quarta-feira, 4 de maio de 2011

« O cinema de Guy Debord » por Giorgio Agamben




O meu intuito é o de aqui definir certos aspectos da poética, ou melhor, da técnica composicional de Guy Debord no domínio do cinema. Evito voluntariamente a expressão “obra cinematográfica”, nominação que ele próprio rejeitou e que se pudesse utilizar a seu propósito. “Considerando a história da minha vida, escreveu ele em In girum imus nocte et consumimur igni [1978], não podia fazer aquilo a que se chama uma obra cinematográfica”. De resto, não apenas penso que o conceito de obra não é útil no caso de Debord, como sobretudo me pergunto se hoje, cada vez que se quer analisar aquilo a que se chama de obra, quer seja literária, cinematográfica ou outra, não seria necessário colocar em questão o seu próprio estatuto. Em vez de interrogar a obra enquanto tal, penso que é preciso perguntar que relação existe entre o que se podia fazer e o que foi feito. Uma vez, como estava tentado (e ainda estou) a considerá-lo um filósofo, Debord disse-me: “Não sou um filósofo, sou um estrategista”. Ele viu o seu tempo como uma guerra incessante em que toda a sua vida estava empenhada numa estratégia. É por isso que penso ser preciso interrogar-nos sobre o sentido do cinema nessa estratégia. Porquê o cinema e não, por exemplo, a poesia, como o foi no caso de Isou, que tinha sido tão importante para os situacionistas, ou porquê não a pintura, como para um dos seus amigos, Asger Jorn?

Creio que isso se deve à ligação estreita que existe entre o cinema e a história. De onde vem essa ligação, e de que história se trata?

Tal deve-se à função específica da imagem e ao seu carácter eminentemente histórico. É preciso especificar aqui alguns detalhes importantes. O homem é o único animal que se interessa às imagens enquanto tais. Os animais interessam-se bastante pelas imagens, mas na medida em que são enganados por elas. Podemos mostrar a um peixe a imagem de uma fêmea, ele irá ejectar o seu esperma; ou mostrar a um pássaro a imagem de outro pássaro para o capturar, e ele será enganado. Mas quando o animal se dá conta que se trata de uma imagem, desinteressa-se totalmente. Ora, o homem é um animal que se interessa pelas imagens uma vez que as tenha reconhecido enquanto tais. É por isso que se interessa pela pintura e vai ao cinema. Uma definição do homem, do nosso ponto de vista específico, poderia ser que o homem é o animal que vai ao cinema. Ele interessa-se pelas imagens uma vez que tenha reconhecido que não se tratam de seres verdadeiros. Um outro aspecto é que, como mostrou Gilles Deleuze, a imagem no cinema (e não apenas no cinema, mas nos Tempos modernos em geral) já não é algo de imóvel, já não é um arquétipo, quer dizer, algo fora da história: é um corte ele próprio móvel, uma imagem-movimento, carregada enquanto tal de uma tensão dinâmica. É essa carga dinâmica que se vê muito bem na fotos de Marey e de Muybridge que estão na origem do cinema, imagens carregadas de movimento. É uma carga deste gênero que via Benjamin naquilo a que chamava uma imagem dialéctica, que era para ele o próprio elemento da experiência histórica. A experiência histórica faz-se pela imagem, e as imagens estão elas próprias carregadas de história. Poderíamos considerar a nossa relação à pintura sob este aspecto: não se trata de imagens imóveis, mas antes de fotogramas carregados de movimento que provêem de um filme que nos falta. Era preciso restituí-las a esse filme (vocês terão reconhecido o projeto de Aby Warburg).

