segunda-feira, 29 de junho de 2009

Hakim Bey: o profeta anarquista do CAOS eletrônico




Por: Ricardo Rosas



1ª cena : Imagine um místico enlouquecido gritando numa montanha. Suas palavras são um misto de poesia e aviso, como as iluminações desses bárbaros visionários, Blake ou Nerval, como os antigos druidas, xamãs e profetas a vaticinar o futuro da tribo.

2ª Cena : Imagine agora um pirata. Pense nas comunas piratas livres dos mares perdidos, pense nos bucaneiros, nessas congregações misto de utopia e anarquia, pense até mesmo nos hackers modernos, esses nômades piratas de dados a surfar na net oceano de nossa época, onde a noção de propriedade, principalmente intelectual, é cada vez mais próxima de uma miragem fadada ao desaparecimento.

3ª Cena : Visualize um poeta, burilador de palavras a jorrar significados e imagens vertiginosas num turbilhão borbulhante, caótico, recheado de mensagens mas igualmente lírico, num ritmo fluido que lembre o desregramento dos sentidos de Rimbaud ou o caleidoscópio de imagens de Allen Ginsberg.

4ª Cena : Na Biblioteca de Babel, move-se um erudito. Imagine esse sábio que já percorreu os livros místicos do hinduísmo e do sufismo, que conhece os segredos dos neo-platônicos e dos alquimistas, os livros de emblemas da época barroca, infinitudes de poesia, que já leu utopistas e enciclopedistas, e todo um "contracânone" ou tradição de inconformistas que vai de Sade, passando por Fourier, Nietzsche, Baudelaire, Bakunin, até chegar aos luminares da ainda fértil contracultura americana, sejam eles Timothy Leary ou Robert Anton Wilson, ou ainda os subversivos teóricos do situacionismo, como Guy Debord e Raoul Vaneigem. Para articular tanta informação, esse erudito move-se por seus dados não de uma forma racional, mas como Salvador Dali teria formulado de maneira precisa : por um método crítico-paranóico, juntando dados aparentemente isolados, impensados, numa livre associação que ele chamará de palimpsesto, junção de camadas interrelacionadas.

Todas as cenas agora juntas. O homem é um só. Seu nome : Hakim Bey.

O nome é antes uma persona de Peter Lamborn Wilson, um estudioso americano dos sufis, que chegou viver alguns anos no Irã e conviveu com comunidades de devirxes, estudando rituais secretos dos sufis. Tradutor de poesia sufi e teórico rebelde, Wilson publicou, entre outros, uma coleção de estudos sobre os anarquistas do século dezenove, em Escape the nineteenth century, e um livro polêmico sobre costumes secretos da tradição sufi com o título nada inocente de Scandal : Essays in Islamic Heresy, onde aborda desde a seita dos Assassinos de Hassan Ibn Sabah (um dos temas prediletos de William Burroughs), o consumo de haxixe e outros estupefacientes entre os sufis, e o hábito de contemplação pedofílica entre poetas no Islã. Não se assuste: ousadia e surpresa são uma permanente nesse pensador do impensável. Não bastasse ir bem além das fronteiras que Salman Rudshie sequer atravessou, Lamborn Wilson avançou mais ainda teorizando sobre nossa época, a crescente virtualização do pensamento e das transações econômicas, juntou a isso seu conhecimento cabal do ideário anarquista e dos movimentos subversivos que o precederam, e assim surgiu Hakim Bey.

Esqueça agora a pós-modernidade, esqueça a Nova Era, esqueça o fim da história. Hakim Bey já esteve lá, e, quem sabe, poderá lhe contar como serão os tempos vindouros. A contemplação do sublime tecnológico e a frivolidade paródica da pós-modernidade são absolutamente alheios a este ativista tecno-pagão e iconoclasta. Os anjinhos sorridentes do supermercado new age são quebrados a martelo pelo dionisismo nietszcheano brotando nas raves e por magos seguidores de Aleister Crowley. O conformismo dos pregadores do fim da história e da globalização é desafiado pelas hordes de anarquistas nômades que falam outra linguagem que não a do mercado das grandes corporações.

