quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Os ciclos da vida, para & por Lew Welch


For/From Lew

Lew Welch just turned up one day,
live as you and me. "Damn, Lew" I said,
"you didn't shoot yourself after all."
"Yes I did" he said,
and even then I felt the tingling down my back.
"Yes you did, too" I said—"I can feel it now."
"Yeah" he said,
"There's a basic fear between your world and
mine. I don't know why.
What I came to say was,
teach the children about the cycles.
The life cycles. All other cycles.
That's what it's all about, and it's all forgot."




(Gary Snyder)

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Natureza & Cultura xeque-mate


Natureza & Cultura, versão americanista – Um sobrevoo (1)

Renato Sztutman (2)
Professor do Departamento de Antropologia da USP



O problema

A pergunta que orienta esta apresentação – e que pode soar ingênua – é a seguinte: o dualismo que se estabeleceu entre a natureza e a cultura – algo que, no mínimo, diz muito sobre nós mesmos, ocidentais, modernos, euroamericanos etc. – é bom para pensar as sociocosmologias ameríndias? Tendo em vista a produção americanista das últimas décadas podemos nos antecipar e afirmar que a resposta é, claramente, NÃO. O que interessa aqui passa a ser, justamente, como chegamos a esta resposta que, por seu turno, tampouco é unívoca.

Estabeleçamos que estas sociocosmologias – que não devem jamais ser concebidas como desvinculadas da prática, ou seja, que devem ser antes concebidas como cosmopráxis – apresentam alguns pontos em comum. Vejamos:

1) No tempo do mito, diz-se, animais, plantas e outros seres que tendemos a denominar não-humanos eram humanos, pois se comunicavam plenamente com os humanos, partilhando com eles tudo o que havia no mundo. Este ponto foi discutido por Lévi-Strauss em vários momentos de sua obra sobre a mitologia ameríndia, em especial na tetralogia Mitológicas, sobre a qual ele medita, de maneira bastante esclarecedora, na entrevista que concedeu a Didier Éribon (Lévi-Strauss & Éribon, 2005).

2) No tempo atual, embora diferenciados – sobretudo por suas formas corporais – estes animais, plantas e outros seres que tendemos a denominar não-humanos ainda se pensam como humanos – ainda portam algo como uma alma humana – e muitas vezes podem se revelar como tais. Isto consiste, por exemplo, na ideia de “animismo”, tal como apresentada por Philippe Descola, tanto em seu trabalho etnográfico sobre os Achuar (Jivaro) como em sua obra comparativa (Descola, 1986; 2005).

3) Ora, se esses “outros seres” podem se revelar aos humanos como humanos, isso se dá, muitas vezes, porque eles tendem a ver os humanos como não-humanos. Ou ainda, isso se dá devido à ideia de que a humanidade é uma questão de perspectiva; perspectiva que pode ser roubada, perdida. Eis o argumento central da reflexão desenvolvida por Eduardo Viveiros de Castro e Tânia Stolze Lima sobre uma forma de pensamento por eles designada de “perspectivismo ameríndio”. Se esta reflexão teve sua origem na etnografia tupi, ela pôde ser vislumbrada nas terras baixas da América do Sul como um todo (Viveiros de Castro, 1986; 1998; 2002 e Lima, 2002; 2005).

4) Nessas paisagens ameríndias, pessoas como os xamãs – ou pajés, se quisermos manter a palavra de origem tupi – podem ter acesso a essa humanidade dos tais não-humanos, que se apresentam de variadas maneiras; por exemplo, como “donos das espécies naturais”, “donos da caça”, espíritos auxiliares ou patogênicos e daí em diante. Ora, esses xamãs – que não consistem exatamente em especialistas rituais, já que o xamanismo parece ser ali menos uma posição a ser ocupada do que uma qualidade (ou agência) a ser apropriada – definem-se, frequentemente, pelo fato de se submeterem a processos de metamorfose propiciados, por vezes, pelo uso de substâncias psicoativas como o tabaco e os alucinógenos.

5) Certos estados, como o sonho e o adoecimento, passíveis de serem experimentados por todos, constituem poderosos canais de comunicação com esses outros seres. Como a alucinação e a embriaguez, estes estados são sempre perigosos, pois implicam o risco de não retorno, de uma transformação mais radical. Se xamãs são aqueles que podem, com mais facilidade, gerenciar seu próprio trânsito, eles são necessários, muitas vezes, para intervir nos trânsitos malsucedidos de seus congêneres. Não por acaso, muitas vezes foram referidos na literatura etnológica como mediadores, diplomatas, curadores ou mesmo médicos.

Tendo em vista todas essas recorrências (aqui perpassadas por certa simplificação), é preciso tecer algumas ressalvas:

1) Estamos, aqui, diante de povos que praticam a caça como modo fundamental de “subsistência”, para não dizer de existência. Nesse sentido, a relação entre caçador e caça – relação de predação que compreende sempre dois termos, predador e presa – revela-se como a base para a concepção de outras modalidades de relação.

2) A relação descrita acima implica a necessidade de o caçador conhecer o animal a tal ponto que ele o conceba como sujeito pleno; que ele se imagine tomando a posição do animal.

3) A atribuição de humanidade, de subjetividade (alma? consciência?) a esses outros seres é, em larga medida, resultado de um processo de interação intensiva.

4) Não se trata, portanto, de uma simples projeção de ideias, mas de ideias que nascem na interação, na relação real (ou social) entre humanos e não-humanos.

5) O foco não recai apenas nos animais de caça. Há outros tipos de interação; por exemplo, com peixes, com plantas cultivadas, com plantas alucinógenas, com espíritos – muitas vezes “imagens”, “espectros”, “duplos” de espécies naturais ou mesmo de humanos, mortos, parentes ou inimigos –, ou até com artefatos.

6) Estas interações não envolvem, porém, todas as espécies, mas sobretudo as mais significativas na experiência. Por exemplo, os protótipos da predação – jaguares, sucuris e harpias – que fazem com que o homem ocupe o lugar de presa. E também os porcos-do-mato, especialmente as queixadas, que se emprestam para pensar a “condição humana”, uma vez que vivem de modo gregário e encontram-se, na floresta, em forte estado de vulnerabilidade. (3)


Diante deste panorama, a resposta para a pergunta colocada (se o dualismo natureza e cultura é bom para pensar as sociocosmologias ameríndias) é, provavelmente, NÃO. Ou, melhor: não é boa para pensar, ao menos, do modo pelo qual tendemos, os modernos, a conceitualizar esse dualismo. Isso pressupõe muitos níveis analíticos, e o problema se mostra mais complexo do que podemos imaginar. Se o dualismo natureza e cultura não é bom para pensar as sociocosmologias ameríndias, significa que eles(4) se furtam a fazer qualquer distinção deste tipo? Significa que eles não estabelecem distância alguma entre o que tomamos por natureza e por cultura, por humano e não-humano?

O dualismo natureza e cultura é algo bastante enfatizado pelos modernos no sentido de algo que organiza seu pensamento. Bruno Latour alega que a separação entre natureza e cultura (pensada por ele como “purificação” ou mesmo como “repartição ontológica”) está na base da constituição da ciência moderna e mesmo da modernidade como um todo, já que o “acordo constitucional” referido pelo autor diz respeito à separação decisiva, no século XVII, entre ciência e política; a primeira, engajada em revelar a natureza (alheia à ação humana) e a segunda em construir os coletivos humanos (para além das paixões humanas). Latour insiste em que “jamais fomos modernos”: jamais conseguimos separar natureza e sociedade. Fizemos, sim, proliferar os híbridos, ainda que tenhamos decidido mantê-los escondidos. O fato é que continuamos articulando em rede elementos heterogêneos. Latour alega que estamos caminhando para um mundo não-moderno – seja lá o que isso possa significar! E isso significa que o tal “acordo constitucional” passa por uma crise considerável, uma vez que deixamos de nos representar de modo adequado a partir dele (Latour, 1994). Tudo se passa como se o problema da insuficiência do dualismo natureza e cultura para pensar outros povos, entre eles os ameríndios, sinalizasse, também, a insuficiência de nossos modos de representação e, sobretudo, de nossos aparatos conceituais. Estes deveriam ser submetidos a uma espécie de “terapia”, de modo a se libertarem de projeções usuais.

