terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

O Romantismo e as Ciências Sociais

"O Andarilho sobre as Brumas",
de Caspar David Friedrich


No momento, estou iniciando na graduação de Ciências Sociais da UFPE um curso sobre modernismo e pós-modernismo. Não estou muito interessado naquilo que Berman chama de modernidade sólida, ou seja no império da razão, da disciplina, do registro contábil, da previsibilidade, mas naquilo que ele chama visão diluidora da modernidade, e que Scott Lash chama modernidade estética, e eu, simplesmente, modernismo. A teoria sociológica estabeleceu desde muito cedo um diálogo produtivo com os movimentos estéticos que se posicionaram de modo crítico ou laudatório em relação ao mundo moderno, industrial.

Essa constatação, todavia, nunca é levada muito a sério, pois no mais das vezes os sociólogos estão interessados em demonstrar a solidez de seu conhecimento, o quanto ele é sisudamente científico. Muito de passagem, costuma-se falar, por exemplo, do impressionismo simmeliano; não seria, de fato, difícil apontar na obra de Georg Simmel um vitalismo que o aproxima da ênfase que o Impressionismo dá ao movimento como traço não apenas da vida moderna, mas de sua estética. O antiformalismo simmeliano, seu ensaismo também são elementos que o conectam a este tipo de estética. Simmel parece, portanto, ser uma ovelha desgarrada entre os clássicos - já se falou, para poder dar coerência a uma visão pobre, mas corrente da sociologia clássica, que ele seria pós-moderno temporão (Cf Weinstein, D. e Michael Weinstein. 1993. Postmodern(ised) Simmel).

Por tudo isso, acredito que seja frutífero reconhecer a enorme importância que o romantismo tem na consolidação de uma vertente interpretativa nas ciências sociais. Primeiro poderíamos falar de algumas referências comuns. Quem já leu o Discurso sobre os Fundamentos e a Origem da Desigualdade entre os Homens poderá de imediato retirar algumas conclusões. Romântico em sua idealização de uma infância perdida da humanidade, em sua crítica radical ao processo civilizador, Rousseau é neste livro uma referência duradoura para as ciências sociais. Derrida, por exemplo, observa a influência deste livro na obra de Lévi-Strauss, em seu carinho pelo bom selvagem. Gerd Bornheim, acredita que Rousseau (ou uma interpretação simplificada de sua obra) seja uma influência mais direta no proto-romantismo alemão, mas especificamente no movimento Sturm und Drang (Tempestade e Ímpeto). A busca de uma relação mais direta do homem com a natureza, a valorização do irracional, do genial ( concebido como força não racional), são alguns valores que aproximaria Rousseau do proto-romantismo alemão.

Introduz-se assim a crença, à qual todo o Romantismo permanecerá fiel, de que a irracionalidade é uma força positiva: o caos constrói, compõe. Daí o tema do demoníaco no Sturm und Drang, que leva a considerar o gênio o valor máximo. O gênio é o Kraftmensch, o homem habitado pela força da natureza, que faz dele um demiurgo apto a manifestar todas as suas possibilidades, o infinito da pulsação cósmica que traz consigo e o anima. Antecipando Nietzsche, é caracterizado como uma espécie de super-homem. A ordem, a virtude, a moral são substituídas pelo caos criativo, pela força do gênio, pelas paixões vitais além de toda medida (Bornheim G. In Guinsburg, O Romantismo, p. 82)

Uma outra vertente do Romantismo alemão, parte, não de Rousseau, mas do Iluminismo kantiano. Lembremos, a propósito, de Schleiermacher, célebre por sua contribuição na consolidação de uma hermenêutica científica, e que esteve muito próximo dos círculos onde transitavam figuras destacadas, tais como os irmãos Schlegel ou Novalis. Se esses pensadores colocam-se sob a influência kantiana tal como ela é processada por Fichte, eles não compartilham com o pensador de Könisberg seu entusiasmo pelas Luzes, seu otimismo em relação a começar um mundo novo, de realização do potencial de liberdade do ser humano, a partir de uma ruptura com o passado. O Iluminismo pretendeu ser um movimento de ruptura, a inauguração de uma ordem social inteiramente racional, cuja legitimidade teria que ser constantemente conquistada no presente do diálogo entre os seres humanos. Em contraste, e em oposição, Novalis, Schleiermacher ou os Schlegel viam a tradição como um manancial importante de reflexão e produção artística.