É da pena de Hakim Bey que surgiu o já clássico TAZ (Temporary Autonomous Zone) ou Zona Autônoma Temporária. A TAZ ou ZAT, em português, é livro de cabeceira(ou de tela, se preferir) de nove entre dez ativistas eletrônicos, e, pode ter certeza, eles não são poucos. Liberado de direitos autorais, como de resto toda a obra de Hakim Bey, a ZAT é como diz o próprio nome, uma zona de liberdade temporal, onde a livre expressão, o livre pensamento, a imaginação, crença e prática são exercido sem a repressão e o controle da autoridade, i.e. o Estado e a Mídia. Dado seu caráter temporário, volátil e passageiro, a ZAT tem a pretensão da realização utópica no aqui e no agora.

Sua grande inspiração são as utopias piratas dos séculos dezessete e dezoito e sua materialização mais fremente são as festas, celebrações coletivas, as raves, o carnaval, os sites de troca de livre informação, todo e qualquer lugar onde se possa exercer a plena liberdade mesmo que por uma curta duração de tempo. Lugar ideal de autonomia temporária, a internet, por seu caráter invisível permite, pelo menos por enquanto, essa troca nômade de experiências, esse intercâmbio de desejos livres. Lugar de desaparecimento, onde a presença é nada mais que um dado, a internet proporcionaria o ponto de fuga necessário para as estratégias de ataque à ordem global ora vigente. Para isso, Bey falará de uma contranet, uma rede de informações ligada aos membros do mundo oculto do underground e da contracultura, anarquistas, comunistas, hackers, cyberhippies, ecoguerrilheiros, e assim por diante. A ZAT seria o grande ponto de encontro, confluência de todas as tribos de discordantes, de xamãs, de tecno-rebeldes. Como tal, como vislumbre de uma utopia, a ZAT seria apenas o primeiro passo para a Zona Autônoma Permanente, aí sim, realização perene do desejo utópico.

Em seu filão de precursores, Bey citará os piratas bucaneiros, que formaram um república independente, estudará a utopia de Charles Fourier, com sua junção de arte e sexo na criação de um estado amoroso e chegará até mesmo à estranha república de Fiume, fundada pelo escritor italiano Gabrielle D´Annunzio, formada majoritariamente de anarquistas, segregados e párias sociais, putas, artistas e loucos em geral, uma piração do meio do século vinte, praticamente desconhecida em nossos manuais de história. Aí também poderão ser adicionadas as comunidades livres dos anos sessenta e setenta.

Pode parecer que não, mas a Zona Autônoma Temporária tem dado muito o que falar na internet. São numerosíssimos os sites em lingua inglesa com TAZ livre para download e eles vão de sites de estudos de tecnologia e sociedade, sites artísticos, de ativismo, de anarquistas, de contracultura e anos sessenta, de anti-copyright, neo-situacionistas ou de culture jammers. A influência de Hakim Bey é visível em toda uma nova geração de artistas e poetas, que já sentiam falta de alguém que levantasse a poeira como fizeram os beatniks nos anos cinquenta e sessenta. A ZAT reatualiza toda uma tradição de contestação nos Estados Unidos, que vem desde Henry D. Thoreau e sua Desobediência Civil, assim como do libertarianismo de Whitman. A nova geração de artistas, músicos e cineastas na linha anticopyright assim como os “congestionadores de mídia”, os provocativos culture jammers, com suas estratégias de guerrilha sabotando propagandas, interferindo em slogans e produtos massificados, alterando discursos dos meios de comunicação seguem nada menos que esse anseio utópico anti-capitalista.

Além disso, a crescente popularidade das raves, o aspecto tecno-xamãnico dos DJs nessas reuniões gigantescas de uma coletividade que transcende barreiras com a dança, igualmente revela esse desejo de liberdade e elevação.

Mas há muito mais deste Marco Polo do mundo underground. Uma infinidade de textos com sua rubrica e indefectível visão crítica estão espalhados pela rede. Alguns se inclinam mais para o ensaio, outros para a poesia. Coisas como CHAOS : the broadsheets of onthological anarchism (CAOS: os panfletos do anarquismo ontológico), pura poesia subversiva e inconformista.

Com idéias pertubadoras, imagens pouco aceitáveis, o libertarianismo de Hakim Bey é um vento fresco numa época de tanto conservadorismo como a nossa. Seu antídoto é poderoso frente ao marasmo pós-moderno e ao controle mental das maiorias silenciosas. Depois dele, muitos já surgiram. Outros surgirão.