Philippe Descola corrobora a ideia de uma crise da noção corrente de natureza, neste início do século XXI, e, por conseguinte, do naturalismo como ontologia que sustenta a existência de uma esfera capaz de transcender a ação humana (Latour, 2001). Essa crise (menos oficial do que oficiosa, para voltar aos termos de Latour) poderia ser deduzida a partir de diversos sintomas. Passemos por alguns, ainda que de modo superficial. Um deles, comenta Descola, pode se atestado nos estudos de etnoecologia que atentam para a inoperância da noção de “natureza virgem” ou “intocada”, uma vez que a ação humana interfere tanto na conformação dos ambientes como na produção contínua da biodiversidade. A floresta (muito se discutiu sobre este tema) submete-se a um processo constante de “antropização”. Em suma, populações como as ameríndias transformam, ativamente, o ambiente em que vivem e não podem ser reduzidas a sujeitos passivos diante de uma natureza intocável. Descola lança foco, também, sobre o desenvolvimento da psicologia experimental, que passa a verificar estados mentais tidos como propriamente humanos em populações tidas como não-humanas. Tais pesquisas autorizariam ideias como as de que podemos encontrar cultura e tecnologia entre os chipanzés, assim como linguagem entre baleias e golfinhos(5). Outro sintoma importante, agora em outro domínio, seria o avanço da biotecnologia no mundo moderno e, por conseguinte, a possibilidade de transformar o substrato biológico do homem; por exemplo, por meio de técnicas como a reprodução in vitro, a clonagem, a intervenção no genoma humano, o advento de homens-máquina ou ciborgues etc. Tal assunto tem sido bastante discutido na antropologia contemporânea, cada vez mais sensível ao problema da constituição das ciências modernas, bem como a questões de gênero e sexualidade, regiões em que o dualismo natureza e cultura parece vacilar. Toda essa discussão tem ganhado espaço especialmente nos trabalhos mais recentes de Marilyn Strathern, que se debruça sobre temas como parentesco euroamericano e sistemas de propriedade intelectual(6). Tudo se passa como se fatos internos à própria ciência e ao mundo moderno contribuissem para a crítica da separação moderna entre natureza e cultura e, nesse sentido, para a maior sensibilidade ou abertura aos ensinamentos, às lições das sociocosmologias ameríndias. Mas a maior sensibilidade ou abertura a esses ensinamentos não significa isenção de malentendidos. Afirmar que o mundo moderno vê-se invadido por todos esses sintomas e alegar a crise de sua ontologia naturalista (ou mononaturalista, como prefere Latour, seguindo Viveiros de Castro) não significa atestar a morte desta ontologia, que continua a operar em muitos domínios. Há imensa dificuldade de nos livrarmos da ideia de natureza como algo inato e, portanto, como algo exterior à ação humana. Essa é uma das constatações de Roy Wagner em sua comparação dos ideais da ciência com o pensamento dos povos da Nova Guiné (Wagner, 1977). Mesmo quando sustentamos a importância de pensar a responsabilidade do homem perante o mundo natural, como no caso dos movimentos ecologistas e ambientalistas – bastante variáveis entre si –, não conseguimos abrir mão deste princípio estruturador. Ora, nem todos os povos vêem-se atados a uma ontologia como a dos modernos. Outros povos, como os ameríndios, estariam acostumados a conceber o que chamamos de natureza como um domínio fortemente dependente da ação humana, em interação constante com o domínio humano. Desse modo, se quisermos manter o termo ocidental “natureza”, que nem sempre encontra tradução nas línguas indígenas, devemos lembrar que a “natureza” de uns não é a mesma que a “natureza” de outros e isso conduz a uma série de malentendidos. Um deles é, por exemplo, imputar aos povos ameríndios uma vocação ecológica, de inclinação conservacionista. Não há como negar que estes povos tenham desenvolvido uma relação menos destruidora com o “mundo natural”, bem como uma prática de conhecimento com relação a este mundo que tem muito a nos ensinar. O ponto é que o modo pelo qual eles conceitualizam suas relações com o, assim chamado, “mundo natural” é bem diferente da maneira pela qual nós, os modernos, tendemos a conceitualizar nossas relações. Note-se que Philippe Descola tornou-se responsável pela cadeira intitulada “Antropologia da Natureza”, no Collège de France. Com isso, ele pretende mostrar justamente que a natureza (o “mundo natural”) é definida de modo diverso conforme transitemos por diferentes ontologias, sendo o nosso naturalismo – convicto ou em crise – apenas uma delas.

Fugindo de dualismos, Descola percebe quatro modos de identificação entre o homem e o “mundo natural”, aos quais ele denomina ontologias. O naturalismo seria uma dessas ontologias, ao lado do animismo, do totemismo e do analogismo. O ponto é que todas elas coexistem, apesar das diferentes ênfases. Não seria errôneo afirmar que se entre os modernos predomina o naturalismo, entre os povos amazônicos predomina o animismo (Descola, 2005). O argumento de Descola é, grosso modo, o de que o dualismo natureza e cultura, tal como o concebemos, não pode se verificar nas sociocosmologias de boa parte das populações humanas, dentre elas, as ameríndias. Os modernos não fariam mais do que projetar sobre estas populações este dualismo que não lhes diz respeito. O argumento de Descola é debatido por autores como Eduardo Viveiros de Castro e Tânia Stolze Lima, que geraram concomitantemente o conceito de perspectivismo. (Como veremos, estamos com Viveiros de Castro e Lima diante de uma teoria etnográfica, diante da construção de um conceito antropológico a partir do conceitual nativo(7)). Entendo, por meio da leitura que venho realizando da obra destes dois autores, que o perspectivismo não é um monismo e, sim, a reconceitualização de um dualismo. Porém, um “dualismo em perpétuo desequilíbrio” – este seria, aliás, um princípio que subjaz ao pensamento ameríndio, como propõe Lévi-Strauss (1993)(8). Em outras palavras, trata-se de um dualismo provisório, em que os pólos não são jamais fixos, devendo ser refeitos a cada novo momento.

Para Viveiros de Castro e Lima, antes de postular uma identificação entre humanos e o “mundo natural”, é preciso pensar nos modos pelos quais os ameríndios produzem afastamentos diferenciais, distanciamentos entre mundos. Como propõe Marilyn Strathern tendo em vista o caso de Mount Hagen (Terras Altas da Nova Guiné), separar esferas como o “doméstico” e o “selvagem” (tradução provisória que ela encontra para a oposição entre mbo e romi) como figura na língua destes povos – não significa atribuir ao pólo selvagem um caráter inerte, portanto passível de ser controlado pelos homens. O problema do dualismo natureza e cultura, para os modernos, seria, segundo Strathern, o esvaziamento de agência, de intencionalidade da “natureza”, que poderia, assim, ser controlada, manipulada pela “cultura”. Segundo Strathern, em vista de Hagen, teríamos de pensar, na contracorrente das noções que nos são caras, uma relação não-hierárquica – avessa, portanto, à gramática do controle – entre natureza e cultura. Os melanésios não estariam preocupados em postular a existência de um domínio inerte, alheio à ação e à intenção humanas. Eles não tornariam equivalentes selvagem e “natural”, doméstico e “cultural”(9). Que fazer, então, com a ideia de que isso que denominamos “mundo natural” possa ser pleno de intenção, consciência e agência? Eis o problema mais interessante.



Esquemas de identificação: animismo e totemismo

Sigamos as trilhas do conceito de animismo de Philippe Descola para, então, voltarmos ao conceito de perspectivismo, proposto por Eduardo Viveiros de Castro e Tânia Stolze Lima. E passemos, apenas tangencialmente, pela controvérsia produzida entre eles(10).

A gênese do problema, em Descola, reside em sua monografia sobre os Achuar, povo jivaro da Amazônia equatoriana. Monografia esta voltada para o estudo da relação entre simbolismo e práxis entre formas de conceber (classificar, por exemplo) e de experimentar (viver) o “mundo natural”. Não se trata, para Descola, de se ater exclusivamente à dimensão do simbolismo, isto é, do “mundo natural” como fonte inesgotável de símbolos “bons para pensar” as relações sociais, mas, antes, de pensar a relação entre os homens e o “mundo natural” como uma relação social plena, real. Os Achuar dizem que as mulheres são mães das plantas que cultivam em suas roças; identificam-se, assim, com Nankui, criadora e “dona” destas plantas. Em suma, conceitualizam suas relações com estes seres em termos de consanguinidade. Já os homens concebem-se como cunhados dos animais de caça, traçando com eles relações de afinidade. Conclui-se, daí, que os seres que habitam o “mundo natural”, ao interagirem com os humanos, são tidos como parceiros sociais plenos.

Com efeito, entre os Achuar as relações de parentesco se estendem para o mundo não-humano, integrando a vida humana à ecologia. Nisso consiste a ideia de uma “natureza doméstica” (avessa, aliás, à de “natureza domesticada”): o prolongamento do mundo familiar ao “mundo natural”. A continuidade postulada entre humanos e espécies naturais se dá pela noção achuar de wakan, que Descola traduz, provisoriamente, por “alma”. Todos os seres do cosmos achuar possuem wakan, o que os faz gente (aents) e oferece indícios de sua humanidade anterior, atestada no tempo do mito, tempo que tende a retornar, irromper sobre o tempo atual. Wakan, alma, significa, antes de tudo, faculdade de entendimento e comunicação e, também, consciência, intencionalidade e agência. Se os homens se separaram das outras espécies no tempo do mito, se foram se diferenciando por meio de suas formas corporais e específicas, teria restado, ainda, a possibilidade de comunicação propiciada por uma miríade de encantamentos, designados como anents (Descola, 1986; 1993).

Descola partiu do caso achuar para pensar o animismo ameríndio de modo geral e, buscando um quadro comparativo bastante amplo, enfrentou a tarefa de inventariar os diferentes modos de identificação e relação entre o homem e o “mundo natural” ou, em outros termos, modos de identificação e relação entre os existentes. Todo este esforço culminaria na redação de seu livro Par-delà nature et culture, de 2005(11). Voltamos, aqui, à questão inicial desta apresentação: para Descola, o dualismo natureza e cultura que organiza o pensamento dos modernos não funciona em todo lugar; ou, ao menos, não do mesmo modo em cada lugar. Este dualismo partiria de exigências propriamente ocidentais, de uma filosofia moderna da natureza que parte, justamente, da ideia de uma natureza una e transcendente, capaz de englobar as culturas devendo, estas, serem tomadas sempre no plural. Descola propõe, a esse respeito, que pensemos em quatro ontologias diversas para dar conta desta identificação entre os existentes; entre o homem e o “mundo natural”. Haveria o naturalismo que predomina entre os modernos. Haveria o analogismo, que predomina em certas partes da África, na Mesoamérica, na Índia, na China, entre outros lugares. Haveria o totemismo, que predomina na Austrália e, finalmente, o animismo, tão presente na Amazônia, na Sibéria, na Ásia do Sul, em certas partes da Nova Guiné, alhures. Descola insiste em atentar para o fato de que tudo são tipos ideais, o mundo jamais podendo se reduzir a eles, uma vez que as condições para cada esquema de identificação já estariam todas dadas em cada caso. A coexistência entre esses esquemas jamais deixaria de operar sendo possível alegar, inclusive, que uns se mantém dominantes, ao passo que outros permanecem recessivos. Examinemos o problema do animismo, que é aquele que se destaca nas paisagens ameríndias.