Mas de que história se trata? É preciso esclarecer que não se trata aqui de uma história cronológica, mas a bem dizer de uma história messiânica. A história messiânica define-se antes de mais nada por dois caracteres. É uma história da Salvação, é preciso salvar alguma coisa. E é uma história última, é uma história escatológica, em que alguma coisa deve ser consumada, julgada, deve passar-se aqui, mas num tempo outro, deve, portanto, subtrair-se à cronologia, sem sair para um exterior. É essa a razão pela qual a história messiânica é incalculável. Na tradição judaica há toda uma ironia do cálculo, os rabinos faziam cálculos muito complicados para prever o dia da chegada do Messias, mas não paravam de repetir que se tratavam de cálculos proibidos, pois a chegada do Messias é incalculável. Mas, ao mesmo tempo, cada momento histórico é aquele da sua chegada, o Messias é sempre já chegado, está sempre já aí. Cada momento, cada imagem está carregada de história, porque ela é a pequena porta pela qual o Messias entra. É esta situação messiânica do cinema que Debord partilha com o Godard das Histoire(s) du cinéma. Apesar da sua antiga rivalidade – Debord disse em 68 de Godard que ele era o mais tolo de todos os Suíços pró-chineses –, Godard reencontrou o mesmo paradigma que Debord tinha sido o primeiro a traçar. Qual é esse paradigma, qual é essa técnica de composição? Serge Daney, acerca das Histoire(s) de Godard, explicou que era a montagem: “O cinema procurava uma coisa, a montagem, e era dessa coisa que o homem do século XX tinha uma necessidade terrível”. É o que mostra Godard nas Histoire(s) du cinéma.



O carácter mais próprio do cinema é a montagem. Mas o que é a montagem, ou antes, quais são as condições de possibilidade da montagem? Em filosofia, depois de Kant, chama-se às condições de possibilidade de alguma coisa os transcendentais. Quais são então os transcendentais da montagem? Existem duas condições transcendentais da montagem, a repetição e a paragem. Isto, Debord não o inventou, mas fê-lo vir à luz, exibiu estes transcendentais enquanto tais. E Godard fará o mesmo nas suas Histoire(s). Já não temos necessidade de filmar, basta-nos repetir e parar. Esta é uma nova forma epocal por relação à história do cinema. Este fenômeno espantou-me bastante em Locarno em 1995. A técnica composicional não mudou, é ainda a montagem, mas agora a montagem passa para primeiro plano, e mostra-se enquanto tal. É por isto que se pode considerar que o cinema entra numa zona de indiferença em que todos os gêneros tendem a coincidir; o documentário e a narração, a realidade e a ficção. Faz-se cinema a partir das imagens do cinema.

Mas voltemos às condições de possibilidade do cinema, a repetição e a paragem. O que é uma repetição? Há na Modernidade quatro grandes pensadores da repetição: Kierkegaard, Nietzsche, Heidegger e Gilles Deleuze. Os quatro mostraram-nos que a repetição não é o retorno do idêntico, do mesmo enquanto tal que retorna. A força e a graça da repetição, a novidade que traz, é o retorno em possibilidade daquilo que foi. A repetição restitui a possibilidade daquilo que foi, torna-o de novo possível. Repetir uma coisa é torná-la de novo possível. É aí que reside a proximidade entre a repetição e a memória. Dado que a memória não pode também ela devolver-nos tal qual aquilo que foi. Seria o inferno. A memória restitui ao passado a sua possibilidade. É o sentido desta experiência teológica que Benjamin via na memória, quando dizia que a recordação faz do inacabado um acabado, e do acabado um inacabado. A memória é, por assim dizer, o órgão de modalização do real, aquilo que pode transformar o real em possível e o possível em real. Ora, se pensarmos nisso, trata-se também da definição do cinema. Não faz o cinema sempre isso, transformar o real em possível, e o possível em real? Podemos definir o já visto como o fato de “perceber algo do presente como se já tivesse sido”, e o inverso, o fato de perceber como presente algo que já foi. O cinema tem lugar nessa zona de indiferença. Compreendemos então porque o trabalho com imagens pode ter uma tal importância histórica e messiânica, pois é uma forma de projetar a potência e a possibilidade em direção ao que é por definição impossível, em direção ao passado. O cinema faz então o contrário do que fazem as mídias. As mídias dão-nos sempre o fato, o que foi, sem a sua possibilidade, sem a sua potência, dão-nos portanto um fato sobre o qual somos impotentes. As mídias adoram o cidadão indignado mas impotente. É o mesmo objetivo do telejornal. É a má memória, a que produz o homem do ressentimento.

Ao colocar a repetição no centro da sua técnica composicional, Debord torna de novo possível aquilo que nos mostra, ou melhor, abre uma zona de indecidibilidade entre o real e o possível. Quando mostra um trecho do telejornal, a força da repetição é tal que deixa de ser um fato consumado, e volta a ser, por assim dizer, possível. Nos perguntamos: “Como isto foi possível?” – primeira reação –, mas ao mesmo tempo compreendemos que sim, tudo é possível, mesmo o horror que nos fazem ver. Hannah Arendt definiu um dia a experiência final dos campos como o princípio do “tudo é possível”. É também nesse sentido extremo que a repetição restitui a possibilidade.



