domingo, 2 de agosto de 2009

Oswald livro livre



POESIA DE PONTA-CABEÇA (*)


Augusto de Campos


Ao visitar Oswald em companhia de Décio Pignatari, Haroldo de Campos e Nilo Odália, em 1949, não esperava receber o presente magnífico. A certa altura, animado pela conversa com os jovens postulantes a escritor, Oswald reti­rou-se por um momento e voltou com quatro exemplares das Poesias Reunidas O. Andrade (Edições Gaveta, em largo for­mato, com ilustrações de Tarsila, Segall e do autor) e os ofer­tou, com seu autógrafo, a cada um de nós (a mim me coube o n. 136 dessa edição de apenas duzentos exemplares).

Os livros - o que restava da edição de 1945 - esta­vam empilhados, se bem me lembro, no alto de um armá­rio em dependência interna do apartamento. Oswald os distribuía, assim, generosamente, aos poucos amigos e sim­patizantes. Tal era a solidão do poeta, já quase sexagenário, que, "de facho em riste, bancando o Trotsky, em solilóquio com a revolução permanente" - como o descrevera Patrícia Galvão um ano antes (1)-, continuava a vociferar contra tudo e contra todos em defesa do modernismo e da Antropofagia, à espera do resgate das futuras gerações.

O volume Poesias Reunidas O. Andrade compendiava os dois únicos livros de poemas anteriormente publicados por Oswald - Pau Brasil (1925) e Primeiro caderno do aluno de poesia Oswald de Andrade (1927) -, acrescentan­do-lhes o inédito "Cântico dos cânticos para flauta e violão" e alguns "Poemas menores". De Pau Brasil não consta a tiragem; o Primeiro caderno tinha apenas trezentas cópias. Vinte anos depois, a essa pequena safra estava reduzida toda a fortuna editorial da poesia de Oswald, cuja obra só começaria a ser redimida com a publicação, em 1966, das novas Poesias Reunidas (2), que receberiam o acréscimo do poema "O escaravelho de ouro" (1946). Não fora melhor a sorte dos romances-invenção Memórias sentimentais de João Miramar (1924) e Serafim Ponte Grande (1933), ou a das peças teatrais O homem e o cavalo (1934), A morta, O Rei da Vela (1937), como eles não reeditadas e até então não representadas.

No entanto, este Primeiro caderno do aluno de poesia Oswald de Andrade, impresso na tipografia da rua de Santo Antônio n. 19, no amplo formato de 26,5 x 21,5 cm, com capa de Tarsila e desenhos de Oswald, tipos em duas cores (todos os títulos em vermelho), é possivelmente o mais belo livro de poesia de nosso modernismo.


O mais belo enquanto conjunto coerente de poemas, risco e ousadia de linguagem associados à concepção plás­tica e material do livro. A edição construída por Oswald e Tarsila tem a ver não só com a poesia propriamente dita, mas com um conceito de reformulação da linguagem visual do livro, que a põe em contato com os grandes cometimen­tos das vanguardas européias, na continuidade do caminho aberto por Mallarmé, em Un coup de dés (1897), "nada ou quase uma arte", prefácio de um hipotético "livro" - um livro livre, que começaria a ser escrito coletivamente no século XX.

Para ficar só em alguns exemplos, bastaria lembrar, como fenômeno grupal, as edições dos livros cubo-futuris­tas, transmentais ou construtivistas russos, que juntaram poetas como Khliébnikov, Maiakóvski, Krutchônikh, Ka­mênski, Iliazd a artistas plásticos do porte de Maliévitch, Ródtchenko, Rozánova, Gontcharóva, Lariônov, EI Lissítski e incorporaram até o entusiasmo de críticos como Roman Jakobson, que, com o pseudônimo de Aliágrov, participou como poeta, ao lado de Krutchônikh, em 1915, de um insó­lito livro zaúm [transmental]; sobre a capa-colagem, um coração vermelho de papelão tendo, pregado, um botão de camisa; no interior, entre os poemas, em gravuras colori­das, as cartas de baralho de Olga Rozánova. Em Pro Eto [Disto], 1923, os poemas de Maiakóvski aparecem articula­dos com as fotomontagens de Ródtchenko; em Dliá Gólossa [Para voz], do mesmo ano e também de Maiakóvski, inte­gram-se definitivamente ao projeto visual, elaborado por Lissítski apenas com recursos tipográficos, em duas cores (vermelho e preto), como um guia funcional de leitura.

Assim, os textos poéticos foram se extraindo das cons­trições gráficas convencionais, ao mesmo tempo que a idéia de "ilustração" evoluía no sentido de maior interpe­netração com o poema e de adequação mais profunda ao livro como um todo. Um outro exemplo, certamente caro aos nossos modernistas - Paulo Prado recebeu uma das raras cópias, a n. 119, dedicada pelo autor a ele e a "tous les amis de San Paolo", em 1924 -, foi La Prose du Transsibérien et de la Petite Jehanne de France, de Blaise Cendrars, volume impresso em várias tintas e ilustrado com "cores simultâneas" por Sonia Delaunay, em 1913: um livro-sanfona, que, desdobrado, atingia cerca de dois metros de comprimento (acoplados, os 150 exemplares da tiragem anunciada alcançariam a altura da Torre Eiffel, tour du monde...).

Nossas revistas modernistas - especialmente Klaxon, do ponto de vista plástico - tentariam responder às provo­cações das congêneres Lacerba, Dada, Blast e tantas outras. Nos projetos de livro, porém, o atrevimento visual tendia a restringir-se à capa, não se aventurando à programação interna.