Para o romantismo, o passado é fonte de inspiração, e à idéia de uma sociedade racional, ele opõe a emoção como elemento de coesão social e de conexão com este passado. A hermenêutica moderna deve muito a esse movimento artístico. Citarei um trecho do livro O Romantismo, de J. Guinsburg: "Assim, porque tudo se faz "história" no Romantismo, a História se faz então "realidade", integrando historicamente o estudo do desenvolvimento dos povos, de sua cultura erudita e de seu saber popular (folclore), de sua personalidade coletiva ou espírito nacional, de suas instituições jurídicas e políticas, de seus mores e práticas típicas, de seus modos de produção e existência material e espiritual, cada vez mais nas linhas de um tempo cada vez mais mítico ou idealizado" (1978, p. 18)

O Iluminismo propunha a idéia de um cidadão abstrato e racional como fundamento de seu projeto de sociedade, um projeto universalista. O romantismo, por outro lado, reivindicava a necessidade de localizar estes indivíduos no contexto de suas comunidades, de suas nações, da história de suas nações. O romantismo foi sem dúvida um fermento importante na formação de uma tradição historicista dentro das ciências sociais. O seu cosmopolitanismo, como vimos na citação acima, dedicando grande atenção às diferenças culturais e a história dos povos, constitui elo entre o historicismo e o romantismo.

Mas esses são também elementos que ligam o romantismo a uma tradição interpretativa nas ciências sociais. Toda a tradição interpretativa de Weber, Simmel, Dilthey seriam impensáveis sem a confluência do historicismo, romantismo e da hermenêutica. A procura dos elementos que configuram o espírito de um povo, ou de uma época, é romântico, antes que seja apropriado por Hegel, ou pela hermenêutica de Schleiermacher ou Dilthey. A busca de uma compreensão emocional do passado, um certo culturalismo, também o são - assim como a ênfase analítica em um sujeito localizado espacial e temporalmente.

E depois eu reviso e amplio isso.

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Jonatas Ferreira


Texto extraído de: http://quecazzo.blogspot.com/2007/09/o-romantismo-e-as-cincias-sociais.html

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

"O antropólogo é um especialista em generalidades"

Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1991.



Leia na íntegra a entrevista realizada por Flávio de Almeida com Eduardo Viveiros de Castro, publicada no Boletim Informativo da UFMG (Nº 1483 - Ano 31 - 12.5.2005):


Convidado para ocupar a cátedra de Humanidades do IEAT, o professor Eduardo Viveiros de Castro diz, nesta entrevista ao BOLETIM, que a Antropologia é uma atividade essencialmente transdisciplinar, porque trabalha com "sociedades generalizadas, onde a prática social e cognitiva não se compartimentaliza em domínios de autoridade, atividade ou saber".

Viveiros discute a distinção entre o pensamento científico, associado à sociedade ocidental, e o selvagem, relacionado aos povos indígenas. "O pensamento ocidental é apenas uma entre outras técnicas de domesticação do pensamento selvagem, ainda que seja a mais poderosa e de efeitos empíricos mais espetaculares".


Viveiros de Castro: só há pensamento selvagem
Foto: Divulgação


O senhor foi convidado a estrear uma cátedra na UFMG destinada aos estudos transdisciplinares. Como a questão da transdisciplinaridade está presente em suas pesquisas?

A Antropologia é uma prática essencialmente transdisciplinar, pois seu objeto típico é aquilo que Marcel Mauss chamava de "fatos sociais totais", complexos multidimensionais de ações, crenças e instituições que são, ao mesmo tempo, econômicos, psicológicos, políticos, sociais, estéticos, tecnológicos e assim por diante. Os antropólogos, sobretudo os que fazem pesquisas de campo de longa duração em sociedades pequenas, como as atuais sociedades indígenas no Brasil, são "obrigados", por assim dizer, a levar em conta todas as dimensões da vida humana nestas sociedades: da ecologia à cosmologia, das técnicas de caça à arte verbal, da biologia humana à teoria política. O antropólogo não deixa de ser um especialista em generalidades, na medida em que sua especialidade, por excelência, são sociedades generalizadas, onde a prática social e cognitiva não se compartimentaliza em domínios de autoridade, atividade ou saber.

Sempre houve uma oposição entre o "pensamento indígena" ou "selvagem" e a chamada sociedade civilizada. Como o senhor trabalha essa oposição? Essas duas instâncias do saber são assim tão antagônicas ou é possível, em algum momento, convergi-las?

Em primeiro lugar, o "pensamento (em estado) selvagem", nos termos em que a expressão foi cunhada e usada por Lévi-Strauss, está presente exatamente do mesmo modo nas sociedades indígenas e nas sociedades ditas civilizadas. É uma dimensão de todo pensamento humano, apenas distintamente "administrado", digamos assim, em diferentes regimes sociopolíticos. No caso do ocidente moderno, por exemplo, Lévi-Strauss argumenta que o pensamento selvagem "oficial" está principalmente confinado ao domínio da arte. Ao contrário, nos mundos indígenas americanos, como em tantos outros mundos humanos do planeta, esse estilo cognitivo e conceitual subjaz a todas _ ou a quase todas _ dimensões da prática humana.

Em segundo lugar, é preciso levar em conta que, em certo sentido, só há pensamento selvagem: o pensamento técnico-científico é uma transformação ou diferenciação específica do pensamento humano genérico, que é sempre "selvagem". Não pode haver antagonismo entre espécie e gênero. Em terceiro lugar, todo pensamento humano culturalmente encarnado, na medida em que se apresenta como fruto de uma história, é resultado de tecnologias cognitivas e outras de "domesticação". O pensamento tecno-científico ocidental é, no meu entender, apenas uma entre outras técnicas de domesticação do pensamento selvagem, ainda que seja a mais poderosa e de efeitos empíricos mais espetaculares.

