraus, eleva a porta acima do chão e lhe confere uma grandeza nova. Ao forçar o indivíduo a erguer a vista, ela o obriga a dirigir o olhar para a parte superior, o ático, o medalhão ou o cartucho, para a parte mais importante tanto em termos sociais (nicho de santo, brasão, armas) como em termos estéticos (lugar em que a decoração domina). Mas é igualmente preciso examinar as relações entre a porta e a janela. A igreja do Rosário dos Pretos da Bahia, com seus arcos lanceolados, liga graciosamente a parte inferior das janelas à parte superior da porta. Mas o nicho do convento da Lapa invade a janela. O espaço compreendido, na igreja de Santo Antônio, em Recife, entre o primeiro andar e o chão é tão exíguo que o frontão da porta vê-se um tanto comprimido demais, ao passo que, em outros casos, o frontão, a fim de chegar à janela sem deixar muito espaço vazio, é obrigado a se estender com algum abuso. Contudo, deve-se reconhecer que os arquitetos tentaram resolver o problema das proporções fosse alargando a porta, fosse alongando-a. Percebe-se que, quase sempre, a porta foi concebida na perspectiva do edifício, e não em si mesma.

Mas a porta, como dizíamos no início, não é apenas um vão emoldurado. É ainda o batente que protege e obstrui. E não devemos admirar exclusivamente, nos portais do Nordeste brasileiro, a arte do entalhador de pedra, mas também a do entalhador de madeira.

A segurança das cidades ainda não era tal que o batente da porta pudesse ser um mero símbolo da proibição de entrar. A porta é maciça e gira pesadamente sobre suas dobradiças. Mas justamente a espessura da madeira permite que o artista dê livre curso à fantasia estética. Também aqui há uma longa evolução, da porta majestosa, de linhas geométricas, losangos, quadrados e retângulos imbricados no batente, à porta graciosa, com seus entalhes na massa da madeira, suas flores desabrochadas, suas folhas retorcidas e até mesmo suas leves guirlandas que dançam como ao sopro da brisa marinha.

Batente de recepção, batente de probição! Penso na cabeça da fotografia, que recebe o visitante, mostrando-lhe a língua. E penso na cabeça de Medusa, que não se podia contemplar sem ser instantaneamente petrificado e cujo significado sexual eu sublinhei em minha Psicanálise do cafuné. Mas penso ainda em certa conferência de Gilberto Freyre sobre o caráter "moleque" do baiano, perceptível até mesmo no grave Ruy Barbosa. Essa língua mostrada ao visitante, essa transformação da cabeça mágica e profilática que protege a entrada contra as más influências e que se transmuta aqui em língua mostrada maliciosamente ao visitante que vem bater à porta – quem poderia encontrar imagem mais bela para ilustrar a tese de G. Freyre sobre o caráter "moleque" da cidade de Salvador? Eu acrescentaria de bom grado essa aldrava em forma de mão feminina, motivo bem tradicional, mas que se harmoniza tão bem ao gênio da Bahia, à sua sensualidade; essa mão acolhedora, sinal de amizade que retemos em nossa própria mão um momento antes de bater, como se fosse a da dona da casa, e que logo se transformará, assim que a deixemos cair, em mão musical.

De modo que, mesmo em suas portas, a Bahia é a cidade de "todos os santos e todos os pecados".




Recebido para publicação em 22 de junho de 2006




Notas:

Fotos: Pierre Verger
Tradução de Samuel Titan Jr.
Apresentação de Fraya Frehse e Samuel Titan Jr.
Fraya Frehse é professora no Departamento de Sociologia da USP.
Samuel Titan Jr. é professor no Departamento de Teoria Literária da USP.

[*] Novos Estudos agradece a Glória Amaral e ao Centre d'Études Bastidiennes pela contribuição e à Fundação Pierre Verger por autorizar a publicação das fotos. Parte representativa do trabalho de Verger pode ser vista na mostra "O Brasil de Pierre Verger", em exposição no Museu de Arte Moderna de Salvador até 08 de novembro de 2006, e no catálogo homônimo. Mais informações em http://www.pierreverger.org/. O tradutor agradece a leitura de Guilherme Wisnik.
[1] Cf.Antonio Candido,"Roger Bastide e a literatura brasileira", in Recortes (São Paulo: Companhia das Letras, 1996),pp.99-104. [ Links ]
[2] Gilda de Mello e Souza, "A estética rica e a estética pobre dos professores franceses". In: Exercícios de leitura (São Paulo:Duas Cidades,1980), pp.9-10. [ Links ]


Fonte:

Novos Estudos - CEBRAP
Print ISSN 0101-3300
Novos estud. - CEBRAP no.75 São Paulo July 2006
doi: 10.1590/S0101-33002006000200009

http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-33002006000200009&script=sci_arttext