O segundo elemento, a segunda condição transcendental do cinema é a paragem. É o poder de interromper, a “interrupção revolucionária” de que falava Benjamin. É muito importante no cinema, mas, mais uma vez, não apenas no cinema. É o que faz a diferença entre o cinema e a narração, a prosa narrativa, com a qual se tem tendência a comparar o cinema. A paragem mostra-nos, pelo contrário, que o cinema está muito mais próximo da poesia que da prosa. Os teóricos da literatura sempre tiveram bastante dificuldades em definir a diferença entre a prosa e a poesia. Muitos elementos que caracterizam a poesia podem dar-se na prosa (que, por exemplo, do ponto de vista do número de sílabas, pode conter versos). A única coisa que se pode fazer na poesia e não na prosa são os enjambements e as cesuras. O poeta pode opor um limite sonoro, métrico, a um limite sintático. Não se trata apenas de uma pausa, mas de uma não-coincidência, uma disjunção entre o som e o sentido. Por isso Valéry pôde uma vez dar ao poema esta definição tão bela: “O poema, uma hesitação prolongada entre o som e o sentido”. É também por isso que Hölderlin pôde dizer que a cesura, ao parar o ritmo e o desenrolar das palavras e das representações, faz aparecer a palavra e a representação enquanto tais. Parar a palavra é subtraí-la do fluxo do sentido para a exibir enquanto tal. Poderíamos dizer a mesma coisa da paragem tal como Debord a pratica, enquanto constitutiva de uma condição transcendental da montagem. Poderíamos retomar a definição de Valéry e dizer do cinema, pelo menos de um certo cinema, que é uma hesitação prolongada entre a imagem e o sentido. Não se trata de uma paragem no sentido de uma pausa, cronológica, mas antes de uma potência de paragem que trabalha a própria imagem, que a subtrai do poder narrativo para a expor enquanto tal. É neste sentido que Debord nos seus filmes e Godard nas suas Histoire(s) trabalham com essa potência da paragem.

Estas duas condições transcendentais não podem nunca estar separadas, elas formam un sistema conjuntamente. No último filme de Debord há um texto muito importante logo no início: “Mostrei que o cinema se pode reduzir à esta tela branca, e à esta tela preta”. O que Debord entende por isto é precisamente a repetição e a paragem, indissolúveis enquanto condições transcendentais da montagem. O preto e o branco, o fundo em que as imagens estão tão presentes que nem as conseguimos ver, e o vazio em que não há imagem alguma. Existem aqui analogias com o trabalho teórico de Debord. Se tomarmos, por exemplo, o conceito de “situação construída” que deu nome ao situacionismo, uma situação é uma zona de indecidibilidade, de indiferença entre uma unicidade e uma repetição. Quando Debord diz que é preciso construir situações trata-se sempre de algo que se pode repetir e também algo de único.

Debord o menciona ainda no final de In girum imus nocte et consumimur igni, quando, em vez da tradicional palavra “Fim”, aparece a frase: “A retomar do início”. Há aqui igualmente o princípio que trabalha no próprio título do filme, que é um palíndromo, uma frase que se volta nela mesma. Neste sentido, há uma palindromia essencial no cinema de Debord.

Juntas, a repetição e a paragem realizam a tarefa messiânica do cinema de que falávamos. Esta tarefa tem essencialmente a ver com a criação. Mas não é uma nova criação depois da primeira. Não se deve considerar o trabalho do artista unicamente em termos de criação: pelo contrário, no fundo de cada ato de criação há um ato de des-criação. Deleuze disse um dia, acerca do cinema, que cada ato de criação é sempre um ato de resistência [O Ato de Criação por Gilles Deleuze]. Mas o que significa resistir? É antes de mais nada ter a força de des-criar o que existe, des-criar o real, ser mais forte que o fato que aí está. Todo ato de criação é também um ato de pensamento, e um ato de pensamento é um ato criativo, pois o pensamento define-se antes de tudo pela sua capacidade de des-criar o real.