Existem na sociedade moderna espaços para a expressão e/ou tradução do pensamento indígena?

Existem. Mas primeiro é preciso que os brasileiros não-índios comecem a reconhecer integralmente a existência dos índios. Este é um país indígena, com centenas de línguas nativas faladas em seu território, com uma porção enorme de sua população com raízes étnico-culturais diretamente indígenas. A impressão que tenho é que as pessoas sabem muito mais os nomes dos atores de Hollywood, ou das bandas de rock, que das mais de 200 sociedades indígenas que compartilham o território conosco.

Nada contra as bandas de rock. Mas é preciso que a cultura brasileira assuma, em todas as suas conseqüências, que as culturas indígenas são das partes mais ricas e originais de qualquer herança cultural que o Brasil pode legar ao patrimônio da humanidade. A arte e a filosofia praticadas no país ainda precisam saber ouvir e falar com esse pensamento não-europeu que nos envolve no Brasil.

Há no Brasil _ ainda que de forma precária _ um processo de incorporação dos povos indígenas à sociedade moderna. Como essa incorporação pode se concretizar em termos não-predatórios e de respeito às particularidades da cultura indígena?

A difusão do conhecimento disponível sobre os povos indígenas é a primeira e mais urgente medida. Não se respeita o que não se conhece: ou se o teme, ou se o despreza. Respeito é outra coisa.

Algumas universidades brasileiras _ incluindo a UFMG _ estudam a implantação de licenciaturas e cursos voltados para os povos indígenas? Como o senhor vê essa tendência? Este seria um caminho para a inclusão do índio e para o resgate e preservação de sua cultura?

Vejo esse movimento com simpatia, como vejo com simpatia todas as tentativas de ação afirmativa que procuram reparar ou compensar, na medida do possível, injustiças e iniqüidades históricas. Mas é preciso cuidar para que a articulação entre a universidade e os índios não seja usada para incluir os índios e excluir suas culturas.



Extraído de: http://www.ufmg.br/boletim/bol1483/quinta.shtml

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Sempre juntos


Inspirando, expirando, nós estamos sempre juntos.




Postagem extraída de: http://paraserzen.blogspirit.com/espaco_silencio_silence_room/

sábado, 7 de fevereiro de 2009

Viveiros de Castro fala sobre Lévi-Strauss

Entrevista com o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro publicada na Folha de S. Paulo em 25/11/2008.
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u471165.shtml




Leia entrevista com Eduardo Viveiros de Castro sobre Lévi-Strauss


CAIO LIUDVIK
colaboração para a Folha de S.Paulo



Um dos principais antropólogos brasileiros, Eduardo Viveiros de Castro se notabilizou também pela retomada criativa, em livros como "A Inconstância da Alma Selvagem" (ed. Cosac Naify), dos métodos e do projeto teórico de Claude Lévi-Strauss.
E tal dívida intelectual fica patente pelo entusiasmo com que, na entrevista a seguir, saúda o centenário do pai da antropologia estrutural. Professor no Museu Nacional (RJ), Viveiros de Castro também comenta o percurso de Lévi-Strauss, sua recepção pela antropologia brasileira e sua atualidade como paradigma científico e forma de compreensão crítica dos impasses do mundo global.

Folha - Como sintetizaria a importância de Lévi-Strauss para a antropologia e o pensamento ocidentais?

Eduardo Viveiros de Castro - Lévi-Strauss reinventou a antropologia, ao desmontar os fundamentos metafísicos do colonialismo ocidental, e ao mesmo tempo revolucionou a filosofia, ao abrir um dos principais caminhos do século [20] para que outros pudessem desmontar os fundamentos colonialistas da metafísica ocidental.

Quais de suas obras o sr. destacaria? Por quê?

Viveiros de Castro - Todas. "As Estruturas Elementares do Parentesco" (1949) é um dos grandes clássicos do pensamento sociológico, um livro de mesma estatura que "Economia e Sociedade", de Max Weber, ou que "As Formas Elementares da Vida Religiosa", de Durkheim.

"Tristes Trópicos" (1955) suscitou uma modificação dramática na sensibilidade européia em relação ao lugar da civilização ocidental na história humana.

"O Pensamento Selvagem" (1962) colocou os mundos intelectuais que estavam fora da órbita das chamadas "grandes tradições" (as culturas estatais, antigas ou modernas) ao alcance do horizonte filosófico euro-americano.

Isso tudo dito, penso, porém, que os estudos mais tardios sobre as mitologias ameríndias, a saber, a tetralogia "Mitológicas" (1964-71) e as três monografias posteriores ("A Via das Máscaras", 1979, "A Oleira Ciumenta", 1985, e "História de Lince", 1991) são o ponto alto da trajetória intelectual de Lévi-Strauss.

Com esses livros, Lévi-Strauss tirou o pensamento ameríndio do gueto em que jazia desde o século 16 e lhe deu carta de cidadania para ingressar com a cabeça erguida no futuro intelectual da espécie.

