quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

beats: da ecologia ao budismo

Gary Snyder, Peter Orlowsky, Allen Ginsberg


Entrevista com Allen Ginsberg feita por Rodrigo Garcia Lopes

"Quando o entrevistei em 1990, no Arizona, para meu livro Vozes e Visões, perguntei quais teriam sido as principais contribuições da geração beat. Ele respondeu: 'Cada um de nós enfatiza um ponto diferente. Gary Snyder chegou à conclusão de que foi a proclamação da consciência ecológica. (…) Minha impressão é a de que contribuímos para um encontro direto entre a mente oriental e a ocidental. A introdução da meditação na poesia norte-americana também foi uma contribuição importante. Embora os transcendentalistas, como Thoreau e Emerson, também tivessem interesse pelas culturas, filosofias e literatura orientais, não tinham um contato direto com mestres dessas culturas como nós tivemos. Whalen e Snyder ajudaram a estabelecer a prática budista na América. O movimento beat nos despertou para uma mente mais espontânea, para uma sensibilidade maior diante das coisas da natureza, das outras culturas, da nossa individua- lidade. (…) Outra coisa foi a aproximação com a música e a reconciliação entre as culturas branca e negra: os brancos, no caso, reconhecendo o valor sagrado e a riqueza da cultura negra'. "

(Trecho do artigo O uivo vivo de Allen Ginsberg)

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Rituais




Os moradores ribeirinhos acreditavam que as águas do Banganga podiam lavar o mau carma, tanto da vida presente quanto das vidas pregressas e, assim, com freqüência, mergulhavam nele, mesmo a temperaturas congelantes. Um dia, enquanto estava sentado ao longo da barranca junto com seu servo, Sidarta perguntou: “Chana, você crê que as águas deste rio podem levar embora o carma negativo?”

“Deve ser assim, Alteza, pois, de outro modo, por que tantas pessoas viriam aqui para se lavarem?”

Sidarta sorriu. “Bem, então, o camarão, o peixe e as ostras que passam suas vidas inteiras submersos nestas águas devem ser as criaturas mais puras e virtuosas de todas!”



Thich Nhat Hanh
, Velho Caminho, Nuvens Brancas – Seguindo as Pegadas do Buda (Editora Bodigaya, Porto Alegre, 2007, tradução do original de 1991)


Extraído do blog para ser zen

sábado, 27 de novembro de 2010

Footnote to Howl


Holy! Holy! Holy! Holy! Holy! Holy! Holy! Holy! Holy!
Holy! Holy! Holy! Holy! Holy! Holy!
The world is holy! The soul is holy! The skin is holy!
The nose is holy! The tongue and cock and hand
and asshole holy!
Everything is holy! everybody's holy! everywhere is
holy! everyday is in eternity! Everyman's an
angel!
The bum's as holy as the seraphim! the madman is
holy as you my soul are holy!
The typewriter is holy the poem is holy the voice is
holy the hearers are holy the ecstasy is holy!
Holy Peter holy Allen holy Solomon holy Lucien holy
Kerouac holy Huncke holy Burroughs holy Cas-
sady holy the unknown buggered and suffering
beggars holy the hideous human angels!
Holy my mother in the insane asylum! Holy the cocks
of the grandfathers of Kansas!
Holy the groaning saxophone! Holy the bop
apocalypse! Holy the jazzbands marijuana
hipsters peace & junk & drums!
Holy the solitudes of skyscrapers and pavements! Holy
the cafeterias filled with the millions! Holy the
mysterious rivers of tears under the streets!
Holy the lone juggernaut! Holy the vast lamb of the
middle class! Holy the crazy shepherds of rebell-
ion! Who digs Los Angeles IS Los Angeles!
Holy New York Holy San Francisco Holy Peoria &
Seattle Holy Paris Holy Tangiers Holy Moscow
Holy Istanbul!
Holy time in eternity holy eternity in time holy the
clocks in space holy the fourth dimension holy
the fifth International holy the Angel in Moloch!
Holy the sea holy the desert holy the railroad holy the
locomotive holy the visions holy the hallucina-
tions holy the miracles holy the eyeball holy the
abyss!
Holy forgiveness! mercy! charity! faith! Holy! Ours!
bodies! suffering! magnanimity!
Holy the supernatural extra brilliant intelligent
kindness of the soul!




Berkeley 1955

(Allen Ginsberg)

domingo, 21 de novembro de 2010

Eu pensava que a terra remendava com o céu



No meu pensamento de antigamente,

Quando eu era menino,

O mundo, eu pensava

Que era que nem tocaia,

A terra remendava com o céu.

O sol,

Eu pensava que eram muitos,

Passando dias e dias.

A noite,

Eu pensava que era que nem fumaça,

Porque quando o sol ia embora,

A noite vinha cobrir o mundo.

O céu,

Eu pensava que era que nem ferro,

Nunca acaba.

A chuva,

Eu pensava que eram alguns bichos grandes,

Esturrando em cima do céu.

O homem,

Eu pensava que só nós mesmos vivíamos,

Só nós mesmos, o povo Kaxinawá.

Um dia, eu vi um branco chegando na nossa casa falando diferente. Mas eu pensava que quando eu fosse na casa dele, ele ia falar em Kaxinawá. Uma dia, eu fui viajar com meu pai, para ver onde estava a terra remendada com o céu. Nós íamos descendo o rio e quando passaram alguns dias perguntei ao meu pai onde estava a terra remendada com o céu. O meu pai me disse que não estava remendada a terra com o céu. Que o mundo é muito grande e não tem fim...


(Noberto Sales Tene Kaxinawá)



Fonte: http://www.bibliotecadafloresta.ac.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=733:poesiasdafloresta&catid=17:notas&Itemid=217

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Não se torne uma colônia





"Enquanto escrevo estas linhas, os trabalhadores franceses lutam para reduzir sua jornada de trabalho de 40 para 35 horas semanais. Estão se esforçando muito para consegui-lo, mas como usarão estas cinco horas? Se usarem-nas como fazem aos sábados à noite, ficando sentados num bar ou diante da televisão, será um terrível desperdício. Todos precisamos de tempo para relaxar e viver, mas como? Geralmente quando temos algum tempo livre, assistimos a qualquer coisa que esteja passando na televisão a fim de evitar "não ter nada para fazer", o que significa ficar em casa sozinhos com nós mesmos. Assistir à televisão pode nos deixar mais cansados, nervosos e desequilibrados, mas raramente observamos esses resultados. O tempo livre que tanto lutamos para conseguir é capturado pelos canais de televisão e pelos produtos dos anunciantes. Terminamos sendo a colônia deles. Precisamos encontrar maneiras de usar nosso precioso tempo para descansar e ser felizes.

Podemos escolher bons programas na televisão para assistir, lugares bonitos para ir, encontros com amigos queridos, livros e discos que nos convêm. E podemos viver de maneira relaxada e satisfeitos com aquilo que escolhemos. Lembre-se de que somos aquilo que escolhemos. Você já esteve numa praia ao raiar do sol, ou no topo de uma montanha ao meio-dia? Você estendeu bem os braços e respirou profundamente, enchendo os pulmões com o ar puro e limpo, com ilimitada imensidão? Você se sentiu como se fosse o céu, o mar ou a montanha? Se você estiver muito longe do mar ou da montanha, você pode sentar-se de pernas cruzadas e respirar suave e profundamente, e o ar, a montanha e todo o universo o penetrarão."


(Thich Nhat Hanh - O Sol Meu Coração, pgs. 47 / 48)

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Criação.



Hakim Bey inicia o capítulo "Vontade de Poder como Desaparecimento", do TAZ, com uma breve interpretação sobre a idéia de desaparecimento social para Foucault e Baudrillard, que vai se desdobrar no resto do capítulo. Quem quiser mais detalhes, pode ler o livro no protópia: TAZ .

O que nos interessa mesmo aqui é a nota de rodapé colocada pelo Hakim Bey ao fim desse parágrafo. Abaixo:

"Talvez isso seja uma grotesca interpretação americana de uma sublime e sutil teoria franco-germânica. Se for, tudo bem: quem foi que disse que a compreensão era necessária para se usar uma idéia?"

sábado, 6 de novembro de 2010

Chanson d'Automne




Les sanglots longs
Des violons
De l’automne
Blessent mon coeur
D’une langueur
Monotone.

Tout suffocant
Et blême, quand
Sonne l’heure,
Je me souviens
Des jours anciens
Et je pleure

Et je m’en vais
Au vent mauvais
Qui m’emporte
Deçà, delà,
Pareil à la
Feuille morte.