Como Grant Morrison, Bey é um desses caras que conseguiu ligar os dados certos, fazendo as conexões mais inesperadas mas nem por isso menos corretas. Sua intuição e capacidade visionária nos põe anos à frente em relação ao que pode acontecer neste planeta. Não só. Sua re-visão do passado igualmente ilumina em relação a coisas às quais ainda não havíamos atentado.


[Abril de 2000]

(Arquivo Rizoma)


Fonte: Rizoma

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Lévi-Strauss e o Budismo



"Na verdade, que mais aprendi com os mestres que escutei, com os filósofos que li, com as sociedades que visitei e com essa própria ciência da qual o Ocidente se orgulha, senão fragmentos de lições que, unidos uns aos outros, reconstituem a meditação do Sábio ao pé da árvore? Todo esforço para compreender destrói o objeto a que estávamos ligados, em benefício de um esforço que o suprime em benefício de um terceiro, e assim por diante, até chegarmos à única presença durável, que é esta em que desaparece a distinção entre o sentido e a ausência de sentido: a mesma de onde partíramos. Já se vão 2500 anos que os homens descobriram e formularam essas verdades. Desde então, nada descobrimos, a não ser - experimentando, após outros, todas as portas de saída - outras tantas demonstrações suplementares da conclusão de que gostaríamos de escapar."


Claude Lévi-Strauss - Tristes Trópicos (pg. 389, Cia. das Letras, 1996)

sábado, 20 de junho de 2009

Durkheim e o Budismo ou Uma Nota Sobre o Rodapé


Segue abaixo um trecho d'As Formas Elementares da Vida Religiosa (pg. 13, editora Martins Fontes, 2003), de Durkheim, a respeito do budismo e acompanhado de uma nota de rodapé um tanto quanto curiosa...


"Em vez de rezar, no sentido usual da palavra, em vez de voltar-se para um ser superior e implorar sua assistência, concentra-se em si mesmo e medita. Isso não significa 'que negue frontalmente a existência de seres chamados Indra, Agni, Varuna (19), mas julga que não lhes deve nada e que não precisa deles', pois o poder desses seres só pode estender-se sobre os bens deste mundo, os quais, para o budista, são sem valor.

Nota:

19 - BARTH, p. 108. 'Tenho a convicção íntima, diz igualmente Burnouf, que, não tivesse Sakia-Muni encontrado a seu redor um panteão povoado com os deuses de que dei os nomes, ele não teria tido a menor necessidade de inventá-lo' (Intr. à l'hist. du bouddhisme indien, p.119). "


Burnouf foi um importante estudioso francês do séc. XIX, especializado nos estudos sobre o Oriente. Para saber mais: http://en.wikipedia.org/wiki/Eugène_Burnouf

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Feitiçaria





Hakim Bey


O universo quer brincar. Aqueles que por ganância espiritual se recusam a jogar & escolhem a pura contemplação negligenciam sua humanidade - aqueles que evitam a brincadeira por causa de uma angústia tola, aqueles que hesitam, desperdiçam sua oportunidade de divindade - aqueles que fabricam para si máscaras cegas de Idéias & vagam por aí à procura de uma prova para sua própria solidez acabam vendo o mundo através dos olhos de um morto.

Feitiçaria: o cultivo sistemático de uma consciência aprimorada ou de uma percepção incomum & sua aplicação no mundo das ações & objetos a fim de se conseguir os resultados desejados.

O aumento da amplitude da percepção gradualmente bane os falsos eus, nossos fantasmas cacofônicos - a "magia negra'' da inveja & da vingança volta-se contra o autor porque o Desejo não pode ser forçado. Quando o nosso conhecimento da beleza harmoniza-se com o ludus naturae, a feitiçaria começa.

Não, não se trata de entortar colheres ou fazer horóscopos, não é a "Aurora Dourada'' nem um xamanismo de brincadeira, projeção astral ou uma Missa Satânica - se você quer mistificação, procure as coisas reais, bancos, política, ciência social - não esta baboseira barata da Madame Blavatsky.

A feitiçaria funciona criando ao redor de si um espaço físico/psíquico ou aberturas para um espaço de expressão sem barreiras - a metamorfose do lugar cotidiano numa esfera angelical. Isso envolve a manipulação de símbolos (que também são coisas) & de pessoas (que também são simbólicas) - os arquétipos fornecem um vocabulário para esse processo &, portanto, são tratados ao mesmo tempo como reais & irreais, como as palavras. Ioga da Imagem.