A partir das "Mitológicas", a obra de Lévi-Strauss se torna o momento em que o pensamento ameríndio faz seu lance de dados, ultrapassando seu próprio "contexto" cultural e se mostrando capaz de dar a pensar a outrem, isto é, a todo aquele que, persa ou francês, se disponha a pensar --sem mais.

Meu livro favorito de Lévi-Strauss são dois: "As Origens dos Modos à Mesa", o terceiro volume das "Mitológicas", maravilhosamente bem pensado, e "História de Lince", livro curto e grandioso, sombrio e genial, onde se acha exposta a teoria indígena da "descoberta" da América pelos europeus.

Folha - Em que circunstâncias o sr. entrou em contato pela primeira vez com a obra lévi-straussiana? Que impacto esse "encontro" teve para o seu próprio modo de conceber e praticar a antropologia? Poderia exemplificar com alguma de suas obras?

Viveiros de Castro - Os dois primeiros livros de antropologia que li foram "As Estruturas Elementares" e "O Cru e o Cozido", em 1970-71, em cursos que [o crítico] Luiz Costa Lima dava na PUC-RJ na época.

Note-se que, se foram os patronos da USP que trouxeram Lévi-Strauss ao Brasil nos anos 1930, não foi a USP quem trouxe o estruturalismo para essas plagas, a partir do final dos anos 1960. A antropologia estrutural custou um bocado a pegar no ambiente paulistano, por razões muito características, que não cabe adentrar aqui. A exceção que confirma a regra, para o caso de São Paulo, foi o grande Bento Prado Jr., que sempre esteve um passo ou dois à frente de seus congêneres.

A experiência de leitura de "O Cru e o Cozido" (volume 1 das "Mitológicas"), em particular, foi decisiva para mim.

Mergulhado como me achava, aos vinte e bem poucos anos, na efervescência cultural da época, a época da tropicália e da antropofagia (uma teoria política da bricolagem cultural), dos experimentos radicais da arte conceitual brasileira, da ascese barroca da poesia concreta, da querela do formalismo versus conteudismo em arte, do nacional-popular, das raízes, e tendo tomado fervorosamente o partido tropical-concreto, a leitura daquela série de mitos picarescos analisados por Lévi-Strauss, pornográficos às vezes, surrealistas sempre, tropicalistas literalmente, mitos tratados de modo impavidamente algébrico em "O Cru e o Cozido", me ofereceu à imaginação esse objeto perfeito: uma matemática rabelaisiana. Lévi-Strauss é a síntese, muito gálica, de Rabelais e Descartes.




Folha - Hoje é possível considerar a antropologia estrutural, em algum sentido, ultrapassada?

Viveiros de Castro - Essa questão faria mais sentido se aplicada à coleção de verão de 2007 de algum costureiro ou a alguma droga ou ritmo da moda nas discotecas (ainda se chamam assim?) de Londres, Mikonos ou Recife.

Mas, se é para a respondermos: bem, sim, a antropologia estrutural está, em alguns sentidos, ultrapassada, como a filosofia de Kant está em alguns sentidos ultrapassada, ou a poesia de Dante.

Mas, como sabemos, isso não impede que ninguém se possa chamar filósofo se não leu e meditou profundamente sobre Kant, nem poeta se não leu nem se maravilhou com Dante.

Em outros sentidos, a antropologia estrutural nem sequer começou a ser explorada em toda a sua complexidade.


O estruturalismo está muito longe de ter tido todas as suas potencialidades analíticas esgotadas, e a fase das leituras brutalmente simplificadoras da obra lévi-straussiana --simplificação dialeticamente necessária, sem dúvida, para o prodigioso florescimento de novos temas e problemas na antropologia dos últimos 30 anos (e para a ressurreição de alguns temas bem velhos; já ia dizer, ultrapassados) --aproxima-se de seu fim.

Após a recauchutagem do evolucionismo pela psicoantropologia cognitiva, essa ciência perpetuamente promissora; após a ressurgência do difusionismo com a sociologia crítica da "invenção da tradição"; depois da volta do funcionalismo (mas ele alguma vez foi mesmo embora?) com a economia política da globalização; bem, talvez tenha chegado a hora de desesquecer e recomplicar --como dizia Leach, de "repensar"-- o estruturalismo.

Folha - Em "As Idéias de Lévi-Strauss" (ed. Cultrix), Edmund Leach mostra que a antropologia anglo-americana é herdeira de Malinowski na ênfase em aspectos como observação participante, menos generalizações e foco nas diferenças --mais do que nas semelhanças-- entre as culturas. E por isso tais antropólogos tenderiam a criticar o viés de Lévi-Strauss, que seria mais comparável ao de Frazer: erudição monumental, mas pouco trabalho de campo e uma vontade de elucidar os traços universais da "mente humana", negligenciando as particularidades culturais. Como vê tais críticas?