Em primeiro lugar, Descola distingue o animismo como ontologia do totemismo como método de pensamento (como lógica classificatória) , tal como definido por Lévi-Strauss. Segundo Descola, Lévi-Strauss, em obras programáticas como O totemismo hoje e O pensamento selvagem, teria menosprezado essas ontologias e sobretudo esse aspecto da identificação e relação do homem com o “mundo natural”, em proveito da lógica classificatória, do dispositivo de estabelecimento de descontinuidades entre séries humanas e não-humanas. Em outras palavras, ele teria privilegiado o eixo horizontal da classificação dos existentes (que aposta nas descontinuidades) em detrimento do eixo vertical da “religião” (cujo alicerce reside na aposta em refazer o contínuo).

Em Par-delà nature et culture, Descola volta aos Ojibwa, povo de língua algonguina da América do Norte, de onde vem o termo ototeman (que significa “aquele de minha parentela”), do qual derivou a palavra (ou conceito) totem. Lembremos que a relação dos Ojibwa com o “mundo natural” foi discutida por Lévi-Strauss no primeiro capítulo de O totemismo hoje, no qual é apresentado o cruzamento de dois diferentes sistemas: o sistema totem e o sistema manido, o primeiro prestando-se a designar clãs patrilineares por meio de nomes de animais, o segundo atribuindo a cada indivíduo um “espírito guardião”, pautando-se por uma espécie de panteão sobrenatural algo hierarquizado. Guiado pela etnografia recente de Howell, Descola alega que para os Ojibwa, mais importante que o sistema totem é o sistema manido, que nada mais seria que um modo de identificação de tipo anímico, pressupondo uma relação de pessoa a pessoa entre um ente humano e um não-humano (relação efetuada, vale ressaltar, no plano do sonho). Para os Ojibwa, enfatiza Descola, os animais possuem alma, são pessoas; no entanto, eles diferem das pessoas humanas devido à sua forma física; à sua fisicalidade. Enfim, para Descola, o animismo como ontologia não é um totemismo, método de pensamento que opera pela lógica classificatória, pautado no paralelismo das séries humanas e não-humanas, no estabelecimento de descontinuidades. O totemismo, tal como definido por Lévi-Strauss é, em suma, um método de pensamento que opõe série natural e série cultural a partir do estabelecimento de “semelhanças entre diferenças”. Lembremos que, neste esquema, a diferença entre um animal X e um animal Y equivale à diferença entre um clã A e um clã B, o que não significa, de modo algum, que haja identificação ou relação real entre animal X e clã A, permanecendo, esta, na ordem da metáfora (Lévi-Strauss, 1987). Já o animismo, enfatizado por Descola, é um modo de identificação entre humanos e não-humanos por meio de uma interioridade compartilhada; sua alma.

***

Tudo se passa, para Lévi-Strauss, como se pensar fosse estabelecer descontinuidades sobre o real, opor séries naturais a séries culturais, enquanto viver fosse estar imerso no contínuo. No último capítulo (5) de O totemismo hoje, “O totemismo de dentro”, Lévi-Strauss retoma uma pergunta lançada logo no início deste livro: “Por que, afinal, essa predileção por animais e plantas?”. No capítulo 4, “Rumo ao intelecto”, ele havia definido o totemismo como método de pensamento que coloca em homologia uma série natural e outra cultural. Ora, se parássemos aí perderíamos a dimensão do problema que aparece com toda força no referido capítulo final, quando o autor faz menção à identificação entre o homem e as espécies naturais evocando a noção de piedade – comiseração –, tal como proposta por Jean-Jacques Rousseau. E, antes mesmo de evocar Rousseau, já havia atentado para a ressonância entre o pensamento de um filósofo como Bergson e o pensamento dos Sioux, outro povo de língua algonquina. Isso porque ambos os pensamentos tomam as coisas e os seres como formas fixadas numa corrente de energia, caracterizada como “movente”. Com Bergson, em simbiose com os Sioux, podemos concluir que o contínuo e o descontínuo são, antes de tudo, dois aspectos inextrincáveis do real, não havendo como escolher entre eles, todo o esforço sendo o de torná-los perspectivas complementares.

Com Rousseau, em seguida, Lévi-Strauss alega que a fonte de todas as operações lógicas – passagem do animal ao humano, da natureza à cultura, do afetivo ao intelectual – está nessa identificação com Outrem; identificação que, talvez surpreendentemente, permita, justamente, a Distinção. Tudo se passa como no caso dos venenos, tão evocados nos volumes Mitológicas(12); venenos cujo cromatismo (reino dos pequenos intervalos, como reza a metáfora musical) produz um efeito diatônico, qual seja: o estabelecimento de novas distâncias, novas separações.

Essa ideia de identificação – que não é exatamente a mesma que encontramos em Descola – reaparece no final de A origem dos modos à mesa, terceiro volume das Mitológicas(13), no qual Lévi-Strauss tece considerações preciosas sobre certa filosofia moral que os ameríndios estendem ao “mundo natural”. Ou, melhor: reconhecem nele. Haveria ali, em outras palavras, uma moralidade que permearia a relação entre todos os existentes do cosmos e que decorreria do fato de que as pessoas sabem que animais, plantas e afins foram gente no tempo do mito e, de certo modo, continuam a sê-lo. Lévi-Strauss extrai daí um “humanismo bem ordenado” que não deixa de ser um pós-humanismo, já que se trata de um humanismo em que o homem – sujeito de todo conhecimento – dissolveu-se. Permitam-me citar um dos trechos finais da terceira Mitológicas, em que estas ideias se fazem evidentes:

“Neste século em que o homem teima em destruir inumeráveis formas de vida, depois de tantas sociedades cuja riqueza e diversidade constituíam desde tempos imemoriais seu maior patrimônio, nunca, com certeza, nunca foi mais necessário dizer, como o fazem os mitos, que um humanismo mais bem ordenado não começa por si mesmo. Coloca o mundo antes da vida, a vida antes do homem, o respeito pelos outros seres antes do amor próprio. E que mesmo uma estada de um ou dois milhões de anos nesta terra – já que todo modo há um dia de acabar – não pode servir de desculpa para uma espécie qualquer, nem a nossa, dela se apropriar como coisa e se comportar sem pudor ou moderação(14).”

Note-se que ao lado deste pós-humanismo reside uma espécie de cataclismologia que revela a ressonância entre o pensamento do autor e dos ameríndios que ele passou anos a estudar. O mundo há de se acabar e isso deverá ocorrer no momento em que esta moralidade que une todos os existentes for destituída de lugar. Como veremos, no final desta apresentação será impossível não remeter a postura lévi-straussiana ao discurso engenhoso de um xamã ameríndio, Davi Kopenawa Yanomami, preocupado com a desumanização da floresta.

Em outro ensaio, Lévi-Strauss insiste, rebatendo as acusações de idealismo frequentemente a ele lançadas por seus críticos, que os elementos do ambiente não são meros signos arbitrários nos mitos. Diferentemente, o autor reafirma o laço entre o homem e o “mundo natural” ao alegar que a natureza das coisas é de ordem êmica, sendo o espírito e o material empírico sobre o qual este trabalha estruturados do mesmo modo. O que permitiria ao homem pensar o mundo seria, assim, o fato de o mundo ser estruturado da mesma maneira que o homem. Nas palavras de Lévi-Strauss “reconhecer que o espírito não pode compreender o mundo senão porque é um produto e uma parte desse mundo não é pecar por mentalismo ou idealismo” (Lévi-Strauss, 1986. P.171). Haveria, nesta passagem, a negação da oposição entre espírito e matéria, bem como a ênfase em uma homologia entre o cérebro e o mundo. Trata-se, em outras palavras, da recusa de separar os estados de subjetividade e as propriedades do cosmos. Nesse sentido, a natureza não seria apenas “boa para pensar” – tal a vulgata extraída do capítulo 4 de O totemismo hoje –, ela seria antes a própria condição do pensamento. Como vemos, Lévi-Strauss se deixa impregnar pela filosofia moral veiculada nos mitos ameríndios para propor algo como uma nova ontologia em que espírito e mundo, homem e “mundo natural” não mais se destacam.

Poderíamos identificar em Lévi-Strauss uma tensão entre, de um lado, uma continuidade ontológica e, de outro, uma descontinuidade epistemológica entre humanos e não-humanos. Haveria, decerto, um duplo movimento no autor. Se em vários momentos o vemos afirmar a oposição natureza e cultura como condição de todo pensamento (no caso, de todo o simbolismo), em outros, o vemos propor justamente o contrário, ou seja, que só é possível pensar porque há uma identificação daquele que pensa com o mundo pensado e esta já seria uma relação social. Alguns autores refletiram longamente sobre essa tensão. O próprio Descola alega que haveria, em Lévi-Strauss, “duas naturezas”: aquela que permanece “boa para pensar” e outra, que se mantém homóloga ao espírito (Descola, 2004). Patrice Maniglier, por seu turno, vislumbra uma transformação algo cronológica na obra do autor que parte, em As estruturas elementares do parentesco, de um humanismo propriamente moderno, fundado na oposição entre natureza e cultura, para então dissolvê-lo, seja nos quatro volumes das Mitológicas, seja nos ensaios mais teóricos de O olhar distanciado (Maniglier, 2008) . Eduardo Viveiros de Castro, de sua parte, identifica um movimento a um só tempo sincrônico e diacrônico na obra de Lévi-Strauss, pois se há mesmo uma passagem das obras “pré-estruturalistas” (As estruturas elementares do parentesco, por exemplo – para as “pós-estruturalistas” – as Mitológicas, sobretudo), isso não exclui o fato de esta tensão ter estado sempre ali contida, mesmo nas primeiras obras(15). Tudo isso nos leva à questão, muito bem colocada por Beatriz Perrone-Moisés, de que não podemos desprezar a retórica de Lévi-Strauss, uma vez que este confessa, no final de História de lince, sua simpatia pela máxima montaigniana de que “toda a certeza tem a forma a priori de um contradição” (Perrone-Moisés, 2008).