Se esta é a tarefa do cinema, o que é uma imagem que foi assim trabalhada pelas potências da repetição e da paragem? O que muda no estatuto da imagem? É preciso repensar aqui toda a nossa concepção tradicional da expressão. A concepção corrente da expressão é dominada pelo modelo hegeliano segundo o qual toda a expressão se realiza numa mídia quer seja uma imagem, uma palavra ou uma cor, que no fim deve desaparecer na expressão acabada. O ato expressivo é consumado quando o meio, a mídia, já não é percebida enquanto tal. É preciso que a mídia desapareça no que nos dá a ver, no absoluto em que se mostra, que nele resplandece. Pelo contrário, a imagem que foi trabalhada pela repetição e pela paragem é um meio, uma mídia que não desaparece no que nos dá a ver. É o que eu chamaria de “meio puro”, que se mostra enquanto tal. A imagem dá-se a ver ela própria em vez de desaparecer no que nos dá a ver. Os historiadores do cinema assinalaram como uma novidade desconcertante o fato de que, em Monika de Bergman (1952), a protagonista, Harriet Andersson, fixa de repente o seu olhar na objetiva da câmara. O próprio Bergman escreveu a propósito desta sequência: “Aqui e pela primeira vez na história do cinema estabelece-se de súbito um contato direto com o espectador”. Desde então, a fotografia e a publicidade banalizaram este procedimento. Estamos habituados ao olhar da estrela de pornô que, enquanto faz aquilo que tem a fazer, olha fixamente a câmara, mostrando assim que se interessa mais pelos espectadores do que pelo seu partner.

Desde os seus primeiros filmes e de forma cada vez mais clara, Debord mostra-nos a imagem enquanto tal, isto é, e segundo um dos princípios teóricos fundamentais de A sociedade do Espetáculo, enquanto zona de indecidibilidade entre o verdadeiro e o falso. Mas existem duas maneiras de mostrar uma imagem. A imagem exposta enquanto tal já não é imagem de nada, é ela própria sem imagem. A única coisa da qual não se pode fazer imagem é, por assim dizer, ser imagem da imagem. O signo pode significar tudo, exceto o fato de estar a significar. Wittgenstein dizia que o que não se pode significar, ou dizer num discurso, o que é de alguma forma indizível, isso mostra-se no discurso. Existem duas formas de mostrar essa relação com o “sem-imagem”, duas formas de fazer ver o que já não há nada para ver. Uma é o pornô e a publicidade, que fazem como se houvesse sempre o que ver, ainda e sempre imagens por detrás das imagens; a outra a que, nessa imagem exposta enquanto imagem, deixa aparecer esse “sem-imagem”, o que é, como dizia Benjamin, o refúgio de toda a imagem. É nesta diferença que se articulam toda a ética e toda a política do cinema.

(Giorgio Agamben, «Le cinéma de Guy Debord» (1995), in Image et mémoire, Hoëbeke, 1998, pp. 65-76.)


Extraído de: Blog Intermídias

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Entrevista : Eduardo Viveiros de Castro sobre Lévi-Strauss


foto: flor Pensée Sauvage


O etnólogo do Museu Nacional explica, nesta entrevista, o que distingue, para Lévi-Strauss, o pensamento em estado selvagem do pensamento científico.

Por Carolina Cantarino e Rodrigo Cunha

Etnólogo americanista, com experiência de pesquisa na Amazônia, professor e pesquisador do Museu Nacional, ligado à Universidade Federal do Rio de Janeiro, Eduardo Viveiros de Castro referiu-se recentemente a Lévi-Strauss, no último encontro da Associação Nacional de Pós-graduação em Ciências Sociais (Anpocs), como autor de uma obra de incrível versatilidade. Nesta entrevista, ele explica a abordagem de Lévi-Strauss sobre a distinção entre Natureza e Cultura, entre o pensamento selvagem e o científico, fala da universalidade do etnocentrismo, da importância do corpo para as culturas ameríndias e das relações entre mito, ciência e arte para Lévi-Strauss.

Em artigo publicado na revista Mana, o senhor afirma que a diferenciação entre Natureza e Cultura é, para Lévi-Strauss, o maior tema da mitologia ameríndia. Como ele descreve e interpreta essa diferenciação e quais os desdobramentos disso para a antropologia, em termos de novas interpretações ou revisões críticas?

