sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Tenho



Tenho uma grande constipação,
E toda a gente sabe como as grandes constipações
Alteram todo o sistema do universo,
Zangam-nos contra a vida,
E fazem espirrar até à metafísica.
Tenho o dia perdido cheio de me assoar.
Dói-me a cabeça indistintamente.
Triste condição para um poeta menor!
Hoje sou verdadeiramente um poeta menor.
0 que fui outrora foi um desejo; partiu-se.

Adeus para sempre, rainha das fadas!
As tuas asas eram de sol, e eu cá vou andando.
Não estarei bem se não me deitar na cama.
Nunca estive bem senão deitando-me no universo.

Excusez un peu... Que grande constipação física!
Preciso de verdade e de aspirina.


(Álvaro de Campos)



Extraído de: http://www.revista.agulha.nom.br/facam38.html

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Cajuína cristalina em Teresina



Torquato Neto (1944-1972)



Torquato Neto nasceu em Teresina, Piauí, em 1944. Mudou-se para Salvador, Bahia, aos 16 anos, onde conheceu Gilberto Gil, Caetano Veloso e foi assistente no filme Barravento, de Glauber Rocha. Mudou-se mais tarde para o Rio de Janeiro. Conheceu os poetas Décio Pignatari e Augusto de Campos, o artista visual Hélio Oiticica e o cineasta Ivan Cardoso, com os quais colaboraria e manteria um diálogo crítico. Torquato foi parte do grupo de artistas envolvidos com a Tropicália, assim como defendeu em seus artigos polêmicos outros movimentos atuantes na década de 60, como a Poesia Concreta e o Cinema Marginal, em especial o de Rogério Sganzerla, Júlio Bressane e Ivan Cardoso. Um poeta desconhecido-muito-conhecido, através das letras de muitas canções famosas, os poemas de Torquato Neto seriam reunidos por Wally Salomão no volume "Os Últimos Dias de Paupéria", na década de 80. Em 2005, a Editora Rocco lançou os dois volumes de sua "Torquatália". Torquato Neto cometeu suicídio aos 28 anos, no Rio de Janeiro, em 1972.


Cogito



eu sou como eu sou

pronome
pessoal intransferível
do homem que iniciei
na medida do impossível

eu sou como eu sou
agora
sem grandes segredos dantes
sem novos secretos dentes
nesta hora

eu sou como eu sou
presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim

eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranqüilamente
todas as horas do fim



Literato cantabile



agora não se fala mais
toda palavra guarda uma cilada
e qualquer gesto pode ser o fim
do seu início
agora não se fala nada
e tudo é transparente em cada forma
qualquer palavra é um gesto
e em minha orla
os pássaros de sempre cantam assim,
do precipício:

a guerra acabou
quem perdeu agradeça
a quem ganhou.
não se fala. não é permitido
mudar de idéia. é proibido.
não se permite nunca mais olhares
tensões de cismas crises e outros tempos
está vetado qualquer movimento
do corpo ou onde quer que alhures.
toda palavra envolve o precipício
e os literatos foram todos para o hospício
e não se sabe nunca mais do mim. agora o nunca.
agora não se fala nada, sim. fim. a guerra
acabou
e quem perdeu agradeça a quem ganhou.


21-10



Agora não se fala mais
toda palavra guarda uma cilada
e qualquer gesto é o fim
do seu início:

Agora não se fala nada
e tudo é transparente em cada forma
qualquer palavra é um gesto
e em sua orla
os pássaros de sempre cantam
nos hospícios.

Você não tem que me dizer
o número de mundo deste mundo
não tem que me mostrar
a outra face
face ao fim de tudo:

só tem que me dizer
o nome da república do fundo
o sim do fim
do fim de tudo
e o tem do tempo vindo:

não tem que me mostrar
a outra mesma face ao outro mundo
(não se fala. não é permitido:
mudar de idéia. é proibido.
não se permite nunca mais olhares
tensões de cismas crises e outros tempos.
está vetado qualquer movimento



Let’s Play That



quando eu nasci
um anjo louco muito louco
veio ler a minha mão
não era um anjo barroco
era um anjo muito louco, torto
com asas de avião
eis que esse anjo me disse
apertando a minha mão
com um sorriso entre dentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
let’s play that


da Série "Sintonia de nossa Sincronia":
Torquato Neto.


sele
ção e nota: Fabiano Calixto e Ricardo Domeneck



Post extraído do blog http://revistamododeusar.blogspot.com/2008/03/torquato-neto-1944-1972.html

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

caspar friedrich

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

A linguagem parece sonhar


Saussure, o pai da lingüística moderna, uma vez começou a estudar anagramas latinos - um corpo poético obscuro, usado em grande parte ocasionalmente - para ver que provas eles poderiam conter a respeito da natureza da linguagem. À medida que ele comparava os anagramas com outros tipos de poesia latina, começou a perceber anagramas nestes outros textos. Certas letras, sempre formando palavras que reforçavam o assunto do poema, estavam embutidas e padronizadas de acordo com a superfície lingüística dos textos. Quando ele investigou a prosa latina, também encontrou anagramas. Poesia latina medieval? Mais anagramas. Mesmo a poesia moderna, escrita por estudiosos, trazia tal sintoma. Seria uma conspiração bizarra, uma tradição passada silenciosamente de poeta a poeta, mas alheia à filologia? Saussure começou a agir de forma estranha. Escreveu uma carta a um professor de literatura clássica, que vivia na Suíça e era conhecido por seus versos em latim polido. "Por que sua poesia está cheia de anagramas?", perguntava Saussure. "O que está acontecendo?" Desnecessário dizer que ele não obteve resposta. Nesse ponto, Saussure cambaleou para trás como se estivesse sentindo a vertigem de cair num abismo. Ou a conspiração era real, ou então a própria linguagem era a fonte de tantos anagramas. A própria linguagem tinha uma espécie de inconsciente, um processo onírico, que se organizava em jogos sinistramente sagazes, de palavras sobre palavras, de palavras dentro de palavras, significativos anagramas ocultos, embutidos, inscritos em todo texto que ele examinava. Havia um nível de linguagem além da langue/parole, do signo e do significado? Ou ele estava enlouquecendo? Abalado, Saussure abandonou o projeto. (1)



Nota:


1 - Veja o estudo de Jean Starobinski (1979) sobre os cadernos não publicados de Saussure sobre anagramas, Words Upon Words: The Anagrams of Ferdinand de Saussure. (N. A.)



Extraído de:


Peter Lamborn Wilson - Chuva de Estrelas : o sonho iniciático no sufismo e taoísmo