***

Voltemos, pois, aos autores americanistas recentes, que apostam mais firmemente no pólo da continuidade; na ideia de que o “mundo natural” não é apenas “bom para pensar”. E nesse ponto seguem os ensinamentos das cosmopráxis ameríndias. Pois o importante é refletir não apenas sobre como os ameríndios concebem a passagem da natureza para a cultura, mas também sobre como eles a vivem. Ora, essa passagem ocorre todos os dias; se dá no cotidiano e envolve ações. Como mostra Joanna Overing, o xamã piaroa tem de transformar diariamente a carne de caça em vegetal para evitar o canibalismo, afinal, os animais eram gente no tempo do mito e o tempo do mito atua no tempo atual (Overing, 1995).

Voltemos a Descola para, em seguida, retornar a Viveiros de Castro e, com ele, novamente a Lévi-Strauss.

Não satisfeito com a definição do totemismo como uma lógica classificatória, Descola volta à Austrália, paisagem do totemismo “clássico”, em que grupos de parentesco veem-se ligados a um epônimo animal ou vegetal. No que diz respeito à etnografia australianista, duas ordens de fenômenos devem ser distinguidas. Haveria o totemismo como lógica classificatória e, num plano diverso, o totemismo “propriamente dito”, qual seja: aquele que, à revelia da sugestão de Lévi-Strauss, opera como modo de identificação entre os homens e o “mundo natural”. Longe de ser uma ilusão, a ontologia totêmica, à diferença da animista, supõe a identificação entre humanos e não-humanos em termos tanto de interioridade como de fisicalidade(16). O totemismo australiano consiste, enquanto ontologia particular, na partilha de propriedades – fisiológicas e psicológicas – entre o totem (espécie natural) e os membros do grupo totêmico, grupo exogâmico no sentido clássico. As propriedades partilhadas por esses membros não são derivadas, necessariamente, da entidade epônima, sendo propriedades abstratas. Os membros do grupo totêmico partilham, então, características morais e materiais que definem para si uma essência identitária.

Em suma, totemismo e animismo não podem ser descritos como princípios universais, mas, sim, como ontologias particulares que expressam diferentes esquemas de identificação e relação entre os existentes. No totemismo, membros do grupo totêmico compartilham uma mesma humanidade e se conformam como coletividade que se relaciona com outras coletividades complementares, a exogamia permanecendo como uma regra entre elas. O princípio diferenciador entre os seres é, aqui, o próprio grupo totêmico. Já no animismo a condição humana seria estendida a todos os seres no cosmos que, por seu turno, se diferenciam por suas fisicalidades. O modelo de coletivos, aqui, não pode ser o de grupos exogâmicos, mas, sim, o de coletividades múltiplas e endogâmicas(17).

Com respeito ao princípio diferenciador do animismo, a fisicalidade, Descola remete à noção de perspectivismo, tal como apresentada por Viveiros de Castro e Tânia Stolze Lima. A vulgata do perspectivismo (deslindada por estes autores entre os ameríndios, e não como uma possibilidade ontológica geral) seria a seguinte: seres não-humanos que se veem sob forma humana deveriam ver os humanos sob forma não-humana, uma vez que a humanidade é uma posição e não uma substância, uma propriedade intrínseca a certa porção de seres. Um porco-do-mato, por exemplo, se vê como humano enquanto vê o humano como jaguar ou como espírito predador. Ora, todos esses existentes são, potencialmente, humanos (partilham a mesma condição de humanidade [humanity]) apesar de não serem todos da espécie humana (humankind) (18). São todos sujeitos dotados de comportamento, intencionalidade e consciência, estando inseridos em redes de parentesco e afinidade, fazendo festas, bebendo cauim, reportando-se a chefes, fazendo guerra, pintando e decorando seus corpos. O que está em jogo, aqui, portanto, é a diferença entre perspectivas, o que nos envia a uma “filosofia ameríndia da diferença”.

Relações diferenciantes: perspectivismo

A crítica à oposição natureza e cultura está presente tanto no animismo de Descola quanto no perspectivismo de Viveiros de Castro e Tânia Stolze Lima. Mas de maneiras bem diferentes. Se o primeiro se guia por uma ideia de (esquemas de) identificação, os últimos inspiram-se – parcialmente, ao menos – na filosofia deleuziana da diferença; da diferenciação(19).

Como já salientado, tanto Viveiros de Castro como Lima partiram de suas etnografias sobre povos tupi para chegar à conceitualização do perspectivismo ameríndio. Viveiros de Castro já reconhecia, entre os Araweté do sudeste do Pará, a intensa “troca de perspectivas”, menos entre animais e humanos do que entre matadores e inimigos, homens e deuses, já que o destino de todo ser humano araweté é um devir-deus, seja no posmorte (no caso da maioria dos vivos), seja pelo ato homicida (no caso dos matadores, guerreiros)(20). Lima, de sua parte, percebeu, entre os Yudjá do médio Xingu, que uma troca análoga de perspectivas se deslocava do plano da relação entre vivos e mortos – potencializada nas cauinagens – para o plano da relação entre caçadores e animais de caça (Lima, 2002 e 2005).

Inspirado pelas reflexões de Tânia Stolze Lima, que explora as diferenças entre os conceitos de animismo e perspectivismo(21), gostaria de atentar para um ponto: se a teoria do animismo refuta a interpretação lévi-straussiana do totemismo, a teoria do perspectivismo (antes de tudo uma teoria da teoria nativa, uma teoria etnográfica, vale ressaltar) se debruça sobre o problema da passagem da natureza à cultura; ou, melhor: do contínuo ao descontínuo e vice-versa, tal como ela aparece nas Mitológicas(22).

***

A tetralogia de Lévi-Strauss persegue, através dos mitos ameríndios, a um só tempo, a operação das leis do Espírito (o tal “inconsciente estruturante” que, no entanto, vai perdendo terreno) e as formulações propriamente ameríndias quanto à passagem da natureza à cultura. Vemos, aqui, o interesse de Lévi-Strauss pelas filosofias ameríndias, sejam elas “filosofia moral”, “lógica das proposições”, “ideologia bipartida”, “filosofia quente” ou “metafísica da predação”(23). No final de L’homme nu, no entanto, Lévi-Strauss alega que a mitologia diz muito sobre a sociedade de onde provém e sobre o funcionamento do espírito humano e diz pouco sobre a ordem do mundo, a natureza do real e a origem do homem e seu destino. Nesse sentido, afirmar que os porcos são ou foram humanos diria pouco sobre os porcos e, menos ainda, sobre os humanos.

Segundo Viveiros de Castro, que lê Lévi-Strauss para além de Lévi-Strauss, essa constatação seria problemática e mesmo contraditória com relação ao conteúdo da tetralogia, visto que a explicitação do modo de operação do espírito humano já traria, em si, implícita, uma reflexão sobre a ordem do mundo. Em suas palavras, “o que eles [os ameríndios] dizem – e, se preferir o leitor, ensinam – é que não há por que escolher, pois não há como separar entre a natureza do real e o espírito humano, a ordem do mundo e o movimento da sociedade” (Viveiros de Castro, 2001 p.6). Nesse sentido, a ideia de “porco” iluminaria a de humano e a humanidade dos porcos diria muito sobre o conceito de humano para os índios.

Os mitos contidos nas Mitológicas falam da passagem da natureza para a cultura, ou melhor, do contínuo para o descontínuo. Os mitos falam de um tempo em que “os animais eram gente” e deixaram de sê-lo. Falam tanto de uma glória – a aquisição da cultura pelos homens – quanto de uma tragédia – a perda de comunicação entre os homens e os outros seres (animais, plantas e espíritos). As Mitológicas referem-se, em suma, a uma passagem da natureza para a cultura, mas que nunca se completa, podendo ser revertida. Referem-se ao perigo da volta ao estado de continuidade, à perda da condição humana pelos humanos. Como já discutido, Lévi-Strauss apresenta uma série de figuras do sensível – o arco-íris, os eclipses, as algazarras, os venenos – que tem por característica a conjunção de esferas separadas, como o céu e a terra, a noite e o dia etc.; todas elas caracterizadas pela metáfora musical do cromatismo (os pequenos intervalos, os semitons, os lusco-fuscos), que nos transporta a um território invadido pela confusão entre categorias “culturais” e “naturais”.

Haveria um paradoxo nas Mitológicas. De um lado, o contínuo é apresentado como caos, como regressão à natureza, à desordem. Os indígenas atribuem às figuras cromáticas um valor maléfico, alega Lévi-Strauss. De outro lado, algo de muito importante se perde com a passagem da natureza para a cultura; tamanha é a tragédia da incomunicabilidade. É neste cenário que aparece o xamanismo – sempre aliado ao uso do tabaco – como mediação necessária. Se, de modo geral, os mitos de O cru e o cozido (primeiro volume) (24) estão mais centrados no tema da passagem da natureza para a cultura, os de Do mel às cinzas (segundo volume) (25) discorrem sobre a regressão da cultura para a natureza. Neste último livro, Lévi-Strauss sublinha a importância do xamanismo como esforço de manter em comunicação esferas separadas no tempo do mito, algo, aliás indispensável para a manutenção – ou produção – da vida social, visto que, nestas paisagens ameríndias, a cultura se estende à sobrenatureza.