(Paul Verlaine)

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Em Paris

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Memórias Sentimentais de Rudá, filho de Oswald



Entrevista feita por Alex Solnik com Rudá de Andrade, publicada em 27 de Outubro de 2008
no site http://www.semcortes.com/?p=11

"Ele, quando eu era pequeno, me mostrava pras mulheres, porque eu era bonitinho, loirinho, pra encantá-las e dormir com elas”

Para nós, seus alunos na Escola de Comunicações e Artes da USP ele era o Rodo Metálico da Rhodia. Teria sido este o nome com que seu pai, Oswald de Andrade, o batizara. E seu irmão teria sido chamado de Rolando Escada Abaixo. Agora, quase 20 anos depois, ele conta, nesta entrevista, que são apenas duas lendas criadas por desafetos de seu pai. Tão gozadores como ele. Aos 74 anos, Rudá chegou à conclusão de que Oswald deixou uma obra “sólida”. Mas a sua maior obra, ainda segundo Rudá, foi ter conseguido gastar toda a imensa fortuna herdada do pai - proprietário de uma vasta fazenda dentro de São Paulo, que ia da rua Augusta até a avenida Sumaré; da avenida Doutor Arnaldo até a avenida Brasil. Gastou em quê? Mulheres, carros, Picassos, champanhe, caviar…


na foto: Pagú, Oswald e Rudá

Rudá, eu queria falar com você sobre o Oswald…(com acento no “o”)
Primeiro reparo: não é Oswald… é Oswald (com acento no “a”). O Antonio Cândido fez um puta dum artigo explicando porque é Oswald. E todo mundo chama Oswald, Oswald… é um americanismo que tem, já virou Oswald porque tem w. Mas se você pegar o primeiro livro da edição da Globo do Antonio Cândido, tem um capítulo só sobre isso, explicando porque é Oswald. Só não tem o “o” mas até eu já pensei em colocar um “o” só pra acabar com esse negócio. Não é Oswald… é Oswald…

Escuta, você nasceu com o nome de Rudá ou com aquele nome estranho que as pessoas falam que eu não sei se é verdade ou lenda…?
É Rudá…

E Rodo Metálico da Rhodia é o que? É uma brincadeira?
Não, é brincadeira…

Até agora eu estava crente que o Oswald te chamou de Rodo Metálico da Rhodia e você mudou para Rudá!
Olha, meu nome é o nome mais estranho que tinha na época: Rudá Poronominare… é meu nome… Rudá Poronominare Galvão de Andrade… Você acha que eu ia procurar uma coisa pior?

Rudá é ótimo… parece nome de guerreiro…
Mas aí tinha aquelas polêmicas do Oswald e tal e um cara, quando eu nasci, não sei quem foi, um jornalista, escreveu mais ou menos assim: Oswald é tão louco que ele não assimilou Rudá… deu o nome no filho de Rodo Metálico, sei lá… mas isso é lenda… saiu num artigo… mas meu nome é Rudá Poronominare Galvão de Andrade, registrado no cartório da Bela Vista, comprovado, tá lá…

Mas Oswald teu pai é parecido com isso que se vê dele, como na minissérie da Globo? O que você lembra dele? Que cenas você tem dele?
Aí tem duas vertentes a tua pergunta. Uma é a minha opinião crítica e a outra sentimental. Então, é complicado. Quando você pergunta do pai, da mãe, do filho é difícil falar. Eu acho que o meu pai… quer dizer, nem meu pai é mais nesse sentido… o Oswald de Andrade é um gênio que fez uma… uma… e continua fazendo, continua mexendo, tá vivo, tá vivo na cultura brasileira… então, ele tinha teorias, romances, trabalhos, isso, aquilo e tal e a talvez a coisa mais importante que ele fez é estimular pessoas que continuam fazendo ele, sabe. Então, a maioria das… eu assino muito autorização de coisas baseadas em Oswald e tal, então, são criações novas, eu acho que ele tá muito vivo por causa disso. O Zé Celso, depois que ele fez aquela maravilha do Rei da Vela e tal, e todo mundo vai um pouco nessa onda, do tropicalismo. Eu acho que, por um lado ele é um autor que tem uma obra sólida, importante, aliás, importantíssima. Foi feito agora um trabalho sobre o pau-brasil, o nível de solidez, de erudição… é impressionante. As pessoas pensam que é brincadeira, não é, não, é muito séria. Mas, o que eu acho legal… eu fiquei tonto… eu fiquei bêbado… com a leitura que eu fiz de um trabalho que vai ser publicado sobre o pau-brasil…é estrutural…é a estrutura da cultura brasileira, sem dúvida nenhuma…

Mas como é que ele era em casa com você?
O que eu acho legal é que isso vai, é como se fosse um esperma espalhado que vai nascendo coisas pra lá, pra cá, de todo lado, de todo jeito, isso como escritor, como autor. Até pouco tempo atrás eu tinha certas dúvidas quanto à solidez da obra dele. Hoje, não tenho mais…mais pelo que eu li sobre ele… eu não sou especialista em Oswald, não entendo a obra dele direito …mas, pelo que eu leio, pelo que eu vejo, acho que ficou um troço sólido e importante.


Quando você nasceu ele tinha quantos anos?
Eu sou de 30, ele é de 90.

Quarentinha?
Quarenta anos.

E como ele era com você? O que ele falava com você? Era engraçado?

Olha, ele gostava muito de comer…

O que ele comia especialmente?
Ah, não. Comidas boas. Ele, por exemplo… tem o mercado municipal de São Paulo. Lá, aquele mercadão. Ele ia lá de madrugada, levava champanhe gelada pra comer ostras! Quando eu falo que ele gostava de comer, não é brincadeira! Ele ia com pessoas, e tal, levava os amigos. Então, a minha experiência com ele… eu descobri as cantinas do Brás, numa época em que isso ainda não era feijão com arroz. Ele me levava no Brás, eu era criança, sei lá quantos anos…é só fazer as contas…tô com 74 anos… digamos que eu tinha dez anos, alguma coisa assim…a aristocracia paulistana e a pequena burguesia não ligava pra isso. Ele… No fundo, esse negócio dele de modernismo entrava nessas coisas, de descobrir coisas. Assim como ele foi procurar Aleijadinho e as coisas de Minas, coisas folclóricas brasileiras e tal… Mario de Andrade também foi, mas com uma metodologia mais acadêmica…

E qual era o conflito entre os dois?
Não sei…

Ele não comentava?
Não. Mesmo depois da briga ele sempre admirou o Mário. Quando o Mario morreu, eu presenciei ele lendo no jornal que o Mario morreu, a gente estava num trem, vindo de Piracicaba, ele chorou, ficou triste… Chorou, não, mas muito abatido, tal, ele sempre teve admiração pelo Mário. É uma briga, assim, que… É que também eram personalidades muito diversas. O Mario era… o Mario era veado, né? E o Oswald era um sacana, né? Mulherengo…É coisa diferente…O Oswald fazia tudo pra comer uma mulher…

No que fazia bem!
Ele, quando eu era pequeno - isso é coisa que me contaram, eu não lembro - mas ele me mostrava, assim, porque eu era bonitinho, loirinho, me mostrava pras mulheres, pra encantar elas e comer. Essas coisas, assim. O Oswald era meio safadão. Eu acho que a obra dele que ficou importante, a vida dele é meio questionável. E a obra dele é inquestionável.

Ele comentava sobre os livros dele com você?
Também, também…

Falava pra você: leia meus livros?
Ele fazia isso com todo mundo. Ele gostava muito de reunir os jovens e fazia leituras das coisas que estava escrevendo. Fazia muito isso. Lia e tal. Mesmo porque, tem que partir do seguinte princípio: desde que ele nasceu até que morreu a obra dele nunca foi aceita e lida. Hoje é que é lida. Nem é lida, é pouco lida.

Naquela época ele não era considerado?
Ninguém lia. Então, ele queria mostrar o que fazia.

Mas eu li em algum lugar que, em 1937, o livro Serafim Ponte Grande estava esgotado.
Também, na época, o que é que foi? Uma tiragem de 1000 exemplares, alguma coisa assim. Esgotado, não; não conseguiu vender. Tava lá na casa dele. Eu pegava uns par de livros dele … Serafim, A Morta, O Rei da Vela… ia vender no sebo pra ir no cinema. Roubava lá… vendia por quilo no sebo. Não dava, não saía…

Quer dizer que ele não era um cara importante?
Não é que não era importante. Ele era conhecido. Ele era em São Paulo uma figura. Famoso porque ele aprontava muito.