Eduardo Viveiros de Castro – Com efeito, Lévi-Strauss afirma repetidas vezes, em sua obra, que a mitologia ameríndia – ou pelo menos aquela vasta porção da mitologia ameríndia que foi objeto de sua atenção ao longo de pelo menos sete livros – teria como tema central a diferenciação entre Natureza e Cultura. Interpretar essa afirmação aparentemente tão simples é, na verdade, tarefa bastante complicada, para a qual eu mesmo, entre outros colegas, venho tentando contribuir há vários anos. Em primeiro lugar, a dita diferenciação entre Natureza e Cultura é menos (ou mais) que um tema; ela é um problema para o pensamento indígena. Pois o tal tema central raras vezes se reduz, tanto no discurso mitológico como na análise levistraussiana do mesmo, a uma narrativa unívoca sobre a transcendência, conquista e domínio da Natureza pela Cultura, ao contrário do que se passa dominantemente em nossa mitologia ocidental (também conhecida pelo nome de “metafísica”). Ao contrário, os mitos, assim como seu analista, insistem sobre o caráter multiplamente problemático dessa separação: seja pelo alto preço que ela custa à espécie humana (a origem da cultura é costumeiramente associada, nos mitos, à origem da mortalidade, e à perda da comunicação linguística com os outros viventes do cosmos), seja pela remanência crucial de zonas, momentos ou fenômenos em que a separação se mostra incompleta ou impossível, seja, finalmente, por um poderoso impulso em direção contrária, uma “marcha regressiva” da Cultura em direção à Natureza que acompanha como uma sombra o movimento de separação, ao longo de toda essa mitologia. Na verdade, o percurso interpretativo empreendido por Lévi-Strauss dá testemunho de um progressivo deslocamento de ênfase, desde O cru e o cozido (1964) até História de Lince (1991), onde o caráter equívoco, ambivalente e problemático da separação entre Natureza e Cultura, vai predominando sobre um discurso “antropológico” ou hominizante. Esse deslocamento ecoa, por sua vez, a crescente indignação de Lévi-Strauss com as consequências suicidas da metafísica ocidental a respeito da “separação” entre Natureza e Cultura – estou-me referindo aqui à crise ecológica planetária.

Quando se pensa na abordagem de Lévi-Strauss sobre ciência, a primeira obra que tende a ser lembrada é O pensamento selvagem (1962), em que ele confere estatuto de pensamento aos mitos indígenas. Segundo Lévi-Strauss, a ciência ocidental teria acesso à natureza tal como é, enquanto que outras culturas fariam apenas imagens ou representações dessa natureza. Há outras possibilidades de se pensar a relação entre a ciência ocidental e o pensamento selvagem?

Viveiros de Castro O pensamento selvagem não versa sobre mitos indígenas, mas sobre certas disposições universais do pensamento humano: ameríndio, europeu, asiático ou qualquer outro. O “pensamento selvagem” não é o pensamento dos “selvagens” ou dos “primitivos” (em oposição ao “pensamento ocidental”), mas o pensamento em estado selvagem, isto é, o pensamento humano em seu livre exercício, um exercício ainda não-domesticado em vista da obtenção de um rendimento. O pensamento selvagem não se opõe ao pensamento científico como duas formas ou duas lógicas mutuamente exclusivas. Sua relação é, antes, uma relação entre gênero (o pensamento selvagem) e espécie (o pensamento científico). Ambas as formas de pensamento se utilizam dos mesmos recursos cognitivos; o que as distingue é, diz Lévi-Strauss, o nível do real ao qual eles se aplicam: o nível das propriedades sensíveis (caso do pensamento selvagem), e o nível das propriedades abstratas (caso do pensamento científico). Mas a tendência, diz o autor, é que o pensamento científico, à medida em que avança, vá-se aproximando do pensamento selvagem, ao se mostrar capaz de incorporar as dimensões sensíveis da experiência humana em uma abordagem unificada, onde física e semântica não estão mais separadas por um abismo ontológico. Ou seja, o futuro da ciência não é se distanciar do pensamento selvagem, mas convergir com ele.

Para Lévi-Strauss, a visão de mundo indígena é tão etnocêntrica quanto a ocidental, e a distinção básica entre ambas estaria na relação entre corpo e alma. Como ele explica isso?