Não seria errôneo afirmar que o paradoxo das Mitológicas reflete o próprio paradoxo do pensamento ameríndio, qual seja: partir da ideia de que é preciso separar natureza e cultura e, ao mesmo tempo, restabelecer a comunicação entre elas, isto é, sua continuidade. Talvez seja este, também, o paradoxo do perspectivismo – esta teoria antropológica impregnada da teoria ameríndia e vice-versa, simetricamente –, conforme atinado por Viveiros de Castro e Tânia Stolze Lima. Este paradoxo seria o seguinte: os animais (ou outras espécies naturais, mas não quaisquer espécies) são humanos e, ao mesmo tempo, não são humanos. Os animais são humanos que se disfarçam sob um corpo animal e, ao mesmo tempo, não são humanos porque deixaram de sê-lo no tempo do mito. Em outras palavras, humanos e não-humanos partilham a condição humana – tal a lição animista – e, ao mesmo tempo, se diferenciam pelos seus corpos – tal a lição perspectivista. Isso leva Tânia Stolze Lima a constatar que a afirmação “os Yudjá pensam que os animais são humanos” é falsa. Em vez disso, seria mais adequado afirmar: “para si mesmos, os animais são humanos”. Afinal, o perspectivismo preza o fato de que não há realidade independente de um sujeito. Nas palavras da autora: “Eu poderia, assim, dizer que os Juruna pensam que os animais pensam que são humanos. [...] O ponto é que os animais estão longe de serem humanos, mas o fato de se pensarem assim torna a vida muito perigosa” (26).

***

A ideia de perspectivismo conduz a pensar não apenas as semelhanças entre animal (porco-do-mato, por exemplo) e humano, mas sua diferença, o processo de diferenciação a que se submetem. Ou, como alega Viveiros de Castro: “Não é para identificar [os animais] aos humanos, mas para diferenciá-los de si mesmos, e a nós de nós mesmos” (Viveiros de Castro, 2002 p. 136). O perspectivismo implica pensar a passagem relativamente reversível – ou, para usar uma imagem de Viveiros de Castro, “em espiral” – do contínuo ao descontínuo, passagem não de um estado de indiferenciação para um estado de diferenciação; mas passagem de diferenças intensivas (internas) para diferenças extensivas (externas). Os seres míticos misturam atributos humanos e não-humanos e, no mito, as diferenças entre pontos de vista são ora anuladas, ora exacerbadas. O tempo mítico é, pois, um tempo em que as perspectivas não estavam fixadas: animais eram gente; ou, melhor: eram animais-gente. Havia a gente-onça, a gente-anta e toda essa gente deixou de sê-lo, tornando extensiva a diferença entre gente e bicho. Na passagem para o tempo atual houve, assim, uma diferenciação radical, uma perda de comunicação, algo como uma fixação de perspectivas. O tempo mítico é marcado por “diferenças infinitas”, internas a cada personagem, simultaneamente gente e onça, gente e queixada, gente e sucuri. Viveiros de Castro conclui: “O mito propõe um regime ontológico comandado por uma diferença intensiva fluente e absoluta que incide sobre cada ponto de um conjunto heterogêneo, em que a transformação é anterior à forma, a relação é superior aos termos e o intervalo é interior ao ser” (Viveiros de Castro, 2007 p.324). O tempo atual, por seu turno, é o tempo das “diferenças finitas”, externas. Em vez da transparência dos tempos míticos, a opacidade. Vemos um corpo animal como tal, mas na verdade ele esconde uma forma humana. Vemos um corpo humano como tal, mas na verdade ele esconde uma afecção jaguar. É então que Viveiros de Castro lança mão do neologismo DiferOnça – ao referir-se jocosamente a Derrida – para pensar essas diferenças intensivas, internas. A DiferOnça, mais do que uma Diferença, é um vetor de diferenciação intensiva, uma qualidade interna ao sujeito. O contínuo no perspectivismo não é, portanto, ausência de diferença, mas a diferença em estado contínuo, em estado intensivo (27a).

O desafio perspectivista deslindado por Viveiros de Castro consiste no fato de que nenhuma posição é segura no cosmos. Sendo a humanidade uma questão de ponto de vista, uma posição intercambiável, paira no ar sempre o perigo de “virar bicho”, “virar espírito”, “passar para o outro lado”, algo como morrer. Tendo em vista este problema, Dominique Gallois distingue entre os Wajãpi do Amapari (Amapá) a noção de “transformação” (reversível) e a de “metamorfose” (irreversível): a primeira seria desejada, ao passo que a segunda seria temida. Decorre daí que nenhuma posição no cosmos ameríndio é segura, já que este estaria marcado pela incessante luta de perspectivas. “Se tudo é humano, então tudo é perigoso”, comenta Viveiros de Castro em tom certamente roseano (2008 p 88).

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Há duas cenas de O homem urso, documentário de Werner Herzog, que conduzem à ideia de perigo aqui referida. Herzog narra a história de Timothy Treadwell, um expert em ursos que, justamente, por buscar viver entre estes animais ferozes, acabou sendo devorado por um deles. A primeira cena que me vem à mente traz o depoimento de Sven Haakanson, diretor do Museu Alutiq de Kodiak e nativo da região (provavelmente membro de um grupo de língua alutiq). Interrogado por Herzog, ele afirma que Treadwell teria cruzado uma barreira com a qual ele e seu povo teriam vivido durante cerca de sete mil anos. Isso porque, para os povos da região, o território dos ursos foi sempre respeitado, ursos e homens devendo evitar-se mutuamente. O depoimento de Sven sobrepõe-se, no filme, a imagens de Treadwell, num rio, aproximando-se sorrateiramente de um urso, que lhe parece indiferente. A outra cena que me vem à mente é aquela na qual o próprio Herzog interroga seu personagem, em voz over, quando este, diante de uma raposa morta (provavelmente atacada por um animal de maior porte), lamenta o ato de tamanha brutalidade, vendo nele uma exceção diante do quadro harmônico oferecido pela natureza. Nesse ponto, Herzog faz questão de distanciar-se de Treadwell: “Creio que o denominador comum da natureza não é a harmonia, mas o caos, a hostilidade e a matança”. Isso torna o diretor menos distante dos ameríndios perspectivistas do que seu personagem, figura excêntrica que teria alimentado o sonho de deixar a civilização humana para viver entre os ursos(27b).

Num mundo talhado pela predação – pela luta de perspectivas, termo talvez mais amplo e mais apropriado – se tudo é humano, eu posso não ser humano, posso ser animal. Assim, se tudo é humano, tudo é, também, animal. Permitam-me, sobre este ponto, traçar mais um paralelo com a filmografia moderna. Uma situação análoga aparece nas cenas finais de Blade Runner, de Ridley Scott. Não me refiro à versão standard, de 1982, mas à versão do diretor, exibida ao público em 1992. Rick Deckard, o caçador de andróides – guardião da humanidade que luta contra os replicantes rebeldes –, é levado a crer que pode ser, ele também, um andróide, alvo de sua própria perseguição. Um origami na forma de um unicórnio o transporta para um sonho recorrente: aquele de um unicórnio correndo pela floresta: imagem que não tem referente no real, logo produzida artificialmente em sua memória, o que revela que ele pode ser, como a mulher que ama, mais um replicante(28). A ideia de que o Outro – o não-humano, o andróide, o inimigo – sou Eu, a ideia de que este Outro me é imanente reenvia ao perspectivismo ameríndio como apresentado por Viveiros de Castro. O ponto é que entre os ameríndios estas posições são intercambiáveis, não sem um perigo extremo, ao passo que na ficção científica em questão a confusão de limites entre humano e não-humano é tida como um escândalo: ao replicante que rouba a condição humana só resta a repressão do Estado.

Se pensarmos que, no mundo moderno, os não-humanos em questão – ou melhor, os humanos não-humanos – são andróides, computadores, robôs, máquinas e não porcos-do-mato, jaguares, anacondas, o paralelo se esclarece. Ele se esclarece, também, se considerarmos a análise criativa de Pedro Ferreira sobre a correlação entre o mundo dos xamãs indígenas e o universo da tecnologia, mais especificamente, da música eletrônica, techno, executada pelos DJs das grandes cidades, que experimentam nas pistas de dança algo como um “transe maquínico”; veem-se como parte de uma maquinaria. Operam um devir-máquina em tudo análogo ao devir-animal. O que fariam esses DJs, e isso de um modo consciente, seria efetuar uma leitura xamânica de nossas maquinas, da nossa tecnologia (Ferreira, 2007).

O Outro sou Eu; o Outro me é imanente. Voltemos às paisagens ameríndias, mais especificamente aos Yudjá do médio Xingu, entre os quais Lima comenta o infortúnio de seus caçadores, não de andróides, mas de bichos. Um caçador não quer tornar-se porco; pelo contrário, quer manter-se como tal. Ele não pode deixar que os porcos imponham sobre ele a sua perspectiva, isso lhe seria mortal. Ao animal, alega a autora, não pode ser dada nenhuma chance de tomar a palavra, pois isso colocaria em risco a posição do caçador. As perspectivas estão em luta, todos os seres do cosmos permanecem ávidos para impor a sua perspectiva, para ocupar o ponto de vista da humanidade, único propriamente passível de ser ocupado por um sujeito. Estamos diante, aí, de uma cosmopolítica no mais do termo: a política dada na luta por posições no cosmos. Diante do perigo das caçadas, a lição de moral de um xamã yudjá seria a seguinte: “Cuidado! Os porcos se parecem conosco; portanto não os tratem como pessoas; senão vocês viram porcos!” (Lima, 2002 p. 38)

Coda

Parece, a essa altura, ser ponto pacífico a não possibilidade de projetarmos o dualismo moderno natureza e cultura para a realidade dos povos ameríndios (mesmo entre nós, é preciso lembrar, ele já aparece bastante borrado...). Note-se que o problema não está no dualismo propriamente dito (pois este pode se revelar em “perpétuo desequilíbrio”, como já salientado), mas na exigência moderna de operar por polarizações e limites rígidos entre o que se convencionou chamar natureza e cultura, humano e não-humano, corpo e alma. Os povos ameríndios invertem o modo de pensar predominante entre os modernos. Em vez de mononaturalismo, de uma só natureza (universal) para várias culturas (particulares), Viveiros de Castro propõe que pensemos, diante dos ameríndios, um multinaturalismo, múltiplas naturezas para uma só cultura ou Espírito. Pois, se o Espírito é o lugar da comunicação metafísica entre todos os existentes, os corpos fazem-se lugar da diferenciação, da singularização, da especiação. Em vez de pensar categorias puras, polares, os ameríndios pensariam em termos de diferenças intensivas, internas. O não-humano seria, assim, imanente ao humano, e essa porção imanente poderia ser acessada, entre outras coisas, pelo xamanismo e suas técnicas de êxtase.