O que que ele aprontava?
Em todos os níveis. Casava com uma, casava com outra… foi riquíssimo… foi comunista… fazia isso, fazia aquilo…então, e fazia, e brigava muito… então, ele tinha toda essa coisa assim, mas ele tinha muito prazer em ler as coisas que ele escrevia. Se você perguntar pro Décio Pignatari, pro Augusto de Campos, que eram jovens… ele lia pra eles o que escrevia…e todo mundo que procurava ele recebia e gostava… eu cheguei a ter reuniões com meus amigos e pré-adolescentes entre os quais o Gianotti e… pra discutir besteira, sei lá…pra discutir a existência de Deus…esse tipo de coisa assim… a bíblia…ele queria mostrar que aquilo era uma ficção…mostrava as contradições… ele era muito disponível pra essas coisas…então, é isso.

Mas o que ele aprontava?
Ele não perdia oportunidade de fazer qualquer tipo de… não sei, ele era meio extrovertido, uma pessoa que gostava de… era um pouco exibicionista, não sei… não sei se é essa a palavra exatamente, mas enfim… ele sempre contestava, fazia, em qualquer lugar.

O que você viu ele fazer de diferente?
Não sei, brigar com os estudantes na escadaria do Municipal. Eu ficava até com medo quando era criança… brigar, berrar.. dez, quinze, cinqüenta estudantes contra ele… e ele fazia, gritava…

Você disse que teve uma fase em que ele foi rico?
Foi riquíssimo.

Mas rico de que? Ele tinha o que? Fazenda de café?
Ele não foi só rico, ele foi riquíssimo! Ele foi…ele foi no São Paulo de, sei lá, 1920, por aí, 1910, antes de 20… 12, 15, ele era o maior partido de São Paulo. Porque era um rapaz bonito e dono de… riquíssimo. Meu pai era riquissimo. Ele conseguiu - essa foi a coisa mais fantástica que ele fez, mais que a obra literária - ele conseguiu gastar todo esse dinheiro na vida dele. E morreu na miséria. No fim da vida, até eu emprestei dinheiro pra ele. Paguei lá umas dívidas…Ele era riquíssimo! Aquele negócio de levar Tarsila pra Paris, o maior costureiro e tal… ele era o maior partido de São Paulo, bonito, intelectual, filho único, escritor, jornalista…

Então ele comia todo mundo!
Pois é…

Mas gostava da família ou nem ligava?
Não, não, ele era muito familiar também. Ele era muito galinha com os filhos…

Galinha com os filhos quer dizer o que?
Queria que os filhos ficassem ao lado dele…

Que programas ele fazia com você?
A gente ia, sei lá, em circo, no Piolim, como é que chama? Aquele negócio de boneco… teatro de fantoche… ele me levava em todo lugar. Família… por exemplo… enfim… eu tinha convivência com ele, mas também muito longe, porque tinha aquele negócio de correr da polícia…

Por ser comunista?
É…Então, a minha vida com ele não era permanente, não. Eu vivi também muito separado dele. De vez em quando encontrava e tal.

E de política? O que ele falava do Getúlio? Xingava?
Em relação ao Getúlio eu tenho pessoalmente um trauma muito grande…

Por quê?
Porque minha mãe foi presa, torturada…

Mas por que? Comunista?
Porque era a ditadura do Getúlio. Então, pra mim, Getúlio… eu reconheço que ele tem valores, estadista, começou a fazer uma série de coisas importantes e tal, mas não me escapa os males que ele fez. E depois eu participei desde adolescente de todo o processo político… no fundo, ele estava mancomunado com o fascismo…Eu tive uma participação ativa contra tudo isso.

Ah, claro.Tua mãe é a Patricia Galvão, a Pagu. A segunda mulher do Oswald…Tua mãe ficou presa muito tempo?
Cinco anos. Ela tinha uns 20 anos. Foi torturada, machucada…

Mas isso foi antes de você ter nascido…
Não senhor!

Quantos a Pagu tinha quando você nasceu?
Vinte anos…

Nova assim?
E logo depois já foi presa. Com um ano eu fui visitá-la na cadeia.

Na Tiradentes?
Não, primeiro em Santos.

Isso pra uma criança é terrível. Ver a mãe na cadeia.
Mas isso não me traumatizou.

Teu pai foi casado com ela durante o tempo todo da prisão dela?
Mais ou menos…

Em 1934…tua mãe ainda estava presa e ele estava casado com a pianista Pilar Ferrer, não é?
Era um caso dele…

Você conheceu?
Não. Ele teve um caso com ela, mais ou menos fixo…

No mesmo ano, no dia 24 de dezembro de 1934, teu pai assina um contrato pré-nupcial com separação de bens com Julieta Guerrini…
Ele casou com ela.

E a Julieta Guerrini, quem é?
Julieta Guerrini é uma grande figura…É uma pessoa extraordinária. Poetisa de primeira, pintora… só que ela não se aplica… mas muito estranha, muito estranha…

Estranha por que?
Porque ela é uma pessoa fantástica!

Estranha no bom sentido?
Sim, sim.

Essa você conheceu?
Sim. De uma certa forma, fui um pouco criado por ela…Ela é uma pessoa fora dos padrões convencionais. Se ela estivesse falando com você, ela diria: escuta uma coisa: o que você tem a ver com tudo isso? Ela é assim. “Mas por que você quer saber?”. Ele ficou com ela um bom tempo. Até 40 e pouco,,, ficou com ela uns cinco anos..

Os padrinhos de casamento deles foram Casper Líbero, Portinari e a Clotilde… você sabia?
Não. Clotilde é a irmã dela…são quatro irmãs. São quatro irmãs velhinhas que vivem até hoje…

A Julieta está viva??? Ela deve estar com quantos? 90?
Sei lá. As quatro irmãs devem estar na faixa de 80, 90… o pai dela morreu com 103…estão aí firmes. O meu pai casou com a Julieta e meu irmão mais velho casou com a irmã dela…a Adelaide…que é mais jovem…

O Nonê?
Ele casou com a Adelaide. Ainda hoje falei com ela.

Em 36, o Oswald…passa a morar no Rio de Janeiro… avenida Atlântica…é isso?
Não é bem morar. Ele ficou uns tempos por lá e tal. Porque o negócio aí é o seguinte também: tinha o negócio de fugir da polícia. Então, ele ficava no Rio, ficava aqui, ficava não sei aonde. Ele comprou um apartamento no Rio, está lá, até hoje..em Copacabana….Avenida Atlântica 290, apartamento 103… e em São Paulo, na mesma época, morava na rua Julio de Mesquita 103 apartamento 13 A.
Ta lá até hoje, fantástico, um prédio antigo… passei parte da minha infância lá…parecia um navio, janelas redondas…a gente morava no último andar… uma cobertura, mais ou menos…

Em 1935 ele comprou uma serraria, não foi?
Sim. Foi lá no Vale da Ribeira. Foi um negócio de tentar um investimento qualquer e tal. Não era bem uma serraria. Era um sitio que tinha lá… mas era um negócio bem… lá perto de… depois do…Itanhaém… Peruíbe… é pra aqueles lados.

Quer dizer que ele era dado a negócios também?
Não. Tentava se salvar pra arranjar um dinheiro, alguma coisa. E não deu certo também.

Em 1941, ele tentou de novo: montou um escritório de imóveis na rua Marconi…
É aquele negócio de querer recuperar a herança… do pai dele… que era muito rico… meu avô era dono de Cerqueira César inteiro!…Tinha uma chácara…chácara, não, uma fazenda, que ia da rua Augusta… em cima ia da doutor Arnaldo até a avenida Brasil, mais pra baixo ainda, pegava a Rebouças até a avenida Sumaré. E ele loteou aquilo tudo. Botou bonde na Teodoro Sampaio. Era riquíssimo. O Oswald conseguiu gastar tudo!

Ele comprava muito carro, não é?
Ele comprava tudo… mulher… coisa… carro… champanhe… caviar… tudo! Conseguiu não me deixar um tostão!

Em 43 ele casa com Maria Antonieta d’Alkimim… era mineira?
Não, era lá de Piracicaba… uma menininha, uma normalista que foi secretária dele, foi contratada pra datilografar o Marco Zero. E datilografa daqui, datilografa dali, datilografa ali, aí ficou, né.

Bonitinha e tal?
Quem apresentou ela pra ele foi a Julieta…

A própria Julieta?
É, porque as duas eram de Piracicaba, a menina precisava de um trabalhinho, um emprego, foi lá datilografar….

Ser filho do Oswald ajudava, atrapalhava ou era indiferente?
No começo, atrapalhava, quando a polícia corria atrás dele… depois, nos anos 60, mais ou menos, era indiferente… hoje, ajuda. Hoje ser filho do Oswald é importante. Qualquer coisa que eu queira…Eu estou com o condomínio atrasado lá pra pagar… a mulher sabe que eu sou filho do Oswald… então, tudo bem.

Pensei que só eu tinha aluguel atrasado.
Hoje o Oswald me ajuda. Mas naquela época era zero. Antes era negativo. Quando eu era menor, mais jovem, não me identificava.