Viveiros de Castro - Leach era um piadista, um caso curioso de enfant terrible vitalício da antropologia britânica. Pois suas críticas a Lévi-Strauss devem ser lidas tendo-se em mente que Leach foi justamente o principal difusor do estruturalismo nas terras malinowskianas da antropologia britânica.

(A antropologia norte-americana tem pouco a ver com Malinowski: não misturemos as estações).
Foi aliás graças ao ensino de Leach que, hoje, se pode dizer que o verdadeiro espirito do estruturalismo está mais vivo na antropologia britânica, graças à liderança intelectual de uma ex-estudante de Leach em Cambridge, a antropóloga Marilyn Strathern (o maior nome surgido na disciplina desde Lévi-Strauss), do que na França, onde o pensamento lévi-straussiano foi submetido, por alguns antropólogos eminentes no plano local, a uma empresa sistemática de sabotagem intelectual.

Quanto a isso de erudição monumental (não consigo imaginar essa expressão como significando uma crítica) versus particularidades culturais --tal coisa não existe.

A distinção entre antropologias francesa e britânica não se reduz a --nem sequer passa por-- um contraste entre generalizações e busca de semelhanças versus estudos monográficos particularizantes.

Aliás, nada mais particularizante e minuciosamente etnográfico que a etnologia francesa de hoje. E Lévi-Strauss nunca se interessou pelas semelhanças, mas pelas diferenças. Ou melhor, pelos sistemas formados pelas diferenças entre as diversas culturas particulares.

A oposição entre universal e particular é uma roubada epistemológica. Isso não existe.

Folha - Outro grande nome da antropologia contemporânea, Clifford Geertz, teceu críticas duras a "Tristes Trópicos", dizendo tratar-se de um livro a ser lido sobretudo como ficção, literatura, mais do que como etnologia. O sr. concorda? Como o sr. avalia essa obra de Lévi-Strauss?

Viveiros de Castro - As críticas de Geertz (aliás, já morto há algum tempo) não são tão recentes assim. As primeiras delas datam do começo dos anos 1970, se não me falha a memória. De qualquer modo, elas são irrelevantes.

Geertz se distinguiu por criticar logo os dois estilistas máximos, no sentido literário tanto como conceitual, que a antropologia jamais conheceu: o britânico Evans-Pritchard e o francês Lévi-Strauss.

Parece coisa de inveja da excelência alheia.

"Tristes Trópicos" não é um livro de ficção. É um livro que redefiniu as fronteiras e as funções intelectuais da ficção e da etnologia. Eu troco a obra inteira de Geertz --que não é nada má, diga-se de passagem-- por um único capítulo de "Tristes Trópicos".

Folha - Em que medida as fortes denúncias de Lévi-Strauss contra o etnocentrismo do Ocidente ajudam hoje a pensar os rumos da civilização globalizada?

Viveiros de Castro - As denúncias de Lévi-Strauss simplesmente anteciparam o que hoje está cada vez mais evidente: que a espécie entrou em um apertadíssimo beco sem saída.

E que, se alguma esperança há, esta reside em nossa capacidade de prestar a mais humilde, séria e solícita das atenções à tradição intelectual dos povos que não tiveram a pretensão inacreditavelmente estúpida e arrogante de se colocar como maiores do que o mundo em que vivem.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

O Caminho do Xamã


Por: MICHAEL HARNER


(*) Extraído de http://holosgaia.blogspot.com/


Quando o breve crepúsculo equatoriano foi substituído pela escuridão, Tomás pôs um quarto do líquido numa cabaça e disse-me que o bebesse. Todos os índios observavam. Senti-me como Sócrates entre os compatriotas atenienses, aceitando a cicuta — pois me ocorrera que um dos nomes alternativos que o povo do Amazonas peruano dava à ayahuasca era "a pequena morte". Bebi a poção rapidamente. Tinha um sabor estranho, ligeiramente amargo. Então, esperei que Tomás também bebesse, mas ele disse que afinal resolvera não participar.

Amarraram-me na plataforma de bambu, sob o grande teto feito de colmo da casa comunal. A aldeia estava silenciosa, exceto pelo cricrilar dos grilos e os guinchos do macaco ruivo, nas profundezas da selva.

Enquanto olhava para cima, na escuridão, tênues linhas de luz apareceram. Tornaram-se mais nítidas, mais intrincadas e explodiram em cores brilhantes. De muito longe vieram sons, como os de uma cascata, e foram se fazendo cada vez mais fortes, até encherem meus ouvidos.

Minutos antes eu me sentira desapontado, certo de que a ayahuasca não ia ter efeito sobre mim. Agora, o som da água em movimento inundava meu cérebro. Meu maxilar começou a ficar entorpecido, e aquele entorpecimento ia subindo para as têmporas.