Quando projetamos nossas expectativas com relação à natureza sobre a realidade dos índios tendemos, portanto, a cair em malentendidos. Por mais que a ecologia e o ambientalismo façam um apelo ético para a participação e a responsabilidade do homem diante do “mundo natural”, a natureza em jogo continua sendo uma “natureza-objeto”, que se revela, em última instância, como recurso natural que deve ser tratado de maneira sustentável, mas, ainda assim, visando o desenvolvimento produtivo. Mas se tudo são malentendidos, há, como diria Sahlins, malentendidos produtivos. Bruce Albert debruçou-se sobre um deles em um artigo genial, já bem conhecido pelos etnólogos, em que analisa o discurso de Davi Kopenawa Yanomami, xamã e líder político que se apropria dos enunciados ambientalistas para construir a reivindicação em defesa da terra indígena. Davi o faz mantendo-se fiel aos princípios de sua cosmologia. Ele fala em defesa da floresta tendo em vista a corrida do ouro e a invasão das terras yanomami pelos garimpeiros, cuja atividade é associada à produção de uma fumaça patogênica que ataca a floresta - sempre concebida como entidade viva, composta por uma comunidade de espíritos, os xapiripë, imagens vitais dos animais, auxiliares dos xamãs, sem os quais nada é possível (Albert, 2000).


Como afirma Albert, Davi xamaniza o discurso ambientalista ao mesmo tempo em que lhe dirige uma crítica mordaz. Davi diz, por exemplo, que “a ecologia [esse discurso dos brancos sobre a floresta] é, antes de tudo, palavras de Omama, o demiurgo Yanomami”. Ele acrescenta, ainda, que os xapiripë são os responsáveis pela entropia cósmica; sem eles tudo resvalaria no caos. Davi elabora um discurso pleno de neologismos, apoiando-se sempre na lógica mítica, que deslinda, por meio da evocação da imagem da queda do céu, toda uma cataclismologia, toda uma profética. Para Davi, o céu desabará se os brancos continuarem alheios aos ensinamentos dos xamãs, o mesmo podendo ser dito aos Yanomami de hoje, muitas vezes desinteressados pelo xamanismo e seu aprendizado. Mas é apenas por meio do xamanismo que é possível ver – e, portanto, travar comunicação com – os xapiripë. É o xamanismo – sempre apoiado na inalação do yãkoana (pariká), esta substância que dá acesso ao invisível, a realidade suprassensível – que permite a interação dos homens com a terra-floresta, uma vez que transporta os primeiros a um plano em que a última se revela uma miríade de subjetividades plenas de intenções.

Davi brinca com as palavras dos brancos e submete o discurso ecológico a uma crítica cosmológica ou mesmo xamânica. Ele diz, por exemplo, que a palavra “meio-ambiente”, que insistimos em empregar, significa simplesmente “floresta-natureza residual”, ou seja: um “ambiente partido ao meio”. Albert salienta que Davi não consente, em seu discurso exegético, nem uma ecologia científica, que sonha com uma natureza não-antropizada, nem uma ecologia política, que luta pela conservação ou preservação da biodiversidade. A ecologia de Davi é, antes de tudo, uma ecologia xamânica, baseada na relação social entre humanos e espíritos xapiripë, imagens de animais, ou melhor, segundo a glosa de Viveiros de Castro, uma região ou momento de indiscernibilidade entre o humano e o não-humano. Viveiros de Castro encontra na fala de Davi “uma humanidade molecular de fundo, oculta por formas molares não-humanas, e fala dos múltiplos afetos não-humanos que devem ser captados pelos humanos por meio dos xamãs, pois é nisto que consiste o trabalho do sentido; literalmente [citando o próprio Davi], ‘são as palavras dos xapiripë que aumentam nossos pensamentos’” (Viveiros de Castro, 2007 p. 321).

Para fechar esta apresentação, que já se alongou demais, prossigo com as palavras de Davi Yanomami: “Antes a gente não pensava: ‘vamos proteger a floresta!’ Pensávamos que nossos espíritos xamânicos nos protegiam. Só isso. Esses espíritos foram os primeiros a possuir ‘ecologia’. Eles afugentam os espíritos maléficos, impedem a chuva de cair sem parar, calam o trovão... e, quando o céu ameaça desabar, são eles que falam à ‘ecologia’. Eles protegem o céu quando este quer se transformar, quando o mundo quer escurecer. Eles são a ‘ecologia’ e por isso impedem as coisas. Nós tínhamos essas palavras desde sempre, mas vocês, os brancos, inventaram a ‘ecologia’ e então essas palavras foram reveladas e propagadas por todo lado” (Albert, 2000 p. 261). Vemos que esta defesa da “ecologia” parte, aqui, de uma configuração yanomami; e que apenas existe com referência aos espíritos xapiripë. (Reencontramos nela o pós-humanismo profético das Mitológicas de Lévi-Strauss, ao qual me referi há pouco.)

Podemos concluir, enfim, que todas estas ontologias xamânicas (calcadas no que autores como Descola e Viveiros de Castro denominaram, respectivamente, “animismo” e “perspectivismo”, ainda que sob sentidos variáveis) estão longe de constituir universos fechados. São, antes de tudo, instrumentos cognitivos para enfrentar a história; no caso, história do confronto entre mundos diversos, entre ontologias diversas, entre naturezas-culturas diversas – se assim podemos chamá-las de modo a afastar o dualismo enrijecedor que paira sobre nossas práticas de conhecimento.


Notas

1- Este texto – que prefiro manter em sua cadência oral – é uma versão transformada da aula que proferi em fevereiro de 2008 durante o concurso para professor da área de etnologia indígena do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. O tema sorteado foi “natureza e cultura”, o famoso dualismo que os antropólogos contemporâneos – e os americanistas, particularmente – cuidam problematizar ou mesmo dissolver. Note-se que minha intenção foi produzir uma reflexão aberta, no sentido de conectar certas visões sobre o problema sem me preocupar em produzir uma síntese. Contei com a oportunidade de apresentar este texto em duas outras ocasiões: o seminário do Núcleo de Antropologia Urbana – NAU, ocorrido em maio de 2008, na USP, em São Paulo, e o seminário “Sextas na Quinta”, ocorrido em novembro do mesmo ano, no Museu Nacional, no Rio de Janeiro. Agradeço, respectivamente, aos gentis convites de José Guilherme Cantor Magnani, de Marcio Goldman e de Gabriel Banaggia, que me estimularam a desdobrar as questões formuladas de início. Agradeço, também, aos alunos e professores que estavam presentes nestas ocasiões e que me ajudaram a pensar.

2- Pesquisador do Núcleo de História Indígena e do Indigenismo (NHII/USP) e do Laboratório de Imagem e Som em Antropologia (LISA/USP).

3- Veja-se, sobre este propósito, a reflexão de Carlos Fausto, 2002.

4- N.R.: os ameríndios.

5- Sobre como os primatólogos concebem a “cultura” dos símios, ver Silva & Sá, 2005.

6- Veja, especialmente, Strathern, 1992.

7- Sobre esta questão epistemológica, veja Lima, 2002.

8- Para uma discussão deste “dualismo em perpétuo desequilíbrio”, ver Viveiros de Castro, 2008.

9- “No nature, no culture: the Hagen case” (Mac Cormack & Strathern, 1980).

10- Para uma discussão da “controvérsia” entre Descola e Viveiros de Castro, veja Latour (2009). [Ver Nota 1 do Blog]

11- Veja, também: Descola, 1992, 1998 e 2004.

12- Veja, em especial, O cru e o cozido: Mitológicas I; op. cit.

13- Op. cit

14- As origens dos modos à mesa. Op. cit.; p. 460.

15- Viveiros de Castro, Eduardo.”Xamanismo transversal”, op. cit.

16- Veja Descola, 2008.

17- Descola, Philippe. Par-delà nature et culture; op. cit.

18- Para uma distinção entre humanity e humankind na cosmologia dos modernos, veja Ingold, 1995.

19- Veja, a esse respeito, Viveiros de Castro, 2007.

20- Viveiros de Castro, Eduardo. Araweté, os deuses canibais. Rio de Janeiro: Zahar/Anpocs, 1986.

21- Veja, sobretudo: Lima, 2006.

22- Veja, a esse respeito, Viveiros de Castro, Eduardo. “Xamanismo transversal”; op. cit.

23- Faço referência a expressões que aparecem em obras como A origem dos modos à mesa: Mitológicas III, op. cit,

24- História de lince (op. cit.) e o Posfácio à revista L’homme (154-155): “Question de parenté”. Paris: LAS, 2000.

25- Op. cit.

26- Op. cit.

27a- Ao revisar o texto para colocá-lo aqui, percebi que havia uma Nota a mais no artigo publicado pela Revista Ponto Urbe, sem estar, entretanto, marcada no próprio texto. Conferi o texto original e percebi que, ao invés da Nota 27b, havia uma outra que assim dizia:

Ver, sobre este ponto, o wiki Amazone (http://amazone.wikia.com/wiki/Página_principal), no qual um texto de Viveiros de Castro sobre o perspectivismo ameríndio, intitulado “A onça e a diferença”, é submetido a um processo de autoria múltipla.

A Nota 27, inclusive, parece ter sido colocada erronamente, já que ela remete ao filme assinalado na Nota 28(O homem urso), sendo que a Nota 29 é aquela se refere ao filme Blade Runner.

Esta nota não figura no artigo publicado pela revista. (N. do Blog)

27b- Lima, Tânia S. O dois e seu múltiplo; op. cit. p. 26.