Viveiros de Castro
– A questão do etnocentrismo não passa pela distinção (ou pela indistinção) entre pensamento selvagem e pensamento domesticado. O que Lévi-Strauss diz é que existe uma tendência humana universal a tomar o próprio grupo como exemplo acabado da humanidade, e a ver os demais coletivos humanos (outras culturas, povos e sociedades) como exemplares menos perfeitos dessa humanidade e, no limite, como estando fora do escopo desse conceito. Isso é o chamado etnocentrismo. A universalidade de tal disposição, porém, não exclui diferenças importantes em seu modo de exercício e de manifestação. Assim, ao falar das percepções recíprocas da alteridade mobilizadas pela invasão e conquista européia das Américas, Lévi-Strauss insiste sobre a diferença radical entre o que chama de “abertura ao Outro”, característica do pensamento ameríndio, e o fechamento fanático dos europeus – fechamento político, filosófico, estético – diante da alteridade social e natural oferecida pelo Novo Mundo. As consequências políticas dessa diferença dispensam, creio, comentários.

Quais foram as principais contribuições de Lévi-Strauss acerca da importância do corpo para as culturas ameríndias, em obras como O cru e o cozido? Há releituras posteriores desses trabalhos que mereçam ser destacadas?

Viveiros de Castro – Ao mesmo tempo em que é um estudo formal dedicado às mitologias ameríndias, as Mitológicas, cujo primeiro volume é justamente O cru e o cozido, revelam também outra coisa, a saber, que os materiais simbólicos de que as sociedades indígenas lançam mão para se constituírem são refratários às categorias tradicionais da sociologia e da antropologia social. Princípios cosmológicos embutidos em oposições de qualidades sensíveis, uma economia simbólica da alteridade inscrita no corpo e nos fluxos materiais, um modo de articulação com a natureza que pressupõe uma socialidade universal (a diferenciação entre Natureza e Cultura de que falávamos não exclui, muito pelo contrário, um fundo comum de socialidade que atravessa todo o campo do vivente), são os materiais e processos que parecem tomar o lugar dos idiomas jurisdicistas e economicistas com que a antropologia descreveu as sociedades de outras partes do mundo, com seus feixes de direitos e deveres, suas corporações de parentesco perpétuas e territorializadas, seus elaborados regimes de propriedade e herança, seus modos de produção linhageiros... Longe de se constituírem em conteúdos “superestruturais” ou “culturais” das formações sul-americanas, esses materiais e processos articulam diretamente uma sociologia indígena.

Lévi-Strauss estabelece uma relação entre arte, mito e conhecimento. Muitos trabalhos contemporâneos em ciências humanas e sociais costumam ver a arte como único conhecimento, hoje, capaz de questionar politicamente a ciência, inclusive nos seus princípios operatórios. Como pensar essa relação entre mito, ciência e arte, partindo de Lévi-Strauss?

Viveiros de Castro – A arte é, para Lévi-Strauss, como que o refúgio ecológico do pensamento selvagem dentro do mundo racionalizado e tecnicizado das sociedades modernas. Na arte, ainda é lícito sermos “selvagens”, no bom sentido que o adjetivo sempre tem na pena de Lévi-Strauss. O mestre francês não entende, porém, ao contrário desses trabalhos contemporâneos mencionados pela pergunta (e que confesso ignorar completamente quais sejam), que a arte, ou o mito, possuam qualquer superioridade sobre a ciência. Ao contrário, Lévi-Strauss afirma repetidas vezes que a ciência é uma aquisição fundamental da espécie, e que o tipo de conhecimento tornado possível pela ciência é de um valor inestimável, ao qual nem o mito nem a arte podem pretender. Não há como transformar Lévi-Strauss em um profeta anti-científico! Mas ele certamente não é, por outro lado, um admirador incondicional da civilização que gerou a ciência (e que é até certo ponto gerida por ela, ou pior, que pensa sê-lo); muito pelo contrário. E também é certo que Lévi-Strauss vê na arte a expressão máxima do gênio humano. A arte é para ele, no final das contas (assim me parece), um modelo para a ciência, essa forma de conhecimento que em seus momentos culminantes se aproxima da arte. O mito representa para Lévi-Strauss aquele momento quase-adâmico da história cognitiva da espécie, quando a arte e a ciência ainda não haviam tomado rumos distintos. E o futuro do pensamento humano – se é que há um – não poderá consistir senão em um movimento em espiral de volta à região onde impera, inesgotável, o impulso gerador do mito.



Extraído de : Revista Com Ciência, No. 114 - 10/12/2009

quarta-feira, 30 de março de 2011

Identidade Convulsiva




“O homem não deveria pensar-se como revolucionário apenas no plano social, mas acreditar e, sobretudo, sê-lo no plano físico, fisiológico, anatômico, funcional, circulatório, respiratório, dinâmico, atômico e elétrico”

(Antonin Artaud)




Extraído de : http://diacrianos.blogspot.com/2011/03/identidade-convulsiva.html

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Sem Mais Questões




Ao encontrar um mestre Zen em um evento social, um psiquiatra decidiu colocar-lhe uma questão que sempre esteve em sua mente:

"Exatamente como você ajuda as pessoas?" ele perguntou.