Ele era um exemplo negativo?
Totalmente…

Eu nunca vou esquecer do dia em que você dirigiu um jipe em marcha-a-ré, no Embu…quando você era meu professor, na ECA…
Você estava lá?

Estava. No jipe. Dez quilômetros em marcha-a-ré…era uma coisa que teu pai poderia ter feito, não?
Você estava lá na produção?

Estava no jipe…E o teu irmão?
Qual deles… o Kiko?

Você tem algum irmão chamado Rolando Escada Abaixo, ou também é lenda?
É lenda…É Kiko, Geraldo Galvão Ferraz…

É teu irmão? Está brincando!
É filho da minha mãe… está em Nova York…O Nonê já morreu…

O Nonê é que seria o Rolando Escada Abaixo?
Não, o Rolando Escada Abaixo seria o Kiko…

Também foi invenção de alguém…? A mãe dele - a Pagu - estaria grávida e teria caído da escada. Ela nunca caiu da escada?
Nunca. O pessoal era muito louco naquela época, então fazia coisas, sei lá, uma lenda, um negócio. É que ela perdeu um filho, antes de mim. Pulou do navio, sabe? Na água e tal… essas coisas…

Pulou do navio? Acidente?
Não, acidente não, aventura…

Navio em alto mar?
Eu não lembro direito. Mas tem uma história. Sei que ela perdeu a que seria a minha irmã. E que se chamaria Alma… perdeu a Alma e tal… depois vim eu, depois veio o Kiko, e o Kiko virou Rolando Escada Abaixo….

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

"é proibido não sonhar"

Pichação na Universidade de Paris 10 - Nanterre

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Criação ?




Entrevista concedida em 2007 por Eduardo Viveiros de Castro a Pedro Cesarino e Sergio Cohn para a Revista Azougue. Pode ser encontrada também no livro Cultura Digital (organizado por Sergio Cohn e Rodrigo Savazoni), de onde copiei para colocar aqui.





VAMOS COMEÇAR FALANDO DE UM AUTOR QUE NÓS GOSTAMOS, O HAKIM BEY, A IDEIA DE UMA UTOPIA PIRATA, DO SAQUE...

O Hakim Bey (Peter Lamborn Wilson), junto com os outros autores da coleção Baderna que a editora Conrad vem lançando, é praticamente ignorado em nosso meio acadêmico. Uma parte ínfima dos estudantes (pelo menos os de pós-graduação), e seus professores sabe de quem se trata. São autores que não têm trânsito algum. Hakim Bey. Eu citei este nome em vários contextos da academia, mas nenhum dos meus colegas antropólogos, brasileiros ou não, sabia quem era. Com as raras exceções de praxe: que me lembre, apenas Pedro Cesarino e Hermano Vianna, por aqui, e Justin Shaffner, ex-aluno de Roy Wagner em Virginia e hoje doutorando de Cambridge. Eu tampouco ouvira falar de Hakim Bey até pouco tempo atrás, quando topei com uma rápida menção feita em um livreto (apenas mediano) de outro antropólogo, David Graeber, Fragmentos de uma antropologia anarquista, e decidi seguir a pista.

O QUE É CURIOSO, PORQUE ELE É UMA REFERÊNCIA ENTRE O PESSOAL MAIS JOVEM, MAS NÃO DO MEIO ACADÊMICO.

Talvez seja consequência de uma separação entre os circuitos de produção conceitual da cultura culta ou domesticada e da cultura pop ou selvagem.Autores radicais que o próprio Hakim Bey utiliza como base, como Foucault, Deleuze ou Derrida, todo mundo conhece, ao menos de nome, porque sãoautores highbrow. Mas os livros que escreveram são obras complexas, de leitura difícil, que requerem um preparo filosófico considerável. Hakim Bey, que utiliza esses autores todos em sua obra, faz isso de uma maneira torcida, inserindo-os em uma interlocução pop, articulando suas ideias com processos e eventos radicalmente extra-acadêmicos, com o que está se passando de fato no presente. Além de estar trazendo para a discussão contemporânea pensadores tão interessantes como Fourier, ou como os socialistas utópicos, que foram excomungados pelos, de saudosa memória, socialistas científicos.

AO MESMO TEMPO, HAKIM BEY NÃO POSSUI UM RESPALDO DA ESQUERDA TRADICIONAL.

É verdade. Gente como ele está pendurada na fração libertária da esquerda americana, que passou por longos anos de hibernação e só voltou a se tornar mais visível depois da manifestação de Seattle em 2000. Foi lá que nos demos conta de que nem todo mundo era a favor de Bush nos Estados Unidos, que havia um movimento subterrâneo acontecendo há muito tempo, e que de repente veio à tona. Este movimento tem uma linha de continuidade que remonta ao século XIX. Sai de Whitman, Thoreau, passa pela beat generation, pela contracultura, e segue em frente. É um movimento subterrâneo, que algumas vezes emerge, é só a maré virar. E o que impressiona é a total ignorância da academia brasileira em relação a isso. Dos Estados Unidos, conhecemos e consumimos prinicipalmente a cultura da direita. A esquerda é européia.

VOCÊ TENTA TRAZER ESSES AUTORES PARA O DISCURSO ACADÊMICO, NÃO SÓ PENSAR ELES, MAS COLOCAR EM PRÁTICA ALGUMAS DE SUAS IDEIAS. UM EXEMPLO É O SITE AMAZONE. COMO ESTAS TENTATIVAS REPERCUTIRAM, OU NÃO, NA UNIVERSIDADE? VOCÊ VIU ALGUMA REVERBERAÇÃO EM OUTROS PROJETOS?

Difícil responder. A história político-cultural brasileira é complexa. Suely Rolnik lembrava outro dia a cisão fundamental na esquerda brasileira, na virada dos 1960-70, entre o pessoal da contracultura e o pessoal da guerrilha, ou mais geralmente da militância política. Lembro-me bem disso; essa diferença foi vivida dramaticamente por minha geração. Havia um conflito entre o pessoal do chamado nacional-popular, do CPC, que possuía um projeto de revolução ligado a uma ideia de cultura autenticamente nacional, radical-reativa, pseudo-proletária, e os tropicalistas, que eram internacionalistas, simbioticistas, geléio-generalistas, tecno-primitivistas, que saíam por cima (ou por fora) e por baixo (ou por dentro) da mediocridade visada pelo projeto nacional-popular. Esse debate reencenava a grande discussão anterior, a da Semana de Arte Moderna. Ele penetrava completamente na academia, que estava organicamente ligada ao assunto, até porque vários teóricos faziam parte dela, sobretudo no lado do nacional-popular. Depois o debate de alguma maneira se perdeu. Hoje a academia não discute mais esses temas, com exceção dos que estudam os movimentos culturais brasileiros. Mesmo para as pessoas que fazem do tema um objeto de estudo, é apenas uma especialidade exótica, que não é mais tratada como uma questão existencial, como era na época.

QUANDO VOCÊ ACHA QUE ESSE ASSUNTO SE PERDEU?

Ele foi se perdendo aos poucos. Depois do tropicalismo, que foi de fato um movimento cultural de alcance nacional, de repercussão vertical, que ia da academia até a juventude, que era teorizado pelos críticos literários ao mesmo tempo que seus discos eram comprados pela garotada que tomava ácido no píer de Ipanema, não houve nada na mesma escala. Houve movimentos locais, mas com menor fôlego e repercussão. O pessoal da poesia marginal aqui do Rio, o Nuvem Cigana, por exemplo, que foi desembocar no BRock, no Asdrúbal Trouxe o Trombone. Havia uma vitalidade nestes movimentos posteriores, mas não havia a radicalidade original do tropicalismo. O tropicalismo unia finalmente Vicente Celestino e John Cage, a cultura popular e a cultura erudita, passando estrategicamente pela cultura pop, que foi a grande bandeira deles. Tudo isso veio evidentemente da antropofagia oswaldiana, a reflexão metacultural mais original produzida na América Latina até hoje. A antropofagia foi a única contribuição realmente anti-colonialista que geramos, contribuição que anacronizou completa e antecipadamente o célebre clichê uspiano-marxista sobre as “ideias fora do lugar”. Ela jogava os índios para o futuro e para o ecúmeno; não era uma teoria do nacionalismo, da volta às raízes, do indianismo. Era e é uma teoria realmente revolucionária...

E QUE NUNCA FOI BEM ABSORVIDA NO BRASIL.