28- O homem urso (Grizzly Man. Direção de Werner Herzog. EUA, 2005).

29- Blade Runner (Direção de Ridley Scott, roteiro de Hampton Fancher e David Peoples, baseado na novela "Do Androids dream of electronic sheep?", de Philip K. Dick. EUA, 1982 [versão do diretor: 1992]).


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Nota do Blog:

1- Para quem se interessar, fiz uma tradução livre para este artigo. Ela se encontra em: http://epifenomenos.blogspot.com/2009/05/os-indios-na-franca-segundo-latour.html



Fonte:

http://www.pontourbe.net/04/sztutman-pu4.html

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

De um beat a outro: poema de Rothenberg


PROLEGÔMENOS PARA UMA POÉTICA
(1998)

para Michael McClure

.........

O homem poeta caminha entre sonhos
Ele está vivo, ele respira livremente
por um tubo macio como um narguilé.
Cinzas caem ao redor enquanto ele anda
cantando sobre elas.
Oh quão verde
é o sol no ponto em que demarca
o oceano.
Penas vagueiam no alto das colinas
abaixo das quais o homem poeta
continua andando, andando
um passo à frente daquilo que ele teme,
daquilo que ele ama.


...........


(Escrito por Jerome Rothenberg, traduzido por Luci Collin)


Fonte: http://curitibaliteraria.multiply.com/video/item/37/37

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

A curiosidade matou o gato







Feito por Larissa.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Uma Parábola



Certa vez, disse o Buda uma parábola:

Um homem viajando em um campo encontrou um tigre. Ele correu, o tigre em seu encalço. Aproximando-se de um precipício, tomou as raízes expostas de uma vinha selvagem em suas mãos e pendurou-se precipitadamente abaixo, na beira do abismo.

O tigre o farejava acima. Tremendo, o homem olhou para baixo e viu, no fundo do precipício, outro tigre a esperá-lo. Apenas a vinha o sustinha.Mas ao olhar para a planta, viu dois ratos, um negro e outro branco, roendo aos poucos sua raiz. Neste momento seus olhos perceberam um belo morango vicejando perto.

Segurando a vinha com uma mão, ele pegou o morango com a outra e o comeu.

"Que delícia!", ele disse.




Fonte: Shunya

domingo, 2 de agosto de 2009

Oswald livro livre



POESIA DE PONTA-CABEÇA (*)


Augusto de Campos


Ao visitar Oswald em companhia de Décio Pignatari, Haroldo de Campos e Nilo Odália, em 1949, não esperava receber o presente magnífico. A certa altura, animado pela conversa com os jovens postulantes a escritor, Oswald reti­rou-se por um momento e voltou com quatro exemplares das Poesias Reunidas O. Andrade (Edições Gaveta, em largo for­mato, com ilustrações de Tarsila, Segall e do autor) e os ofer­tou, com seu autógrafo, a cada um de nós (a mim me coube o n. 136 dessa edição de apenas duzentos exemplares).

Os livros - o que restava da edição de 1945 - esta­vam empilhados, se bem me lembro, no alto de um armá­rio em dependência interna do apartamento. Oswald os distribuía, assim, generosamente, aos poucos amigos e sim­patizantes. Tal era a solidão do poeta, já quase sexagenário, que, "de facho em riste, bancando o Trotsky, em solilóquio com a revolução permanente" - como o descrevera Patrícia Galvão um ano antes (1)-, continuava a vociferar contra tudo e contra todos em defesa do modernismo e da Antropofagia, à espera do resgate das futuras gerações.

O volume Poesias Reunidas O. Andrade compendiava os dois únicos livros de poemas anteriormente publicados por Oswald - Pau Brasil (1925) e Primeiro caderno do aluno de poesia Oswald de Andrade (1927) -, acrescentan­do-lhes o inédito "Cântico dos cânticos para flauta e violão" e alguns "Poemas menores". De Pau Brasil não consta a tiragem; o Primeiro caderno tinha apenas trezentas cópias. Vinte anos depois, a essa pequena safra estava reduzida toda a fortuna editorial da poesia de Oswald, cuja obra só começaria a ser redimida com a publicação, em 1966, das novas Poesias Reunidas (2), que receberiam o acréscimo do poema "O escaravelho de ouro" (1946). Não fora melhor a sorte dos romances-invenção Memórias sentimentais de João Miramar (1924) e Serafim Ponte Grande (1933), ou a das peças teatrais O homem e o cavalo (1934), A morta, O Rei da Vela (1937), como eles não reeditadas e até então não representadas.

No entanto, este Primeiro caderno do aluno de poesia Oswald de Andrade, impresso na tipografia da rua de Santo Antônio n. 19, no amplo formato de 26,5 x 21,5 cm, com capa de Tarsila e desenhos de Oswald, tipos em duas cores (todos os títulos em vermelho), é possivelmente o mais belo livro de poesia de nosso modernismo.


O mais belo enquanto conjunto coerente de poemas, risco e ousadia de linguagem associados à concepção plás­tica e material do livro. A edição construída por Oswald e Tarsila tem a ver não só com a poesia propriamente dita, mas com um conceito de reformulação da linguagem visual do livro, que a põe em contato com os grandes cometimen­tos das vanguardas européias, na continuidade do caminho aberto por Mallarmé, em Un coup de dés (1897), "nada ou quase uma arte", prefácio de um hipotético "livro" - um livro livre, que começaria a ser escrito coletivamente no século XX.

Para ficar só em alguns exemplos, bastaria lembrar, como fenômeno grupal, as edições dos livros cubo-futuris­tas, transmentais ou construtivistas russos, que juntaram poetas como Khliébnikov, Maiakóvski, Krutchônikh, Ka­mênski, Iliazd a artistas plásticos do porte de Maliévitch, Ródtchenko, Rozánova, Gontcharóva, Lariônov, EI Lissítski e incorporaram até o entusiasmo de críticos como Roman Jakobson, que, com o pseudônimo de Aliágrov, participou como poeta, ao lado de Krutchônikh, em 1915, de um insó­lito livro zaúm [transmental]; sobre a capa-colagem, um coração vermelho de papelão tendo, pregado, um botão de camisa; no interior, entre os poemas, em gravuras colori­das, as cartas de baralho de Olga Rozánova. Em Pro Eto [Disto], 1923, os poemas de Maiakóvski aparecem articula­dos com as fotomontagens de Ródtchenko; em Dliá Gólossa [Para voz], do mesmo ano e também de Maiakóvski, inte­gram-se definitivamente ao projeto visual, elaborado por Lissítski apenas com recursos tipográficos, em duas cores (vermelho e preto), como um guia funcional de leitura.

Assim, os textos poéticos foram se extraindo das cons­trições gráficas convencionais, ao mesmo tempo que a idéia de "ilustração" evoluía no sentido de maior interpe­netração com o poema e de adequação mais profunda ao livro como um todo. Um outro exemplo, certamente caro aos nossos modernistas - Paulo Prado recebeu uma das raras cópias, a n. 119, dedicada pelo autor a ele e a "tous les amis de San Paolo", em 1924 -, foi La Prose du Transsibérien et de la Petite Jehanne de France, de Blaise Cendrars, volume impresso em várias tintas e ilustrado com "cores simultâneas" por Sonia Delaunay, em 1913: um livro-sanfona, que, desdobrado, atingia cerca de dois metros de comprimento (acoplados, os 150 exemplares da tiragem anunciada alcançariam a altura da Torre Eiffel, tour du monde...).

Nossas revistas modernistas - especialmente Klaxon, do ponto de vista plástico - tentariam responder às provo­cações das congêneres Lacerba, Dada, Blast e tantas outras. Nos projetos de livro, porém, o atrevimento visual tendia a restringir-se à capa, não se aventurando à programação interna.

Foi Oswald, com a cooperação de Tarsila, quem deu a mais significativa resposta, um pouco em Pau Brasil, com a capa irreverente extraída do "pendão da esperança", e muito neste Primeiro caderno, que inspiraria pelo menos uma outra peça de exceção: o amadorístico mas instigante Álbum de Pagu, desenhescrito pela jovem discípula de dezoito anos, em 1929 - livro único que, entregue a Tarsila, só veio a ser redescoberto e difundido na década de 1970, quase meio século depois. Resposta a uma tra­dição nova - a da valorização visual do livro, inconfundí­vel com a edição de luxo e só ocasionalmente assimilável à do livro de artista - que começaria a se perder nos anos 1930: um dos últimos exemplos expressivos seria a primei­ra edição, em 1931, de Cobra Norato, de Raul Bopp, com capa de Flávio de Carvalho; este ainda manteria o brio modernista no n. 1 da RASM (Revista Anual do Salão de Maio), publicada em 1939, com sua capa brutalista, de alu­mínio, que tinha algo das experiências futuristas do Libro­macchina bullonato (Depero/Azari, 1927) e do Libro di latta (Marinetti/Albissola, 1932). Como projeto definido e coletivo, tal tradição só viria a ser retomada pela poesia visual dos anos 1950.

O ideal seria resgatar mais este aspecto inovador da rica personalidade do poeta, reproduzindo em fac-símile, com sua diagramação, dimensões, cores e tipos, design e desenhos, o livro original - o "livro livre" de Oswald. Que, aliás, não se limitou a infiltrar na obra seus grafismos, suas "desilustrações"; teve participação decisiva na própria orga­nização gráfica do livro, como o comprova o documento pertencente ao arquivo particular de Rudá de Andrade: um caderno estudantil, em cuja cobertura Oswald assinalou, de próprio punho, algumas de suas interferências, modifi­cando os nomes dos estados nos brasões e rascunhando o título e os créditos: "Caderno de Exercícios pertencente ao aluno de poesia Oswald de Andrade. Começado em 1925. Acabado em 1926. Capa de Tarsila. Autoilustrações do autor". Esboço de leiaute a indicar que foi do próprio poeta a concepção da capa.