"Eu as alcanço naquele momento mais difícil, quando elas não tem mais nenhuma questão para perguntar," o mestre respondeu.




Extraído de http://www.nossacasa.net/shunya/default.asp?menu=108

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

beats: da ecologia ao budismo

Gary Snyder, Peter Orlowsky, Allen Ginsberg


Entrevista com Allen Ginsberg feita por Rodrigo Garcia Lopes

"Quando o entrevistei em 1990, no Arizona, para meu livro Vozes e Visões, perguntei quais teriam sido as principais contribuições da geração beat. Ele respondeu: 'Cada um de nós enfatiza um ponto diferente. Gary Snyder chegou à conclusão de que foi a proclamação da consciência ecológica. (…) Minha impressão é a de que contribuímos para um encontro direto entre a mente oriental e a ocidental. A introdução da meditação na poesia norte-americana também foi uma contribuição importante. Embora os transcendentalistas, como Thoreau e Emerson, também tivessem interesse pelas culturas, filosofias e literatura orientais, não tinham um contato direto com mestres dessas culturas como nós tivemos. Whalen e Snyder ajudaram a estabelecer a prática budista na América. O movimento beat nos despertou para uma mente mais espontânea, para uma sensibilidade maior diante das coisas da natureza, das outras culturas, da nossa individua- lidade. (…) Outra coisa foi a aproximação com a música e a reconciliação entre as culturas branca e negra: os brancos, no caso, reconhecendo o valor sagrado e a riqueza da cultura negra'. "

(Trecho do artigo O uivo vivo de Allen Ginsberg)

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Rituais




Os moradores ribeirinhos acreditavam que as águas do Banganga podiam lavar o mau carma, tanto da vida presente quanto das vidas pregressas e, assim, com freqüência, mergulhavam nele, mesmo a temperaturas congelantes. Um dia, enquanto estava sentado ao longo da barranca junto com seu servo, Sidarta perguntou: “Chana, você crê que as águas deste rio podem levar embora o carma negativo?”

“Deve ser assim, Alteza, pois, de outro modo, por que tantas pessoas viriam aqui para se lavarem?”

Sidarta sorriu. “Bem, então, o camarão, o peixe e as ostras que passam suas vidas inteiras submersos nestas águas devem ser as criaturas mais puras e virtuosas de todas!”



Thich Nhat Hanh
, Velho Caminho, Nuvens Brancas – Seguindo as Pegadas do Buda (Editora Bodigaya, Porto Alegre, 2007, tradução do original de 1991)


Extraído do blog para ser zen

sábado, 27 de novembro de 2010

Footnote to Howl


Holy! Holy! Holy! Holy! Holy! Holy! Holy! Holy! Holy!
Holy! Holy! Holy! Holy! Holy! Holy!
The world is holy! The soul is holy! The skin is holy!
The nose is holy! The tongue and cock and hand
and asshole holy!
Everything is holy! everybody's holy! everywhere is
holy! everyday is in eternity! Everyman's an
angel!
The bum's as holy as the seraphim! the madman is
holy as you my soul are holy!
The typewriter is holy the poem is holy the voice is
holy the hearers are holy the ecstasy is holy!
Holy Peter holy Allen holy Solomon holy Lucien holy
Kerouac holy Huncke holy Burroughs holy Cas-
sady holy the unknown buggered and suffering
beggars holy the hideous human angels!
Holy my mother in the insane asylum! Holy the cocks
of the grandfathers of Kansas!
Holy the groaning saxophone! Holy the bop
apocalypse! Holy the jazzbands marijuana
hipsters peace & junk & drums!
Holy the solitudes of skyscrapers and pavements! Holy
the cafeterias filled with the millions! Holy the
mysterious rivers of tears under the streets!
Holy the lone juggernaut! Holy the vast lamb of the
middle class! Holy the crazy shepherds of rebell-
ion! Who digs Los Angeles IS Los Angeles!
Holy New York Holy San Francisco Holy Peoria &
Seattle Holy Paris Holy Tangiers Holy Moscow
Holy Istanbul!
Holy time in eternity holy eternity in time holy the
clocks in space holy the fourth dimension holy
the fifth International holy the Angel in Moloch!
Holy the sea holy the desert holy the railroad holy the
locomotive holy the visions holy the hallucina-
tions holy the miracles holy the eyeball holy the
abyss!
Holy forgiveness! mercy! charity! faith! Holy! Ours!
bodies! suffering! magnanimity!
Holy the supernatural extra brilliant intelligent
kindness of the soul!