Sobre a minha cabeça, as linhas indistintas formavam um dossel que parecia um mosaico geométrico de vidro pintado. A brilhante tonalidade violeta formava um teto que se expandia sem cessar sobre mim. Dentro daquela caverna celestial, ouvi o som da água aumentar e pude ver figuras nebulosas, que faziam movimentos espectrais. Quando meus olhos se ajustaram ao escuro, a cena movimentada reduziu-se a algo que se assemelhava a um imenso parque de diversões, a uma orgia sobrenatural de demônios. Ao centro, presidindo as atividades, e olhando diretamente para mim, havia uma gigantesca cabeça de crocodilo mostrando os dentes, de cujas mandíbulas cavernosas jorrava uma enxurrada torrencial de água. Lentamente, a água foi subindo, até que a cena transformou-se em simples dualidade de céu azul sobre o mar. Todas as criaturas se haviam desvanecido.

Então, da posição onde eu estava, próximo à superfície da água, comecei a ver dois barcos estranhos, vagando de cá para lá, flutuando no ar em minha direção e aproximando-se cada vez mais. Lentamente, juntaram-se, formando uma só embarcação, com imensa cabeça de dragão na proa, não muito diferente de um barco viking. No meio do navio erguia-se uma vela quadrada. Aos poucos, enquanto o barco serenamente flutuava de cá para lá sobre mim, ouvi um som rítmico sibilante e vi que se tratava de uma galera gigantesca, com centenas de remos, movendo-se em cadência com o som.

Tornei-me consciente, então, do mais belo cântico que tinha ouvido em minha vida, em alto som, e etéreo, emanado de miríades de vozes a bordo da galera. Olhando com mais atenção para o convés, pude distinguir grande número de seres com cabeça de gaio azul e corpo de homem, bastante parecidos com os deuses do antigo Egito, com cabeça de pássaro, que eram pintados nas sepulturas. Ao mesmo tempo, uma essência de energia, advinda do navio, começou a flutuar em meu peito. Embora eu pensasse que era ateu, fiquei inteiramente certo de que estava morrendo, e de que aquelas cabeças de pássaro tinham vindo buscar a minha alma para levá-la ao barco. Enquanto o fluxo da alma continuava a sair do meu peito, percebi que as extremidades do meu corpo iam fazendo-se entorpecidas.

Começando pelos braços e pelas pernas, vagarosamente, tive a impressão de meu corpo estar se tornando de concreto. Eu não podia me mover, nem falar. Aos poucos, esse entorpecimento fechou-se sobre o meu peito, na direção do coração, e tentei usar a boca para pedir ajuda, para pedir um antídoto aos índios. Por mais que tentasse, entretanto, não conseguia dominar a minha força o bastante para pronunciar uma palavra. Simultaneamente, meu abdômen parecia se tornar de pedra, e tive de fazer um tremendo esforço para manter meu coração batendo.

Comecei a chamar meu coração de amigo, meu mais querido amigo, a falar com ele, a encorajá-lo a bater, com toda a força que ainda me restava.

Fiz-me consciente do meu cérebro. Senti — fisicamente — que ele tinha sido dividido em quatro níveis distintos. Na superfície superior estava o observador, o comandante, consciente da condição do meu corpo e responsável pela tentativa de manter o coração funcionando. Percebi, mas apenas como espectador, a visão que emanava do que pareciam ser as partes mais profundas do cérebro. Imediatamente abaixo do nível mais alto, senti uma camada entorpecida, que parecia ter sido posta fora de ação pela droga, e ali não estava. O nível seguinte era a fonte de minhas visões, inclusive a do barco da alma.

Agora, eu me sentia virtualmente certo de que estava para morrer. Enquanto tentava avaliar meu destino, uma parte ainda Interior do meu cérebro começou a transmitir mais visões e in-formações — "disseram-me" que esse novo material me estava sendo apresentado porque eu ia morrer e, portanto, estava "pronto" para receber aquelas revelações. Informaram-me que se tratava de segredos reservados aos agonizantes e aos mortos. Apenas vagamente, pude perceber os que me transmitiam esses pensamentos: répteis gigantes, repousando apaticamente na mais ínfima região da parte de trás do meu cérebro, no ponto onde ele encontra a parte superior da coluna espinhal. Eu só podia vê-los de forma nebulosa e, assim, pareciam-me profundezas sombrias, tenebrosas.

Depois, eles projetaram uma cena diante de mim. Primeiro, mostraram-me o planeta Terra tal como era há uma eternidade atrás, antes que nele houvesse vida. Vi o oceano, a terra nua e o brilhante céu azul. Então, flocos pretos caíram do céu, às centenas, e pousaram diante de mim, na paisagem nua. Pude ver que esses "flocos" eram, na verdade, grandes e brilhantes criaturas negras, com reforçadas asas que assemelhavam-se ás dos pterodátilos e imensos corpos como o da baleia. Suas cabeças não eram visíveis a mim. Tombaram pesadamente, mais do que exaustas pela viagem feita, que durara épocas infinitas, Explicaram-me, numa espécie de linguagem mental, que estavam fugindo de alguma coisa, no espaço. Tinham vindo ao planeta Terra a fim de escapar desse inimigo.