Mas o importante é que, enquanto não surja a oportu­nidade para uma publicação fac-similar, mais custosa e problemática, e por isso mesmo necessariamente limitada, este Primeiro caderno do aluno de poesia Oswald de Andrade não deixe de ser reposto e mantido em circulação em edi­ção mais cursiva, ensejando a um público maior o acesso ao livro.

No espaço generoso da edição original, que o contras­te entre tipos vermelhos e pretos ilumina, os poemas res­pondem mais viva e funcionalmente aos jogos intersemió­ticos. Embora sem as dimensões e as cores da edição "princeps", a presente mantém suas características básicas: as barquinhas da "história pátria" dialogam com seus íco­nes "infantis"; o Brás de "delírio de julho", com suas jane­las-ideogramas; a Cadillac de "o pirata" com o correspon­dente garrancho-nuvem-de-pó. E acabamos por sentir os textos oswaldianos inseparáveis desses desenhos, tal como o "hotel esplanada", com seu elevador amoroso, nos parece indissociável do poema gráfico ("não funciona") que o com­plementa. Assim também, os poemas-síntese "fazenda", "crônica", "o pirata", que ocupam, cada qual, uma página, dando espaço à explosão e ao choque. Mais do que todos, o poema inicial "amor" (título em vermelho na edição ori­ginal), que desde logo nos provoca, na concisão unilinear do "humor" sobre o silêncio amplificado da página, com seu estranho e insinuante desenho abstratizado (para aumen­tar a perplexidade do leitor, ele aparecerá invertido em Poesias Reunidas O. Andrade: cogumelo? árvore? roda-gigante?) (3). Amor. Humor. A poesia, "a descoberta/ das coisas que eu nunca vi".

Ao enfatizar a importância da recuperação material do Oswald-de-corpo-inteiro da edição original, noto que falei menos de sua poesia ou de sua poética. Mas esta já foi recuperada, a partir dos anos 1960, apesar de todas as resistências acadêmicas. Oswald já faz parte da corrente sangüínea de nossa poesia. Já somos todos oswaldianos. Seria ocioso, talvez, lembrar aqui a operação de reoxigena­ção executada por Oswald, dentro dos quadros do moder­nismo, nas poéticas exaustas do convencionalismo pós-par­nasiano (o pós-simbolismo radicalizado de um Kilkerry ou de um Ernani Rosas guardaria reservas de modernidade a serem exploradas por outros veios, no futuro).

"The Age demanded". A Era exigia a ruptura do cilício métrico, o abandono do "sermo nobilis", da retórica empos­tada de academismos ou empastada de deliqüescências, e demandava urgentemente o hausto da linguagem cotidia­na, a imediatez do jornal e do cinema - imaginação sem fios, palavras em liberdade, como pregavam os futuristas, antes de todos. A essas demandas vieram responder, a seu tempo, nossos modernistas.

Oswald, radical em tudo, buscou na incivilidade do antropófago (o mau selvagem) e nas incorreções e moleca­gens da infância ("O netinho jogou os óculos/ na latrina") as armas-metáforas para proceder à sua correspondente deslavagem cerebral, seu "grau zero da escrita", seu marco zero. O "Manifesto da Poesia Pau Brasil" (1924) e, logo mais, o "Manifesto Antropófago" (1928) estão em plena sintonia com a poesia que praticou e, mais do que a ilus­tram, a esclarecem: é "ver com olhos livres". Tudo já está ali: da "contribuição milionária de todos os erros" à "sínte­se", à "invenção" e à "surpresa".


Na procura de uma caracterização do poeta interdisci­plinar, ocorreu-me compará-lo - comparação que, eviden­temente, não se traduz em identidade, mas em pontos de referência e iluminação - ao músico-poeta Erik Satie. Do compositor extravagante, que Oswald admirava(4) - e que, como ele, passou por um longo processo de descrédito até ser reabilitado, na década de 1950, pela voz indisciplinada de John Cage -, caberia acentuar aqui o despojamento, o "retour à la simplicité" (Cocteau) e sobretudo a face "satie­rik" (para recorrer ao anagrama perfeito de Picabia) ­o riso subversivo contra a obra "séria", exibido em epigra­mas musicais que metamorfoseiam o clichê em nonsense. E, especificamente com relação ao Primeiro caderno, o Satie de Sports et Divertissements (1914), que, numa seqüência ininterrupta de anedotas-composições, mistura textos bre­víssimos e notas musicais em partituras-poemas caligrafa­das em preto e vermelho, a demandar, também, o fac-sími­le, pois o design faz parte da criação.

Menos aparentada à obra de Villa-Lobos, cuja proli­xidade está nas antípodas de sua verve sintética - mal­grado seja o Villa- Lobos dos anos 1920, do Noneto e dos Choros (o n. 3, de 1925, dedicado, por sinal, a Oswald e Tarsila), o melhor e o mais moderno dos Villas -, a obra poética de Oswald parece ter em comum com a de Satie o absoluto desprezo pelos valores "artísticos". O Oswald poeta (nisto diverso do prosador pós-machadiano) não é um syntaxier ou um artesão, como Mallarmé. Há em sua poesia - avessa, como é, a toda estilização literária e, por outro lado, aberta ao elementarismo da linguagem crua, à colagem brutalista e aos malapropismos da fala cotidiana - uma natural adesão a tudo quanto seja por definição "não-poético", assim como o ruído (já incorpo­rado por Satie na criação de Parade, 1917, cuja partitura previa até sirenes, tiros de revólver e máquinas de escre­ver) é aparentemente "não-musical"; uma recusa crítica, que se avizinha da renúncia feroz e humorada de Satie ("J'emmerde l'Art"). Será essa uma outra chave para se entender o "livro livre" de Oswald. Ao seu ver-com-olhos­-livres haveria de corresponder um ouvir-com-ouvidos-livres.

Parêntese auditivo. Oswald chegou a gravar alguns de seus poemas, entre os quais "balada do esplanada" e "soi­dão" deste Primeiro caderno. Pouco importa a precariedade técnica desses registros feitos despretensiosamente, em fa­mília, nos últimos anos de sua vida. Quem ouve o poeta dizendo, com tanta graça e ironia, esses e outros poemas, assim como as estrofes iniciais do "Cântico dos cânticos para flauta e violão" (com a voz ligeiramente embargada pela emoção na linha "cais da minha vida quebrada"), não esquece, e não pode deixar de sentir quase em casa a pre­sença dessa poesia incorrigível. (5)

Entre a poesia de Pau Brasil e a do Primeiro caderno não há, em termos de linguagem, diferença senão de grau. "Em comprimidos, minutos de poesia", equaciona­ra Paulo Prado, em sua introdução a Pau Brasil. Já prati­cante do poema-minuto, Oswald avança no Primeiro ca­derno e radicaliza o radical, até o poema instantâneo, o poema-flash, de duas ou três linhas, associando-se aos poucos modernos que tentaram com sucesso o miniepi­grama - um Cendrars, um Pound, um Maiakóvski, um Ungaretti, um cummings. E chega ao poema-de-uma­-nota-só, síntese das sínteses: "amor (título) humor (poema)". Pílula-cápsula para explodir o bem-dizer do amor em humor dissonante, duplo sentido, gracioso-­genital. Semente de outras revoluções, essa provocação poética faz lembrar as rupturas mais significativas com a tradição em pintura - o Quadrado negro (1915) e o Branco sobre branco (1917) de Maliévitch, logo respon­dido pela série Negro sobre negro de Ródtchenko -, embora a poética de Oswald, movida a riso e ação, não se esgote nessa prática nem sistematize tal gesto-limi­te. Ao definir a poesia de Oswald como "uma poesia ready-made” (6), Décio Pignatari trouxe à baila uma outra mo­dalidade de radicalismo, o de Marcel Duchamp, mais afei­çoado, talvez, à tipologia do humor oswaldiano. Um humor­amor que vira de ponta-cabeça as poéticas conservadoras para constituir-se em fonte renovadora da poesia.



AUGUSTO DE CAMPOS
São Paulo, outubro de 2005.



Notas:

(*) Versão revista de "Oswald livro livre", texto publicado no caderno Letras, Folha de S.Paulo, São Paulo, 8.2. I 992, p. 10. (N. O.)

1- "Contribuição ao julgamento do Congresso de Poesia" (1948), em Augusto de Campos. Pagu: vida-obra. São Paulo, Brasiliense, 1982, pp. 182-184.

2- Poesias Reunidas de Oswald de Andrade (introd. e org.: Haroldo de Campos; capa: Flávio de Carvalho). São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1966.

3- Segundo Rudá de Andrade, a posição correta do desenho seria mesmo a da primeira edição. Ele se recorda de um comentário de Nonê (Oswald de Andrade Filho), afirmando que a imagem representaria um canhão da guerra de 1914.

4- "Se houve ultimamente um gênio em França, esse se chamou Erik Satie ... ", escreve Oswald de Andrade em Ponta de lança. São Paulo, Martins, 1945, p. 113. [5~ ed. São Paulo, Globo, 2004, p. 158.]

5- As leituras de Oswald, preservadas por Rudá de Andrade, foram incluídas no CD Ouvindo Oswald (Funarte, 1999), totalizando cerca de treze minutos. A meu cargo ficou a coordenação literária e o roteiro. Cid Campos incumbiu-se da produção musical e do tratamento sonoro dos textos. Participaram do CD, complementando as leituras de Oswald, os poetas Décio Pignatari, Haroldo de Campos, Omar Khouri, Paulo Miranda, Walter Silveira, Lenora de Barros e Arnaldo Antunes, caben­do-me também algumas das oralizações.

6- Décio Pignatari. "Marco Zero de Andrade", em Contracomunicação. São Paulo, Perspectiva, 1971, pp. 141 - 155.


Fonte:

Primeiro Caderno do Aluno de Poesia Oswald de Andrade (pgs. 13-23), Editora Globo, 2008.