O feiticeiro é um Autêntico Realista: o mundo é real - mas a consciência também o deve ser, já que seus efeitos são tangíveis. Um obtuso acha que até mesmo o vinho não tem gosto, mas o feiticeiro pode se embriagar simplesmente olhando para a água. A qualidade da percepção define o mundo do inebriamento - mas, sustentá-lo e expandi-lo, para incluir os outros, exige um certo tipo de atividade - feitiçaria.

A feitiçaria não infringe nenhuma lei da natureza porque não existe nenhuma Lei Natural, apenas a espontaneidade da natura naturans, o Tao. A feitiçaria viola as leis que procuram deter seu fluxo - padres, reais, hierofantes, místicos, cientistas & vendedores consideram a feitiçaria uma inimiga porque ela representa uma ameaça ao poder de suas charadas & à resistência de sua teia ilusória.

Um poema pode agir como um feitiço & vice-versa - mas a feitiçaria recusa-se a ser uma metáfora para uma mera literatura - ela insiste que os símbolos devem provocar incidentes assim como epifanias particulares. Não é uma crítica, mas um refazer. Ela rejeita toda escatologia & metafísica da remoção, tudo que é apenas nostalgia turva & futurismo estridente, em favor de um paroxismo ou captura da presença.

Incenso & cristal, adaga & espada, cetro, túnicas, rum, charutos, velas, ervas como sonhos secos - o garoto virgem com olhar fixo num pote de tinta - vinho & haxixe, carne, iantras & rituais de prazer, o jardim de houris & sakis - o feiticeiro escala essas serpentes & escadas até o momento totalmente saturado por sua própria cor, em que montanhas são montanhas & árvores são árvores, em que o corpo torna-se eternidade & o amado torna-se vastidão.

As táticas do anarquismo ontológico estão enraizadas nesta Arte secreta - os objetivos ao anarquismo ontológico aparecem no seu florescimento. O Caos enfeitiça seus inimigos & recompensa seus devotos... este estranho panfleto amarelado, pseudonímico & manchado de pó, revela tudo... passe-o adiante por um segundo de eternidade.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

As idéias não têm autor




Antes de mais nada, trata-se de objetos de apropriação; a forma da propriedade que relevam é de tipo bastante particular; está codificada desde há anos. Importa realçar que esta propriedade foi historicamente segunda em relação ao que poderíamos chamar a apropriação penal. Os textos, os livros, os discursos começaram efetivamente a ter autores (outros que não personagens míticas ou figuras sacralizadas e sacralizantes) na medida em que o autor se tornou passível de se punido, isto é, na medida em que os discursos se tornaram transgressores. Na nossa cultura (e, sem dúvida, em muitas outras), o discurso não era, na sua origem, um produto, uma coisa, um bem; era essencialmente um ato - um ato colocado no campo bipolar do sagrado e do profano, do lícito e do ilícito, do religioso e do blasfemo. Historicamente, foi um gesto carregado de riscos antes de ser um bem preso num circuito de propriedades. Assim que se instaurou um regime de propriedade para os textos, assim que se promulgaram regras estritas sobre os direitos do autor, sobre as relações autores-editores, sobre os direitos de reprodução, etc. - isto é, no final do século XVIII e no início do século XIX -, foi nesse momento que a possibilidade de transgressão própria do ato de escrever adquiriu progressivamente a aura de um imperativo típico da literatura. Como se o autor, a partir do momento em que foi integrado no sistema de propriedade que caracteriza a nossa sociedade, compensasse o estatuto de que passou a auferir como o retomar do velho campo bipolar do discurso, praticando sistematicamente a transgressão, restaurando o risco de uma escrita à qual, no entanto, fossem garantidos os benefícios da propriedade.


Michel Foucault - saque/dádiva - Revista Azougue

domingo, 14 de junho de 2009

Mediterrâneo





ITÁLIA

(Álvares de Azevedo)


AO MEU AMIGO O CONDE DE FÉ

Veder Napoli e poi morir.


I

Lá na terra da vida e dos amores
Eu podia viver inda um momento;
Adormecer ao sol da primavera
Sobre o colo das virgens de Sorrento !

Eu podia viver — e porventura
Nos luares do amor amar a vida;
Dilatar-se minh'alma como o seio
Do pálido Romeu na despedida!