A antropofagia foi mal recebida por diversas razões. Primeiro porque o Oswald de Andrade era um dândi afrancesado (o paradoxo faz parte da teoria...) que não possuia credenciais acadêmicas. Ele não fez trabalho de campo como o Mário de Andrade, por exemplo. O Mário de Andrade colheu música popular, cantigas, foi atrás de mitos, inventou todo um olhar sobre o Brasil. Mas o Oswald tinha um poder de fogo retórico superior; sua inconsequência era visionária... Ele tinha um punch incomparável. Se Mário foi o grande inventariante da diversidade, Oswald foi o grande teórico da multiplicidade – coisa muito diferente.

E CONTINUA SENDO.

Eu acho que a grande contribuição dos concretos ao debate cultural no Brasil foi a redescoberta que fizeram de Oswald, em parte por via da aliança com o tropicalismo. Essa redescoberta me parece talvez mais importante, no frigir dos ovos, que a teoria da poesia concreta enquanto tal. Se é que é possível separar uma coisa da outra. Afinal, o que os concretos nos legaram foi antes de tudo um paideuma rigoroso mas aberto, que transversalizou completamente os totemismos nacionalistas, colocando a arte brasileira em um campo estético poliglota e multívoco, sem hierarquias prévias ou extrínsecas.

O BALANÇO DA BOSSA...

Esse livro do Augusto de Campos foi uma intervenção iluminada. Um divisor de águas, ao perceber na primeira hora que o tropicalismo era a bola da vez. E o Augusto produziu aí uma teoria, que na verdade foi uma redescoberta do Oswald pela “alta cultura”, no sentido da “alta costura” dos concretos. Porque havia uma série de conflitos, e de repente o tropicalismo chegou para resolver o problema de alguma maneira, porque ele fez a síntese. Não uma síntese conjuntiva, mas uma “síntese disjuntiva”, diria Deleuze: Vicente Celestino e John Cage. E essa é a resposta que a América Latina tem que dar para a alienação cultural, é a única proposta de contra-alienação plausível, a única teoria de libertação e autonomia culturais produzida na América Latina. Agora todo mundo está descobrindo que tem que hibridizar e mestiçar, que os Mutantes, por exemplo, são legais. Os Mutantes são hoje a vanguarda da vanguarda pop, valores disputados nos mercados discográficos mais antenados das estranjas... Do lado mais highbrow, agora o pessoal se tocou também, por exemplo, que Hélio Oiticica é um gênio. Mas é claro que é. A gente já sabia disso... Demorou um pouco para a ficha cair.

QUASE QUARENTA ANOS.

É. Outro dia, conversando com amigos, alguém falava sobre como o capitalismo tinha mudado no mundo todo, sobre o sistema de controle da mão-de-obra do capitalismo moderno, a precarização, informalização etc. E aí alguém lembrou que isso sempre existiu no Brasil. E eu fiquei pensando, sempre disseram que o Brasil era o país do futuro, iria ser o grande país do futuro. Coisa nenhuma, o futuro é que virou Brasil. O Brasil não chegou ao futuro, foi o contrário. Para o bem ou para o mal, agora tudo é Brasil.

COMO DIRIA O ROGÉRIO SGANZERLA.

O Julio Bressane tem uma frase ótima, “mixagem alta não salva burrice”. Para dizer que não adianta, se o material é ruim, você pode montar do jeito que quiser que não fica bom. É a mesma coisa com mestiçagem ou hibridismo. Mestiçagem alta não salva nada, não salva democracia, não salva cultura. Se o que entra não presta (estou falando de fusão/difusão cultural, por suposto; por favor não me confundam), não adianta mixar. Por outro lado, eugenismo cultural também nunca deu certo... aquela história de raiz e de tradição, Deus me livre. Só tem tradição quem inventa. Agora, voltando para o que eu estava falando, da brasilificação do mundo, é um efeito ou exemplo reverso muito interessante do que o tropicalismo estava tentando dizer ou fazer.

O MODERNISMO HERÓICO BRASILEIRO, DE OSWALD E MÁRIO DE ANDRADE, TAMBÉM NÃO SE TORNOU UMA ESPÉCIE DE TRADIÇÃO SUBTERRÂNEA, QUE APARECE E DESAPARECE DURANTE TODO O SÉCULO? UM EXEMPLO DISSO É A MANGUE BIT, QUE É UMA RENOVAÇÃO DO TROPICALISMO. ALGUNS LEMAS DA MANGUE BIT SÃO BEM SUGESTIVOS SOBRE O QUE ESTÁVAMOS DISCUTINDO: “TENHO PERNAMBUCO EMBAIXO DOS PÉS E A MINHA MENTE NA IMENSIDÃO”, OU A QUESTÃO LEVANTADA POR FRED 04 ENTRE “MUDAR DE LUGAR” E “MUDAR O LUGAR”...

Aí ele quase parece estar discutindo a teoria do Roberto Schwartz das “ideias fora de lugar”, tentando produzir uma outra formulação. Quando escrevi o prefácio de um livro sobre o novo ambientalismo na Amazônia chamado Um artifício orgânico, do Ricardo Arnt, disse que a ecologia colocava pra escanteio o problema das ideias fora de lugar. A ecologia era uma ideia sobre o lugar, então jamais poderia estar fora do lugar porque o que estava em questão era o lugar, não eram as ideias... Onde estamos? Esta é a questão propriamente “ecológica”.

O MANGUE BIT NÃO ESTÁ ISOLADO NESTE SENTIDO DE PROBLEMATIZAR O LUGAR, ISTO PARECE SER UMA CARACTERÍSTICA DE VÁRIOS MOVIMENTOS DA CULTURA ATUAL.

Esse debate é na verdade uma estrutura de longa duração na cultura brasileira. O governo atual, por exemplo, está dividido ao meio, porque há dois projetos chamados de “nacionais”. Um é o projeto nacional clássico, no mau sentido da palavra, que é o de inventar (ou descobrir) essa coisa chamada de “identidade nacional”. O outro projeto é o que eu chamaria de “nós temos que desinventar o Brasil”. É um projeto mais internacional, que troca o “só nós, viva o Brasil”, pelo “tudo é Brasil” de que eu estava falando. Porque o mundo já é o Brasil, e esta questão já acabou, digamos assim... Uma frase que vivo repetindo é que o Brasil é grande, mas o mundo é pequeno; então não adianta ficar pensando só no Brasil. Essa frase tem a ver com um projeto hegemônico dentro do governo, baseado na soja, na industrialização, em um projeto que quer transformar o Brasil nos eua do século XXI. O Brasil que quer ser os eua quando crescer, que quer transformar seu interior inteiro numa espécie de Iowa ou Idaho, plantado de cabo a rabo de soja ou de cana e mamona para biodiesel. E a costa do país se tornará uma espécie de Florida, Miami, Bangkok, um puteiro à beira-mar, com gângsteres bem cariocas também, para dar uma cor local. Ou seja, o Rio de Janeiro. Esse é o projeto nacional-popular: “tragam a poluição”, “vamos industrializar”, ”viva o agronegócio”; e nas horas vagas, “vamos valorizar o folclore nacional”. “Folclore e energia”; para lembrar a famosa frase de Lênin: “O comunismo é sovietes mais eletricidade”. Pena que uma ministra – Dilma Roussef – que jurava por essa cartilha anos atrás hoje tenha escolhido só a eletricidade mesmo, afinal, esqueçamos essa bobagem de sovietes. Que pena.

OU SEJA, INDUSTRIALIZAÇÃO A QUALQUER PREÇO...

Esse é o modelo Zé Dirceu. Agora a gente vê que, na verdade, muito do pessoal que lutou contra a ditadura estava querendo exatamente a mesma coisa que os militares. Eles se entendiam. A questão era apenas saber quem iria mandar. Mas tratava-se de fazer a mesma coisa: desenvolver o país. Pessoalmente, digo: dane-se o desenvolvimento.
E do outro lado você tem o pessoal que está interessado em pensar o mundo, não em pensar “o Brasil”. Você pensa no Brasil, você está aqui, não tem como não pensar no Brasil, mas você não precisa pensar o Brasil, pensar no Brasil já basta, está ótimo. Há duas maneiras de conceber a questão da “brasilidade”: ou você acha que ela é causa do que você faz (e de causa se chega rápido a desculpa, a princípio sagrado, o diabo); ou então você percebe que ela é apenas consequência, você não pode não ser brasileiro, não tem como não ser. Não tem jeito; a não ser que você se exile ou troque de língua, mas enquanto isso, tudo que você fizer é brasileiro. Relaxe e goze. O pessoal do nacional-popular quer que sejamos brasileiros por necessidade, por destino. E isso não dá certo. Não dá para fazer assim, tem que se esquecer o assunto e olhar para o outro lado. Quem sabe aí, inadvertidamente, se produza alguma coisa... Quem se preocupa com identidade, de língua, cultura, seja do que fôr, já “perdeu”.

OLHAR PARA FORA...