Essas criaturas mostraram-me, então, como haviam criado a vida sobre o planeta, com o intuito de se ocultarem sob diversas formas e assim disfarçar sua presença. Diante de mim, a magnificente criação e a especificação das plantas e dos animais — centenas de anos de atividade — foram feitas em tal escala, e com tamanha intensidade, que me é impossível descrever. Aprendi que essas criaturas semelhantes a dragões estavam, assim, dentro de todas as formas de vida, inclusive no homem.* Eram elas os verdadeiros senhores da humanidade e de todo o planeta, foi o que me disseram. Nós, humanos, não passávamos de seus receptáculos e servos. Por isso é que podiam falar comigo de dentro de mim.

Surgindo a partir das profundezas da minha mente, essas revelações alternavam-se com as visões da galera flutuante que quase terminara por levar minha alma para bordo. O barco, com sua tripulação de cabeças de gaio azul no convés, ia aos poucos se afastando, puxando minha força de vida com ele, enquanto seguia em direção a um grande fiorde, flanqueado por algumas colinas erodidas e áridas. Eu sabia que tinha apenas um momento para viver e, estranhamente, não sentia medo daquele povo de cabeças de pássaro, não me importava ceder-lhe a minha alma, se a pudesse manter. Receava, entretanto, que de alguma forma a minha alma não pudesse se manter no plano horizontal do fiorde, mas, por meio de processos desconhecidos, embora sentidos e temidos, fosse capturada, ou recapturada pelos alienígenas das profundezas, com seu aspecto de dragões.

Subitamente senti, de maneira clara, a minha condição de homem, o contraste entre a minha espécie e os antigos répteis ancestrais. Desatei a lutar contra a volta dos antigos, que começavam a parecer cada vez mais alienígenas, e que seriam, possivelmente, perversos. Voltei-me para o auxílio humano.

Com um último esforço, que não pode sequer ser imaginado, mal pude balbuciar uma palavra para os índios: "Remédio!"; vi que corriam para preparar o antídoto e senti que não conseguiriam prepará-lo a tempo. Eu precisava de um guardião que pudesse derrotar os dragões e, desesperadamente, procurei evocar um ser poderoso para proteger-me contra aqueles répteis alienígenas. Um deles apareceu diante de mim e, nesse momento, os índios abriram à força minha boca e nela derramaram o antídoto. Aos poucos, os dragões desapareceram, recuando para as profundezas. O barco das almas e o fiorde já não existiam. Eu, aliviado, relaxei.

O antídoto melhorou radicalmente o meu estado, mas não evitou que viessem novas visões, de natureza mais superficial. Com estas podíamos lidar, eram agradáveis. Fiz viagens fabulosas, á vontade, através de regiões distantes, mesmo para fora da Galáxia, criei arquiteturas incríveis, usei demônios de sorrisos sardônicos para realizar as minhas fantasias. Muitas vezes, dei comigo rindo alto, pelas incongruências das minhas aventuras.

Finalmente, adormeci.

Raios de sol infiltravam-se pelas gretas do telhado de colmo quando acordei. Estava ainda deitado sobre a plataforma de bambu e ouvia os ruídos normais da manhã em tomo de mim: os índios conversando, os bebês chorando e um galo cantando. Descobri, com surpresa, que me sentia repousado e tranqüilo, Enquanto ali ficava, olhando para o padrão lindamente tecido do forro de colmo, as lembranças da noite anterior passavam pela minha mente. Detive-me momentaneamente entre essas lembranças para apanhar meu gravador que estava na bolsa de pertences do meu trabalho. Enquanto remexia na bolsa, vários dos índios vieram cumprimentar-me, sorrindo. Uma mulher idosa, esposa de Tomás, deu-me uma tigela com peixe e molho de lanchagem, que tinham delicioso sabor. Então, retomei à plataforma, ansioso por colocar minhas experiências noturnas no gravador antes que me esquecesse de alguma coisa.

O trabalho de recordar foi fácil, exceto por um trecho do transe de que não podia me lembrar. Ficou em branco, como se a fita não tivesse sido usada. Lutei durante horas para lembrar o que acontecera durante aquela parte da experiência e, virtualmente, trouxe-a à força de volta à minha consciência. O material recalcitrante era a comunicação feita pelas criaturas em forma de dragões, incluindo a revelação do papel que tinham tido na evolução da vida deste planeta e o domínio inato que exerciam sobre a matéria viva, inclusive sobre o homem. Fiquei bastante animado ao descobrir de novo esse material, e não pude deixar de sentir a sensação de que eles não haviam imaginado que eu pudesse trazê-lo de volta das regiões mais recônditas da mente.

Tive até mesmo uma sensação muito peculiar de medo em relação à minha segurança, porque agora possuía um segredo que, segundo as criaturas, estava reservado aos mortos, aos agonizantes. Imediatamente, resolvi repartir essa parte do meu conhecimento com os outros, para que o "segredo" não ficasse somente comigo e minha vida não fosse ameaçada. Coloquei meu motor de popa numa canoa feita de um só tronco e parti para uma missão evangélica americana que ficava nas proximidades.