Eu podia na sombra dos amores
Tremer num beijo o coração sedento:
Nos seios da donzela delirante
Eu podia viver inda um momento!

Ó Anjo de meu Deus! se nos meus sonhos
Não mentia o reflexo da ventura,
E se Deus me fadou nesta existência
Um instante de enlevo e de ternura,

Lá entre os laranjais, entre os loureiros,
Lá onde a noite seu aroma espalha
Nas longas praias onde o mar suspira,
Minh'alma exalarei no céu da Itália!

Ver a Itália e morrer!... Entre meus sonhos
Eu vejo-a de volúpia adormecida:
Nas tardes vaporentas se perfuma
E dorme à noite na ilusão da vida!

E, se eu devo expirar nos meus amores,
Nuns olhos de mulher amor bebendo,
Seja aos pés da morena Italiana,
Ouvindo-a suspirar, inda morrendo.

Lá na terra da vida e dos amores
Eu podia viver inda um momento,
Adormecer ao sol da primavera
Sobre o colo das virgens de Sorrento!

II

A Itália! sempre a Itália delirante!
E os ardentes saraus, e as noites belas!
A Itália do prazer, do amor insano,
Do sonho fervoroso das donzelas!

E a gôndola sombria resvalando
Cheia de amor, de cânticos e flores,
E a vaga que suspira à meia-noite
Embalando o mistério dos amores!

Ama-te o sol, ó terra da harmonia,
Do levante na brisa te perfumas:
Nas praias de ventura e primavera
Vai o mar estender seu véu d'escumas!

Vai a lua sedenta e vagabunda
O teu berço banhar na luz saudosa,
As tuas noites estrelar de sonhos
E beijar-te na fronte vaporosa!

Pátria do meu amor! terra das glórias
Que o gênio consagrou, que sonha o povo,
Agora que murcharam teus loureiros
Fora doce em teu seio amar de novo:

Amar tuas montanhas e as torrentes
E esse mar onde bóia alcion dormindo,
Onde as ilhas se azulam no ocidente,
Como nuvens à tarde se esvaindo;

Aonde à noite o pescador moreno
Pela baía no batel se escoa,
E murmurando, nas canções de Armida,
Treme aos fogos errantes da canoa;

Onde amou Rafael, onde sonhava
No seio ardente da mulher divina,
E talvez desmaiou no teu perfume
E suspirou com ele a Fornarina!

E juntos, ao luar, num beijo errante
Desfolhavam os sonhos da ventura,
E bebiam na lua e no silêncio
Os eflúvios de tua formosura!

Ó anjo de meu Deus, se nos meus sonhos
A promessa do amor me não mentia,
Concede um pouco ao infeliz poeta
Uma hora da ilusão que o embebia!

Concede ao sonhador, que tão-somente
Entre delírios palpitou d'enleio,
Numa hora de paixão e de harmonia
Dessa Itália do amor morrer no seio!

Oh! na terra da vida e dos amores
Eu podia sonhar inda um momento,
Nos seios da donzela delirante
Apertar o meu peito macilento!


Maio, 1851 - S. Paulo.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Carta de Lévi-Strauss a André Breton (e resposta)



Carta de Lévi-Strauss a André Breton (e resposta)
[capítulo XX de Olhar escutar ler – Claude Lévi-Strauss]

Contei alhures* em quais circunstâncias conheci André Breton, a bordo do navio que nos levava à Martinica; uma longa travessia, cujo tédio e desconforto evitávamos discutindo a natureza da obra de arte, inicialmente por escrito, depois em conversas.

Para começar, eu tinha entregado uma nota a André Breton. Ele respondeu, e eu guardei preciosamente sua carta. Quis o acaso que, anos e anos mais tarde, eu encontrasse minha nota quando classificava papéis velhos; Breton provavelmente a tinha devolvido a mim.

Ei-la, seguida do texto inédito de André Breton, que agradeço a Elisa Breton e Aube Elléoüet por me terem autorizado a publicar.




Nota acerca das relações entre a obra de arte e o documento, escrita e entregue a André Breton a bordo do Capitaine Paul-Lemerle, em março de 1941

“No ‘Manifeste du surréalisme’ [Manifesto do surrealismo], A. B. define a criação artística como atividade absolutamente espontânea do espírito; uma tal atividade pode ser concebida como resultado de um treinamento sistemático e da aplicação metódica de um determinado número de receitas; contudo, a obra de arte se define – e se define unicamente – por seu caráter de liberdade total. Parece que, quanto a isso, A. B. modificou sensivelmente a sua atitude (em La situation surréaliste de l’objet [A situação surrealista do objeto]).