Essa oposição entre um pensamento da interioridade, da identidade, das raízes, de um lado, e do outro o pessoal da exterioridade, da desterritorialização, do rizoma (para usar a linguagem do Deleuze) em vez das raízes, do pessoal do internacional – essa oposição, a meu ver, é intrínseca à situação latino-americana, a essa esquizofrenia cultural, a orientação para fora, para a Europa, que contraproduz uma orientação culpada para dentro, para seu país, do qual ao mesmo tempo você tem vergonha e orgulho. Há uma situação muito confortável da elite brasileira que é poder brincar de dominado quando olha para fora, dizendo “vejam só como eles mandam na gente, nós somos uns pobres coitados, estamos aqui dominados, explorados cultural e economicamente”, e brincar de dominantes quando olhamos para dentro e mandamos a cozinheira fazer nossa comida. Você é um explorado pela cultura francesa e pode dar um grito de guerra contra a alienação cultural, mas é sempre um patrão que reclama da alienação cultural...

ENTÃO PARA HABITAR É PRECISO SER NÔMADE?

É, acho que sim. Se você for ver, todo mundo que descobriu o Brasil, descobriu lá de fora. Gilberto Freyre, grande teórico da brasilidade, descobriu o Brasil em Columbia. Oswald de Andrade descobriu o Brasil em um quarto de hotel, provavelmente em Paris, numa daquelas viagens. Ou foi o Blaise Cendrars que contou para ele que o Brasil era legal. O samba, o Hermano Vianna mostra claramente em seu magnífico livro sobre o assunto, foi de certa maneira descoberto de fora. Então o Brasil é sempre visto de fora. Sem contar que só fala no Brasil, sobre o Brasil, quem manda nesse país. O problema nacional quem formula é a elite. Qual o problema nacional? O problema é que “o povo é um povinho ruim”, como a elite tantas vezes diz. O problema nacional é um problema da elite para a elite pela elite. O chamado “povo” está preocupado com outra coisa...

E A AMAZÔNIA NISSO TUDO?

Eu talvez esteja mitificando um pouco a Amazônia, no que vou dizer. Mas acho que a Amazônia hoje é o epicentro do planeta. Do Brasil, certamente que é. Acho que o Brasil se deslocou pra Amazônia. Isso eu já tinha dito em 1992, quando escrevi aquele prefácio do livro do Ricardo Arnt e do Steve Schwartzman. Eu ali dizia que o Brasil se amazonizou. Tudo acontece lá, o tráfico de drogas passa por lá, os interesses econômicos estão lá, os grandes capitais estão fluindo para lá, as questões de ecologia, o olhar do mundo, a paranoia e a ilusão do paraíso, tudo está lá, ou voltado para lá. Para o bem ou para o mal, a Amazônia virou o Lugar dos lugares, natural como cultural, alías; é lá que está sendo cozinhado um gigantesco guisado cultural, e que daqui nós não temos a menor ideia do que está se passando. Multidões gigantescas indo a bailes que misturam funk, calipso, samba, música eletrônica, com djs famosíssimos em Belém do Pará que são caboclos, peão de obra, os peões do Chico Buarque do “Operário em construção” estão lá pilotando prato de toca-disco, são djs... Hoje, 80% da população da Amazônia está nas cidades. Manaus é um objeto sem similar no planeta, bem, talvez Lagos seja parecida, mas Lagos é um terror, em todos os sentidos, e Manaus não é um terror em todos os sentidos, apenas em alguns. Acho que os brasileiros do sul nunca pensaram direito a Amazônia, sempre voltaram as costas para ela. A teoria da sociedade brasileira, produzida pela elite brasileira no começo do século xx, estava obcecada pela questão da escravidão negra, por razões óbvias e justas: era pela escravidão que se devia pensar a falha, o pecado essencial, a raiz da vergonha nacional. Mas nisso, esqueceram da Amazônia, dos “negros da terra” (os índios), do país para além dos canaviais e dos cafezais. Ainda não conseguimos escapar do tratado de Tordesilhas. É necessário prestar mais atenção na Amazônia. O modelo carioca e paulista de exotismo era Salvador, Jorge Amado, candomblé, vatapá, mas Belém e Manaus eram um nada. Mas então aparece um escritor como o Milton Hatoum (por exemplo) e mostra o que estava acontecendo em Manaus na década de 40. Um outro mundo...

E A INTERNET, COMO VOCÊ VÊ AFETANDO ESSA RELAÇÃO ENTRE CENTRO E PERIFERIA? AGORA, UM GAROTO EM MACEIÓ PODE TER O MESMO GRAU DE INFORMAÇÃO SOBRE O MUNDO QUE UM ESTUDANTE DA USP. ISSO É UM FATO NOVO...

Isso é interessante. Qual é o modelo típico, a trajetória típica do intelectual brasileiro (ou, aliás, norte-americano também)? É o menino de província, nascido na cidade pequena, e que está o tempo todo sonhando com o Rio de Janeiro ou São Paulo. Esse modelo do sujeito que espera o suplemento dominical do jornal como se fosse a Bíblia, a hóstia, que encomenda livros da capital, meses a fio à espera das notícias culturais da metrópole. Éramos todos meninos do interior; inclusive os cariocas e paulistas – nossa metrópole era estrangeira, apenas. Isso acabou. Hoje tudo está dado. Você descarrega livro, pega tudo. Há uma democratização gigantesca, desde que você tenha um computador de banda larga, que no Brasil talvez se expanda com esse projeto do governo de pontos de inclusão digital, quiosques digitais, que é uma coisa interessante, treinar jovens de pequenas cidades do interior para operar internet. Há esse problema da perda da diferença, da estandartização, mas é aquela coisa: fica tudo igual, mas algumas diferenças são potencializadas ao mesmo tempo em que outras se equalizam. É uma coisa ambígua, feito a globalização. Lévi-Strauss falava já em 1952: “É inexorável, a cultura ocidental vai se universalizar, mas não pensem que isso vai diminuir as diferenças, elas vão passar a ser internas, em vez de ser externas”; e talvez aumentem, ao longo de dimensões de cuja existência sequer suspeitamos. A cultura ocidental vai explodir de diferenças internas, ao invés do modelo clássico da invasão dos bárbaros, hoje com vigor renovado graças ao suposto conflito de civilizações, o Islã e coisa e tal. Cascata. O Islã é o Ocidente. A cultura ocidental vai se universalizar e, no que ela se universalizar em termos de extensão, ela vai se particularizar em termos de compreensão, vai se tornar cada vez mais caótica internamente, cada vez mais dividida, produzindo toda sorte de esquisitices e originalidades e assim por diante. A internet vai ser um pouco isso... Estamos longe de saber o que vai acontecer com a internet daqui a dez anos. Em 1990 eu comprei meu primeiro computador. Em 1991 comecei a me comunicar por computador com outros colegas pela Bitnet, que era uma rede universitária sem a interface gráfica world wide web. Tudo o que havia era o correio eletrônico com colegas universitários. A Internet era uma rede de comunicação de cientistas, foi pouco a pouco sendo usada por semicientistas como nós, depois por toda a comunidade acadêmica e depois foi aberta para o comércio, virando isso que é hoje.

COMO FICA A QUESTÃO DO SAQUE E DA DÁDIVA TENDO EM VISTA AS CULTURAS INDÍGENAS?

É muito comum uma equipe de filmagem chegar numa área indígena e oferecer 30 mil dólares para filmar, e os índios conversarem entre si e fazerem uma contraproposta, 40 mil dólares, e fecharem o negócio. Fica combinado. Então se faz o filme e a equipe acha que resolveu o problema. Paga diretinho e coisa e tal. Quando o filme sai, o diretor recebe um telefonema dizendo o seguinte: “Você está nos devendo dinheiro, você roubou da gente!”. Aí ele diz: “Peraí, eu assinei um papel, eu já dei os 40 mil”, e os índios: “Não, mas você não pagou não-sei-o-quê”, ou então “não foi para todo mundo”. Aí ele de repente se dá conta de que os índios têm uma concepção da transação, da relação social em geral, radicalmente oposta à nossa. Quando fazemos uma transação, entendemos que ela tem começo, meio e fim, eu lhe dou um troço, você me paga, estamos quites, você vai para um lado, eu vou para o outro. Ou seja, a transação é feita em vista de seu término. Os índios, ao contrário: a transação não termina nunca, a relação não termina nunca, começou e não vai acabar nunca mais, é para a vida inteira. Ao pedir mais dinheiro, não é exatamente o dinheiro que os índios querem, mas a relação. Eles não aceitam que acabou o lance, acabou coisa nenhuma, agora é que vai começar. Donde os famosos estereótipos: os índios pedem o tempo todo. Sim, pedem. E reclamamos que o que eles obtêm é jogado fora de repente: as aldeias ficam cheias de objetos descartados que os índios pediram para nós, insistiram até conseguir, e quando conseguem não cuidam, jogam fora, deixam apodrecer, enferrujar. E os brancos ficam com aquela ideia de que esses índios são uns selvagens mesmo, não sabem cuidar das coisas. Mas é claro, o problema deles não é o objeto, o que eles querem é a relação. Uma vez a relação se mantendo, o objeto cumpriu sua função. Essa é a ideia da relação como algo interminável: a dádiva. Toda dádiva é interminável, é uma relação interminável. Toda dádiva produz uma dívida, e essa relação da dádiva com a dívida é uma relação propriamente interminável. Uma relação aberta vai ter que ser mantida, e só vai ser rompida se houver alguma violência. E mesmo assim: a violência ela própria é uma relação. A vingança é parte da lógica da dádiva.
O duplo estereótipo de que todo índio é ladrão (comum entre os brancos) e de que todo branco é sovina (comum entre os índios) define de maneira emblemática o abismo que existe entre duas concepções inconciliáveis do laço social.