O casal da missão, Bob e Millie, era objeto de maior estima que os missionários comuns enviados pelos Estados Unidos: eram hospitaleiros, dotados de senso de humor e compassivos.[1] Contei-lhes minha história. Quando descrevi o réptil de cuja boca esguichava água, marido e mulher se entreolharam, foram buscar a Bíblia, e leram para mim o seguinte trecho do Capítulo 12 no Livro do Apocalipse:

"E a serpente lançou pela boca um rio de água..."

Explicaram-me que a palavra "serpente", na Bíblia, era sinônimo das palavras "dragão" e "Satã". Continuei a minha narrativa. Quando cheguei ao trecho sobre as criaturas com aspecto de dragão a fugir de um inimigo que estava além da Terra e caindo aqui para escapar aos seus perseguidores, Bob e Millie ficaram impressionados e, de novo, leram para mim algo mais, da mesma passagem do Livro do Apocalipse:

"E houve uma batalha no céu: Miguel e seus anjos lutaram contra o dragão. O dragão e seus anjos combateram, mas não conseguiram vencer, nem se encontrou mais seu lugar no céu. E o grande dragão, a antiga serpente, chamado Diabo e Satanás, o sedutor do mundo inteiro, foi expulso; foi atirado à Terra, e seus anjos com ele."

Ouvi com surpresa e assombro. Os missionários, por sua vez, pareciam tomados de respeitoso temor diante do fato de um antropólogo ateu aparentemente poder, por haver bebido um líquido de "feiticeiros", receber algo do mesmo material sagrado do Livro do Apocalipse. Quando terminei minha narrativa, senti-me aliviado por ter repartido meu novo conhecimento, mas também estava exausto. Caí adormecido no leito dos missionários, deixando-os a prosseguir com a conversa sobre aquela experiência.

Ao entardecer, quando voltei à aldeia em minha canoa, minha cabeça começou a latejar no ritmo do ruído do motor de popa; pensei que estava enlouquecendo; tive de tapar os ouvidos com a mão para evitar essa sensação. Dormi bem, mas no dia seguinte notei um entorpecimento ou pressão na cabeça.

Agora, tinha muita vontade de pedir a opinião profissional do índio que mais entendia de assuntos sobrenaturais, um cego que fizera muitas viagens ao mundo dos espíritos com a ajuda da ayahuasca. Parecia-me bastante apropriado que um cego pudesse ser o meu guia no mundo das trevas.

Fui à cabana dele, levando meu caderno de anotações, e descrevi as visões que tivera, segmento por segmento. Primeiro, falei-lhe apenas das luzes brilhantes; então, quando cheguei às criaturas com aspecto de dragões, omiti o trecho em que chegaram do espaço e disse apenas: — Havia animais negros, gigantescos, algo assim como enormes morcegos, maiores que esta casa, e eles disseram que eram os verdadeiros senhores do mundo.

— Não havia a palavra dragão para os Conibo, assim "morcegos gigantescos" era o que de mais parecido havia para descrever o que eu tinha visto.

O índio fixou em mim seus olhos sem luz e disse, careteando um sorriso:
— Ah! Eles estão sempre dizendo isso. Mas são apenas senhores das Trevas Exteriores.

Fez um movimento despreocupado com a mão, rumo ao céu. Senti um arrepio percorrer a parte inferior da minha espinha, porque eu ainda não lhe tinha dito que em meu transe eu os tinha visto chegar do espaço.

Fiquei estupefato. O que eu havia experimentado já era familiar para aquele xamã cego e descalço, conhecido por ele em suas próprias explorações do mesmo mundo oculto no qual eu me aventurara. A partir desse momento, decidi aprender tudo quanto pudesse sobre xamanismo.
E houve algo mais que me encorajou em minha nova indagação. Depois que contei toda a minha experiência, ele me disse que não conhecia ninguém que tivesse encontrado e aprendido tanto em sua primeira viagem com a ayahuasca.

— Sem dúvida, o senhor vai ser um mestre xamã — disse ele.


* Em retrospecto, seria possível dizer que era quase como o DNA, apesar de que, naquele tempo, 1961, eu nada sabia sobre o DNA (ácido desoxirribonucléico).


[1] Seus nomes foram mudados.



Do livro O Caminho do Xamã, de Michael Harner



Extraído de: http://metamorficus.blogspot.com/2008/01/o-caminho-do-xam.html

Buda Cristão


Um dos monges do mestre Gasan visitou a universidade em Tokyo. Quando ele retornou, ele perguntou ao mestre se ele jamais tinha lido a Bíblia Cristã.

"Não," Gasan replicou, "Por favor leia algo dela para mim."

O monge abriu a Bíblia no Sermão da Montanha em São Mateus, e começou a ler. Após a leitura das palavras de Cristo sobre os lírios no campo, ele parou.

Mestre Gasan ficou em silêncio por muito tempo.

"Sim," ele finalmente disse, "Quem quer que proferiu estas palavras é um ser iluminado. O que você leu para mim é a essência de tudo o que eu tenho estado tentando ensinar a vocês aqui."



Texto extraído de: http://www.nossacasa.net/shunya/default.asp?menu=108#011