Entretanto, a relação existente, segundo ele, entre a obra de arte e o documento não é perfeitamente clara. Se é evidente que toda obra de arte é um documento, poder-se-ia admitir, como decorreria de uma interpretação radical de sua tese, que todo documento seja, por isso mesmo, uma obra de arte? Partindo da posição do Manisfeste, três interpretações são na realidade possíveis.

1) O valor estético da obra de arte depende exclusivamente de sua maior ou menor espontaneidade, sendo a obra de arte mais válida (enquanto tal) definida pela absoluta liberdade de sua produção. Como qualquer pessoa, adequadamente treinada, é capaz de atingir essa completa liberdade de expressão, a produção poética está aberta a todos. O valor documental da obra se confunde com seu valor estético; o me; o melhor documento (assim considerado em função do grau de espontaneidade criativa) é também o melhor poema; de direito, senão de fato, o melhor poema pode ser não apenas compreendido, mas produzido por qualquer um. É possível conceber uma humanidade cujos membros, exercitados por uma espécie de método catártico, seriam todos poetas.

Tal interpretação aboliria o conjunto dos privilégios eletivos compreendidos até o momento sob o nome de talento; e se ela não nega o papel do esforço e do trabalho na criação artística, no mínimo desloca-os para um estágio anterior ao da criação propriamente dita: o da busca difícil e da aplicação dos métodos para suscitar um pensamento livre.

2) Mantida a interpretação precedente, constata-se, contudo, a posteriori, que se os documentos obtidos de um grande número de indivíduos, do ponto de vista documental, podem ser considerados como equivalentes (isto é, resultantes de atividades mentais igualmente autênticas e espontâneas), não o são do ponto de vista artístico, já que alguns deles proporcionam gozo e outros não. Como continuamos definindo a obra de arte como um documento (produto bruto da atividade do espírito), aceitaremos a distinção sem procurar explicá-la (e sem ter para isso a possibilidade dialética). Constata-se a existência de indivíduos poetas e de outros que não o são, apesar da completa igualdade de condições de suas respectivas produções. Toda obra de arte continua sendo um documento, mas cabe distinguir, entre esses documentos, os que são também obras de arte e os que não passam de documentos. Mas como uns e outros seguem sendo definidos como produtos brutos, essa distinção, impondo-se ‘a posteriori’, será ela mesma considerada como um dado primitivo que escapa, por sua natureza, a qualquer interpretação. A especificidade da obra de arte será reconhecida, sem que seja possível explicá-la. Constituirá um ‘mistério’.

3) Finalmente, uma terceira interpretação, embora mantenha o princípio fundamental do caráter irredutivelmente irracional e espontâneo da criação artística, distingue entre o documento, produto bruto da atividade mental, e a obra de arte, que é sempre uma elaboração secundária. É evidente, contudo, que tal elaboração não pode ser obra do pensamento racional e crítico; tal possibilidade deve ser definitivamente excluída. Mas supõe-se que o pensamento espontâneo e irracional pode, em certas condições, e em alguns indivíduos, tomar consciência de si mesmo e tornar-se verdadeiramente reflexivo, contanto que essa reflexão se exerça segundo normas que lhe são próprias, e tão refratárias à análise racional quanto a matéria a que se aplicam. Essa “tomada de consciência irracional” acarreta uma certa elaboração do dado bruto, exprime-se pela escolha, a eleição, a exclusão, o ordenamento em função de estruturas imperativas. Se toda obra de arte continua sendo um documento, ela ultrapassa o plano documental, não apenas pela qualidade da expressão bruta, mas também pelo valor da elaboração secundária, que, aliás, só é chamada de “secundária” em relação aos automatismos de base, mas que, em relação ao pensamento crítico e racional, apresenta o mesmo caráter de irredutibilidade e de primitividade que os próprios automatismos.

A primeira interpretação não está de acordo com os fatos. A segunda diminui o problema da criação artística de análise teórica. A terceira, ao contrário, parece ser a única capaz de evitar certas confusões, das quais o surrealismo parece nem sempre ter escapado, entre o que é esteticamente válido e o que não é, entre o que é mais ou menos esteticamente válido. Todo documento não é necessariamente uma obra de arte, e tudo o que constitui uma ruptura pode ser igualmente válido para o psicólogo ou para o militante.