ESSE É UM SENTIDO DE DÁDIVA, MAS EXISTE OUTRO QUE É O DA DÁDIVA GRATUITA, DIVINA...

Esse dom gratuito, unilateral e total, não existe entre os índios de forma alguma. Esse é um exercício de poder horroroso, o dom gratuito, Deus me livre de receber um. É o dom que não pode existir, porque se há uma sociedade contra o Estado, para usar a linguagem clastreana, ela não pode aceitar jamais a ideia de um dom gratuito. Dom gratuito é só outro nome do poder absoluto, quem dá de graça é o poder absoluto, porque ele pede tudo em troca. O dom gratuito é aquele cujo pagamento é infinito, porque não tem pagamento. O dom gratuito é aquele que eu não posso pagar, o dom divino.

O ANARQUISMO, AO OBRIGAR A UMA INTERIORIZAÇÃO TOTAL DO CONTROLE, ACABA LEVANDO A ISSO, NÃO? A UMA IDEIA DE DOM GRATUITO...

Eu diria que a anarquia é um regime em que o saque é controlado pela dádiva, enquanto no nosso modelo é o contrário, a dádiva é controlada pelo saque. Se seguirmos as definições mais correntes do capitalismo, ele é baseado no saque, na extração, que é a palavra usada, da mais-valia da força de trabalho. Portanto, é a famosa frase do Proudhon: “A propriedade privada é um roubo”, que o Marx odiava, e o Hakim Bey gosta. Proudhon é um dos grandes ídolos de Hakim Bey. A propriedade privada é um saque, é um roubo, portanto o saque está no princípio da relação social capitalista, ela está fundada no saque. Então não é por acaso que os brancos vêem o roubo como o vício favorito dos índios, porque você vê no outro aquilo que traz consigo, assim como todo índio no fundo vê os brancos como sovinas porque no fundo ele “quer ser” sovina. O sonho indígena, um sonho de escapar do laço social, é um sonho de viver entre si, poder prescindir do outro para existir, como dizia Lévi-Strauss no final das Estruturas elementares do parentesco. Isso é um devaneio final do Lévi-Strauss, dá uma ideia de que a maior parte dos mundos póstumos das sociedades indígenas são mundos nos quais o incesto é livre, todo mundo casa com a irmã, com a mãe, não tem afins, não tem cunhados, porque no fundo para os índios o paraíso é um lugar onde você não precisa dos outros. O paraíso é o lugar onde você é auto-suficiente, portanto auto-produtivo, e o outro é desnecessário, o que sugere, a contrario, que a vida social está radicalmente fundada na relação com o outro. Em outras palavras: só não tem outro quem está morto. É justamente isso que eles estão dizendo, uma maneira irônica de dizer “Olha, só não tem cunhado quem tá morto”. Aqui na terra não tem escapatória, é o regime da dádiva, só escapa da dádiva quem está morto... Então os índios “são” sovinas, o imaginário deles está obcecado pela questão da avareza, a avareza é o insulto maior que você pode fazer e receber numa sociedade indígena, qualquer um que viveu lá sabe, o maior insulto não é dizer que sujeito é ladrão; também não chega a ser um insulto terrível chamar alguém de mau-caráter ou mentiroso; agora chamar o cara de avaro, de sovina, é sério; pode dar morte... E é o que eles mais dizem dos brancos: os brancos são constitutivamente os sujeitos que não dão, que se recusam a entrar nas relações sociais, precisamente. O cara vai dar a filha para o branco casar, como no famoso modelo tupinambá: dá a filha para o português casar esperando abrir uma relação, “ele agora me deve, ele é meu, porque me deve a filha que eu dei para ele em casamento”, e o branco se recusa a se comportar como um genro deveria, que é pagar tudo para o sogro e fazer o que o sogro manda, manter a relação funcionando. Os índios ficam escandalizados com a falta de senso social, falta de inteligência, na verdade, dos brancos. Porque os brancos não entendem. Acho que essa é a sensação profunda que os índios têm diante da nossa sociedade, os brancos não entendem nada do que é uma sociedade. E é verdade, eles entendem muito sobre como fazer objetos, fazem coisas maravilhosas, objetos espetaculares, são grandes tecnólogos, fazem milagres, objetos que a gente não entende como funcionam, são verdadeiros demiurgos tecnológicos; mas no que diz respeito à vida social, são de uma ignorância insondável. A sensação que eu tenho é que eles nos tratam como crianças, porque eles sabem que a gente não tem a menor idéia de como funciona uma sociedade. E nós os tratamos como crianças, porque achamos que eles não sabem mexer com as coisas mais elementares, não sabem operar um videogame, não sabem matemática...

E COMO VOCÊ VÊ A RELAÇÃO ENTRE O CREATIVE COMMONS E A DÁDIVA?

O Creative Commons é uma tentativa, a meu ver altamente meritória. Eles estão tentando evitar que o mundo virtual seja cercado, assim como foi o mundo geográfico. Que ele seja privatizado. É uma tentativa de manter a informação como um bem de domínio público. O grande ponto para o Creative Commons é que a informação não segue o regime da soma zero, que ela pode ser passada para frente e não diminui com isso. Isso não significa que um autor deva ser plagiado; o ponto é facilitar a circulação. O grande processo que iniciou a Revolução Industrial inglesa foi o cercamento dos campos comunais das aldeias, usados por todos para pastagem etc., que eram os commons. Por isso que o projeto se chama Creative Commons. Os commons eram as áreas das comunidades rurais inglesas que eram de uso comum. As terras de agricultura em geral eram terras sem cerca, as divisões eram consensuais, você tinha a noção costumeira de onde começava e acabava a terra de alguém. Depois os grandes proprietários começaram a comprar o terreno, colocar cerca, impedir a circulação. O Creative Commons é uma tentativa de reconstituir esse regime da apropriação comum, do uso comum, do uso coletivo, no plano dos bens intelectuais, dos bens imateriais. A ideia é que o copyright significa “all rights reserved” e o Creative Commons significa “some rights reserved”. E você diz quais são eles. Existem várias fórmulas, vários tipos de licenças abertas. Trata-se de tentar criar um modo de coabitação no plano da informação que seja tolerável, e que evite o que está acontecendo, que é o controle da informação pelas grandes companhias. Agora isso tudo ainda é, de certa forma, um paliativo. O Creative Commons pode ser visto, como o é efetivamente pelos mais, digamos, radicais, como um estratagema capitalista. O verdadeiro anarquista não quer saber de Creative Commons nem de copyleft, é totalmente radical. A princípio estou com eles, acho a propriedade privada uma monstruosidade, seja ela intelectual ou não, mas sei também que não adianta dar murro em ponta de faca, tapar o sol com a peneira. Acho que você tem que transigir, tem que fazer algum tipo de negociação. O Creative Commons é um grande avanço intelectual.

ATÉ AGORA VOCÊ ESTÁ FALANDO DO VEÍCULO, E FICO IMAGINANDO COMO ISSO SE REFLETE NA CRIAÇÃO. A IDEIA DE SAMPLER, POR EXEMPLO, QUE É UMA RADICALIZAÇÃO DA IDEIA DE CITAÇÃO.

Esse é o ponto. O Creative Commons está tentando consagrar do ponto de vista jurídico o processo de hibridização, a antropofagia, o saque positivo, o saque como instrumento de criação. Estão tentando fazer com que o saque e a dádiva possam se articular. Eu sampleio e dou, não é “eu sampleio e vendo, vou ficar rico”, a ideia é “sampleio, mas também dou”, um processo em que saque e dádiva se tornam, de alguma maneira, mutuamente implicados um no outro. A citação, que é o dispositivo modernista por excelência de criação, é na verdade o reconhecimento de que não há criação absoluta, a criação não é teológica, ex nihilo, você sempre cria a partir de algo que já existe. Como a famosa frase do Chacrinha: “Nada se cria, tudo se copia”. E como se sabe, nada se copia igualzinho, ao se copiar sempre se cria, quanto mais igual se quer fazer mais diferente acaba ficando: a “contribuição milionária de todos os erros”, dizia Oswald de Andrade, darwinista infuso. Foi de tanto falar latim que os europeus acabaram falando português, francês, espanhol...