Berkeley 1955

(Allen Ginsberg)

domingo, 21 de novembro de 2010

Eu pensava que a terra remendava com o céu



No meu pensamento de antigamente,

Quando eu era menino,

O mundo, eu pensava

Que era que nem tocaia,

A terra remendava com o céu.

O sol,

Eu pensava que eram muitos,

Passando dias e dias.

A noite,

Eu pensava que era que nem fumaça,

Porque quando o sol ia embora,

A noite vinha cobrir o mundo.

O céu,

Eu pensava que era que nem ferro,

Nunca acaba.

A chuva,

Eu pensava que eram alguns bichos grandes,

Esturrando em cima do céu.

O homem,

Eu pensava que só nós mesmos vivíamos,

Só nós mesmos, o povo Kaxinawá.

Um dia, eu vi um branco chegando na nossa casa falando diferente. Mas eu pensava que quando eu fosse na casa dele, ele ia falar em Kaxinawá. Uma dia, eu fui viajar com meu pai, para ver onde estava a terra remendada com o céu. Nós íamos descendo o rio e quando passaram alguns dias perguntei ao meu pai onde estava a terra remendada com o céu. O meu pai me disse que não estava remendada a terra com o céu. Que o mundo é muito grande e não tem fim...


(Noberto Sales Tene Kaxinawá)



Fonte: http://www.bibliotecadafloresta.ac.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=733:poesiasdafloresta&catid=17:notas&Itemid=217

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Não se torne uma colônia





"Enquanto escrevo estas linhas, os trabalhadores franceses lutam para reduzir sua jornada de trabalho de 40 para 35 horas semanais. Estão se esforçando muito para consegui-lo, mas como usarão estas cinco horas? Se usarem-nas como fazem aos sábados à noite, ficando sentados num bar ou diante da televisão, será um terrível desperdício. Todos precisamos de tempo para relaxar e viver, mas como? Geralmente quando temos algum tempo livre, assistimos a qualquer coisa que esteja passando na televisão a fim de evitar "não ter nada para fazer", o que significa ficar em casa sozinhos com nós mesmos. Assistir à televisão pode nos deixar mais cansados, nervosos e desequilibrados, mas raramente observamos esses resultados. O tempo livre que tanto lutamos para conseguir é capturado pelos canais de televisão e pelos produtos dos anunciantes. Terminamos sendo a colônia deles. Precisamos encontrar maneiras de usar nosso precioso tempo para descansar e ser felizes.

Podemos escolher bons programas na televisão para assistir, lugares bonitos para ir, encontros com amigos queridos, livros e discos que nos convêm. E podemos viver de maneira relaxada e satisfeitos com aquilo que escolhemos. Lembre-se de que somos aquilo que escolhemos. Você já esteve numa praia ao raiar do sol, ou no topo de uma montanha ao meio-dia? Você estendeu bem os braços e respirou profundamente, enchendo os pulmões com o ar puro e limpo, com ilimitada imensidão? Você se sentiu como se fosse o céu, o mar ou a montanha? Se você estiver muito longe do mar ou da montanha, você pode sentar-se de pernas cruzadas e respirar suave e profundamente, e o ar, a montanha e todo o universo o penetrarão."


(Thich Nhat Hanh - O Sol Meu Coração, pgs. 47 / 48)

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Criação.



Hakim Bey inicia o capítulo "Vontade de Poder como Desaparecimento", do TAZ, com uma breve interpretação sobre a idéia de desaparecimento social para Foucault e Baudrillard, que vai se desdobrar no resto do capítulo. Quem quiser mais detalhes, pode ler o livro no protópia: TAZ .

O que nos interessa mesmo aqui é a nota de rodapé colocada pelo Hakim Bey ao fim desse parágrafo. Abaixo:

"Talvez isso seja uma grotesca interpretação americana de uma sublime e sutil teoria franco-germânica. Se for, tudo bem: quem foi que disse que a compreensão era necessária para se usar uma idéia?"