A obra de um débil mental tem um interesse documental tão grande quanto a de Lautréamont, pode ter uma eficácia polêmica superior, mas uma é obra de arte e a outra não, e é preciso dispor do meio dialético de explicar a diferença, assim como a possibilidade de Picasso ser um pintor maior do que Braque, Apollinaire um grande poeta e Roussel, não, Salvador Dali, um grande pintor e ao mesmo tempo um escritor detestável, sendo estas opiniões registradas apenas à guisa de exemplo(1), mas opiniões desse tipo, ainda que possivelmente diferentes ou opostas, devem constituir o termo absolutamente necessário da dialética do poeta e do teórico.

Como as condições fundamentais da produção do documento e da obra de arte foram reconhecidas como idênticas, essas distinções essenciais só podem ser atingidas deslocando-se a análise, da produção para o produto, e do autor para a obra.”

Relendo hoje essa nota manuscrita, incomodam-me o desajeitado do pensamento e o peso da expressão. Não me basta a desculpa de tê-la escrito diretamente (apenas duas palavras foram rasuradas). Teria preferido esquecê-la. Mas isso não teria sido justo para com o texto importante que Breton me entregou como resposta. Sem o meu, não seria possível compreender de que trata o dele.

No manuscrito de Breton, rasuras cuidadosas tornam indecifráveis uma dezena de palavras ou trechos de frases, substituídos por uma nova redação nas entrelinhas, em que há também alguns acréscimos. As correções feitas nas últimas linhas, bastante rasuradas, não permitem decidir se Breton, menos apressado em concluir, teria optado por uma construção gramatical ou se a rejeitou deliberadamente.





Resposta de André Breton


“A contradição fundamental que o sr. sublinha não me escapou: permanece, apesar de esforços meus e de outros para reduzi-la (mas ela não me preocupa, e não poderia confundir-me, pois sei que nela reside o segredo do movimento para a frente que permitiu ao surrealismo durar). Sim, naturalmente, minhas posições variaram sensivelmente depois do primeiro manifesto. No interior de tais textos-programa, que não suportam a expressão de nenhuma reserva, de nenhuma dúvida, cujo caráter essencialmente agressivo exclui qualquer espécie de nuance, é claro que meu pensamento tende a adquirir uma forma extremamente brutal, simplista até, que eu não lhe reconheço internamente.

Tal contradição, que lhe chama a atenção, é, creio, a mesma que Callois, como eu lhe dizia, ressaltou com tanta severidade. Tentei explicar-me num texto intitulado ‘La beauté sera convulsive’ [A beleza será convulsiva] (Minotaure n. 5) e retomado no início de L’amour fou [O amor louco]. De fato, eu cedo alternadamente – mas, afinal, por que não? não sou o único – a duas tendências bem distintas: a primeira leva-me a buscar na obra de arte um gozo (é a única palavra adequada, o sr. a utiliza, pois a análise desse sentimento em mim apresenta-me apenas elementos para-eróticos); a segunda, que pode manifestar-se independentemente da primeira ou não, leva-me a interpretá-la em função do desejo geral de conhecimento. Essas duas tentações, que distingo no papel, nem sempre são destrinçáveis (tendem igualmente a confundir-se em diversas passagens de Une saison em enfer [Uma temporada no inferno].

É evidente que, se toda obra de arte pode ser considerada do ângulo do documento, a recíproca não poderia de modo algum sustentar-se.

Examinando sucessivamente as suas três interpretações, não sinto nenhum incômodo em dizer-lhe que só me sinto próximo da última. Direi, contudo, algumas palavras a respeito das anteriores:

1) Não estou seguro de que o valor estético da obra de dependa de sua maior ou menor espontaneidade. Eu tinha em vista muito mais sua autenticidade do que sua beleza, e a definição de 1924 é testemunho disso: ‘Ditada pelo pensamento... fora de qualquer preocupação estética ou moral’. Não lhe escapará sem dúvida que a omissão deste último trecho da frase teria privado o autor de textos automáticos de uma parte de sua liberdade: era preciso começar por protegê-lo de qualquer julgamento dessa ordem se se quisesse evitar que fosse por ele constrangido ‘a priori’ e se comportasse de acordo.