LAUTRÉAMONT DIZIA QUE “A POESIA DEVE SER FEITA POR TODOS, NÃO POR UM”. ELE PARECE SER UM BISAVÔ DISSO TUDO.

É, na verdade, toda nossa teoria da criação é a de que existe uma oposição radical, uma oposição intransponível entre criação e cópia. O criar e o copiar são os dois extremos de um processo, quer dizer, o criador é aquele que precisamente tira de si tudo o que precisa, e o plagiário é aquele que tira dos outros. O plagiário é um saqueador, e o criador é o doador absoluto. A dádiva é uma modalidade da criação, a criação é uma modalidade da dádiva, talvez a criação seja a dádiva pura, e aí você vê bem as raízes teológicas desse modelo: Deus criou o mundo do nada, tirou de si mesmo. A criação é o modelo do poeta, do criador como uma divindade no seu próprio departamento, que é o modelo romântico do gênio como um criador, um pequeno deus, uma pequena divindade, que tira de si mesmo a criação.

DO OUTRO LADO ESTÁ O PLAGIÁRIO, O DILUIDOR.

Isso está inclusive na célebre tipologia poundiana difundida pelos irmãos Campos: o mestre, o inventor e o diluidor. Ora, o que foi de alguma maneira se consolidando na consciência moderna é a ideia de que a criação precisa da cópia, a ideia da bricolagem de Lévi-Strauss, de que toda criação nasce numa espécie de permutação realizada sobre um repertório já existente. O fato de que não há nada absolutamente novo não torna o novo menos novo. Tudo já foi feito, não há nada de novo debaixo do sol, toda linguagem é finita, aquela coisa do Barthes, você só pode dizer o que já foi dito porque a linguagem restringe – isso é uma falsa alternativa. Hoje cada vez mais a matéria-prima sobre a qual a criação artística se exerce é a própria arte. Samplear tem um pouco disso: você está pintando a pintura e não mais a natureza; você está escrevendo a literatura. O sampler está redefinindo o estatuto da citação... Eu comecei a discutir algo assim no nosso site AmaZone. Nós só temos um dispositivo citacional, antigo, e aliás nem tão antigo assim, que são as aspas. Uma invenção complexa, um objeto muito mais complicado semanticamente do que parece. Mas está na hora de começarmos a inventar outras maneiras de articular discursos que não sejam as aspas, e o sampler é uma delas. Com o sampler você passa do todo à parte, da parte ao todo, do outro para você e de você para o outro sem costura...

O XAMANISMO FAZ MUITO ISSO, ESSE USO ABERTO DE DISCURSOS ALHEIOS.

Exatamente. E existe o discurso indireto livre, que é uma invenção genial do romance do século XIX, que Bakhtin caracterizou magistralmente. É uma outra maneira interessantíssima de citar sem citar, meio mal-falada fora da literatura por ser considerada desonesta: pôr a palavra na boca dos outros. Mas acho que o discurso indireto livre é o discurso de base, é a forma básica da fala, é pôr-se na cabeça do outro e começar a dizer, a falar como se fosse o outro, raciocinar a partir do outro. Mas entre o discurso indireto livre e as aspas há muitas outras coisas. A possibilidade tecnológica que você tem hoje de cortar as coisas em lugares que antes não podia, há outra margem de manobra. Daí a importância do copyleft, porque ele permite que você dessubstancialize a obra, permite que ela seja distribuída, no sentido de distributed cognition. Quer dizer, ela se torna um objeto que pode divergir, heterogeneíza a obra. Uma obra que tem uma tendência, sobretudo a partir da época romântica, de ser vista como uma totalidade orgânica. A ideia da organicidade da obra, do caráter de ser uno e total. O que se vê hoje é que a obra é tudo menos una e total, a criação artística produz objetos que são tudo menos unos e totais. A famosa obra aberta do Umberto Eco, que já é um conceito antigo. Estamos na verdade fazendo um replay de discussões da década de 1960 e 70, ou antes ainda, o ready-made do Duchamp, e assim por diante. Um replay está sendo feito simplesmente porque agora existe uma potência tecnológica, uma possibilidade de atualização dessas discussões e de implementação que elas não tinham antes.

ISSO TRAZ UMA QUESTÃO CURIOSA. O ARTISTA ESTÁ VIRANDO MAIS UM ARRANJADOR, UM MONTADOR, DO QUE UM CRIADOR, DIGAMOS ASSIM. NÃO É À TOA QUE OS DJ VIRARAM ARTISTAS, E NÃO É À TOA QUE O DOCUMENTÁRIO GANHOU TANTO ESPAÇO. COMO SE NÃO HOUVESSE MAIS NECESSIDADE DE CRIAR INFORMAÇÃO NOVA. É MUITO FÁCIL BATER NA AUTORIA E ESQUECER OS OUTROS LADOS RICOS E COMPLEXOS QUE ELA TEM TAMBÉM. QUANDO SE ESVAECE CERTA IDEIA DA CRIAÇÃO, NÃO SE CONSEGUE ABSORVER A INFORMAÇÃO DISPONÍVEL, NÃO SE COMPREENDE PARA PODER REFAZER.

O que pode ser repensado é o estatuto da noção de criação, não para dizer que não é mais possível criação, mas para redefini-la de uma maneira criativa, digamos assim. Temos que criar um outro conceito de criação. Trabalhamos atualmente com um conceito, por um lado, velho como o cristianismo (criação bíblica) e, por outro lado, com o do romantismo, a criação como manifestação, emanação de uma sensibilidade sui generis do indivíduo privi- legiado. Esses dois modos de conceber a criação não dão mais conta do que está se processando nesse mundo atual. Está havendo tanta criação quanto havia antes, não creio que esteja havendo menos. O que houve foi uma mudança das condições. Mudaram as condições de criação, mudaram as condições de distribuição. Mas Beethoven não vai aparecer de novo, não porque um gênio como Beethoven não pode aparecer de novo, não é esse o problema. Pode aparecer com certeza, se é que já não há um milhão deles por aí, talvez tenha muito mais do que naquela época, já que há muito mais gente no planeta. O que não existe são as condições iguais às que tinha Beethoven para ser um Beethoven. As condições de restrição do ambiente cultural da Europa, o tipo de formação cultural que existia, o tipo de tradição de transmissão da informação. Os “Beethovens” de hoje tão fazendo outra coisa, não sei o quê exatamente. A criação artística está ficando cada vez mais parecida com a criação científica, que sempre foi um trabalho em rede, em que você trabalha em cima do trabalho dos outros, que exige todo um aparato institucional complexo de produção propriamente coletiva.

MAS É ENGRAÇADO QUE A CIÊNCIA FICOU A PARTIR DESTE SÉCULO MUITO ATENTA À ARTE. E AGORA A ARTE ESTÁ COMEÇANDO A SE ABRIR TAMBÉM...

A famosa história das duas culturas, a tese do C. P. Snow, segundo a qual havia duas culturas no Ocidente moderno e que esse era o grande problema do Ocidente: o abismo entre as ciências e as humanidades. Não sei se sempre houve isso, acho que não, mas de qualquer maneira hoje certamente isso acabou, porque hoje a produção artística exige um substrato tecnológico poderoso e, por outro lado, a ciência, no que realmente vale a pena fazer, está contemplando questões de natureza metafísica e cosmológica que envolvem necessariamente o recurso a outras espécies de linguagem.

NESTE SENTIDO, VOCÊ PREFERE O SAQUE À DÁDIVA?

Nós temos que virar Robin Hood. Saquear para dar. O ideal é mesmo tirar dos ricos para dar aos pobres. É isso aí, sempre foi e sempre será. A antropofagia o que é? Tirar dos ricos. Entenda-se: “vamos puxar da Europa o que nos interessa”. Vamos ser o outro em nossos próprios termos. Pegar a vanguarda europeia, trazer para cá, e dar para as massas. “A massa ainda comerá do biscoito fino que eu fabrico”. A internet, ou as novas tecnologias de informa- ção, ou as novas formas de criação, permitem que nós possamos, nós todos, realizar nosso sonho de infância e nos tornarmos Robin Hood. Quem não quis ser Robin Hood? E depois, como o mundo virou brasileiro, “tudo é Brasil”, a antropofagia mudou um pouco de contexto. A antropofagia deu certo, nesse sentido.