Isso não foi, infelizmente, de todo evitado (mínimo de arranjo do texto automático em poema: deplorei-o em minha carta a Rolland de Reneville, publicada em Point du jour, mas é fácil isolar a preocupação e abstrair-lhe a obra em questão).

2) Não estou tão seguro quanto o sr. da grande diferença qualitativa que existe entre os diversos textos totalmente espontâneos que podem ser obtidos. Sempre me pareceu que ‘o principal’ elemento de mediocridade suscetível de intervir devia-se à impossibilidade em que se encontram muitos seres de colocar-se nas condições exigidas para a experiência. Eles se contentam em registrar discursos sem nexo, cujo sem pé nem cabeça, o despropósito, nos ilude mas que, por sinais facilmente perceptíveis, podemos constatar que não se jogaram realmente naquilo, o que basta para afastar seu alegado testemunho. – Se digo que não estou tão certo quanto o sr., é principalmente porque ignoro como o ‘eu’ (comum a todos os homens) se encontra repartido (igualmente ou, se desigualmente, em que medida?) entre os homens. Apenas uma investigação de caráter sistemático ‘e que deixe provisoriamente de lado os artistas’ poderia instruir-nos a esse respeito. A hierarquização das obras surrealistas não me interessa nem um pouco (ao contrário de Aragon, que afirmava outrora: “Se se escreve de maneira puramente surrealista tristes imbecilidades, serão tristes imbecilidades”); bem como, o que já declarei, a hierarquização das obras românticas ou simbolistas. Minha classificação destas últimas seria profundamente diferente da corrente e, principalmente, objeto a essas outras classificações pelo fato de nos fazerem perder de vista o significado profundo, histórico, desses movimentos.

3) A obra de arte exige ‘sempre’ essa elaboração secundária? Sim, certamente, mas apenas no sentido bastante lato em que o sr. a entende, como “tomada de consciência irracional”; e, mesmo assim, em que nível da consciência essa elaboração se opera? Em todo caso, não sairíamos do pré-consciente. As produções de Hélène Smith em estado de transe não podem ser consideradas como obras de arte? E se conseguissem provar que determinados poemas de Rimbaud são pura e simplesmente devaneios, sonhos em estado de vigília, o sr. os apreciaria menos? Relegá-los-ia à gaveta dos “documentos”? A distinção continua a parecer-me arbitrária. Torna-se, a meu ver, enganosa quando o sr. opõe Apollinaire poeta a Roussel não-poeta ou Dali pintor a Dali escritor. O sr. tem certeza de que o primeiro desses julgamentos não por demasiado tradicionalista, que não leva demais em conta a “velharia poética”? Não considero Dali um grande pintor, e isso pela excelente razão de que sua técnica é manifestamente regressiva. Nele, é realmente o homem que me interessa, e sua interpretação poética do mundo. Assim, não posso associar-me a sua conclusão (mas disso o sr. já sabia). Outras razões mais imperiosas militam em favor de sua não-aceitação de minha parte. Essas razões, insisto, são de ‘ordem prática’ (adesão ao materialismo histórico). O aligeiramento da responsabilidade psicológica é necessário para a obtenção da atitude inicial de que tudo depende, sim, mas a responsabilidade psicológica e moral muito mais: identificação progressiva do eu consciente com o conjunto de suas concretizações (a expressão é desajeitada) considerado como teatro no qual ele é chamado a produzir-se e reproduzir-se, tendência à síntese do princípio de prazer e do princípio de realidade (perdoe-me permanecer sempre a beira de meu pensamento a esse respeito); concordância a qualquer custo entre o comportamento extra-artístico e o da obra: anti-valerysmo.”

*em Tristes Trópicos

(1) Ainda que formuladas de modo hipotético, parecem-me hoje em dia bastante ingênuas. Meus horizontes de 1941 iriam, felizmente, expandir-se ao contato com os surrealistas.

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[capítulo XX de Olhar escutar ler – Claude Lévi-Strauss]




Nota do Blog:

Como o leitor pode facilmente perceber, o texto acima contém alguns erros. Ele foi extraído do site: http://www.esnips.com/doc/f8567214-8eb7-451f-bab0-7fed5b54ded1/Carta-de-L%C3%A9vi-Strauss-a-Andr%C3%A9-Breton , e não diretamente do livro indicado. Caso alguém saiba como ele originalmente se apresenta, por favor, envie-me a correção.