Foi Oswald, com a cooperação de Tarsila, quem deu a mais significativa resposta, um pouco em Pau Brasil, com a capa irreverente extraída do "pendão da esperança", e muito neste Primeiro caderno, que inspiraria pelo menos uma outra peça de exceção: o amadorístico mas instigante Álbum de Pagu, desenhescrito pela jovem discípula de dezoito anos, em 1929 - livro único que, entregue a Tarsila, só veio a ser redescoberto e difundido na década de 1970, quase meio século depois. Resposta a uma tra­dição nova - a da valorização visual do livro, inconfundí­vel com a edição de luxo e só ocasionalmente assimilável à do livro de artista - que começaria a se perder nos anos 1930: um dos últimos exemplos expressivos seria a primei­ra edição, em 1931, de Cobra Norato, de Raul Bopp, com capa de Flávio de Carvalho; este ainda manteria o brio modernista no n. 1 da RASM (Revista Anual do Salão de Maio), publicada em 1939, com sua capa brutalista, de alu­mínio, que tinha algo das experiências futuristas do Libro­macchina bullonato (Depero/Azari, 1927) e do Libro di latta (Marinetti/Albissola, 1932). Como projeto definido e coletivo, tal tradição só viria a ser retomada pela poesia visual dos anos 1950.

O ideal seria resgatar mais este aspecto inovador da rica personalidade do poeta, reproduzindo em fac-símile, com sua diagramação, dimensões, cores e tipos, design e desenhos, o livro original - o "livro livre" de Oswald. Que, aliás, não se limitou a infiltrar na obra seus grafismos, suas "desilustrações"; teve participação decisiva na própria orga­nização gráfica do livro, como o comprova o documento pertencente ao arquivo particular de Rudá de Andrade: um caderno estudantil, em cuja cobertura Oswald assinalou, de próprio punho, algumas de suas interferências, modifi­cando os nomes dos estados nos brasões e rascunhando o título e os créditos: "Caderno de Exercícios pertencente ao aluno de poesia Oswald de Andrade. Começado em 1925. Acabado em 1926. Capa de Tarsila. Autoilustrações do autor". Esboço de leiaute a indicar que foi do próprio poeta a concepção da capa.


Mas o importante é que, enquanto não surja a oportu­nidade para uma publicação fac-similar, mais custosa e problemática, e por isso mesmo necessariamente limitada, este Primeiro caderno do aluno de poesia Oswald de Andrade não deixe de ser reposto e mantido em circulação em edi­ção mais cursiva, ensejando a um público maior o acesso ao livro.

No espaço generoso da edição original, que o contras­te entre tipos vermelhos e pretos ilumina, os poemas res­pondem mais viva e funcionalmente aos jogos intersemió­ticos. Embora sem as dimensões e as cores da edição "princeps", a presente mantém suas características básicas: as barquinhas da "história pátria" dialogam com seus íco­nes "infantis"; o Brás de "delírio de julho", com suas jane­las-ideogramas; a Cadillac de "o pirata" com o correspon­dente garrancho-nuvem-de-pó. E acabamos por sentir os textos oswaldianos inseparáveis desses desenhos, tal como o "hotel esplanada", com seu elevador amoroso, nos parece indissociável do poema gráfico ("não funciona") que o com­plementa. Assim também, os poemas-síntese "fazenda", "crônica", "o pirata", que ocupam, cada qual, uma página, dando espaço à explosão e ao choque. Mais do que todos, o poema inicial "amor" (título em vermelho na edição ori­ginal), que desde logo nos provoca, na concisão unilinear do "humor" sobre o silêncio amplificado da página, com seu estranho e insinuante desenho abstratizado (para aumen­tar a perplexidade do leitor, ele aparecerá invertido em Poesias Reunidas O. Andrade: cogumelo? árvore? roda-gigante?) (3). Amor. Humor. A poesia, "a descoberta/ das coisas que eu nunca vi".

Ao enfatizar a importância da recuperação material do Oswald-de-corpo-inteiro da edição original, noto que falei menos de sua poesia ou de sua poética. Mas esta já foi recuperada, a partir dos anos 1960, apesar de todas as resistências acadêmicas. Oswald já faz parte da corrente sangüínea de nossa poesia. Já somos todos oswaldianos. Seria ocioso, talvez, lembrar aqui a operação de reoxigena­ção executada por Oswald, dentro dos quadros do moder­nismo, nas poéticas exaustas do convencionalismo pós-par­nasiano (o pós-simbolismo radicalizado de um Kilkerry ou de um Ernani Rosas guardaria reservas de modernidade a serem exploradas por outros veios, no futuro).

"The Age demanded". A Era exigia a ruptura do cilício métrico, o abandono do "sermo nobilis", da retórica empos­tada de academismos ou empastada de deliqüescências, e demandava urgentemente o hausto da linguagem cotidia­na, a imediatez do jornal e do cinema - imaginação sem fios, palavras em liberdade, como pregavam os futuristas, antes de todos. A essas demandas vieram responder, a seu tempo, nossos modernistas.

Oswald, radical em tudo, buscou na incivilidade do antropófago (o mau selvagem) e nas incorreções e moleca­gens da infância ("O netinho jogou os óculos/ na latrina") as armas-metáforas para proceder à sua correspondente deslavagem cerebral, seu "grau zero da escrita", seu marco zero. O "Manifesto da Poesia Pau Brasil" (1924) e, logo mais, o "Manifesto Antropófago" (1928) estão em plena sintonia com a poesia que praticou e, mais do que a ilus­tram, a esclarecem: é "ver com olhos livres". Tudo já está ali: da "contribuição milionária de todos os erros" à "sínte­se", à "invenção" e à "surpresa".


Na procura de uma caracterização do poeta interdisci­plinar, ocorreu-me compará-lo - comparação que, eviden­temente, não se traduz em identidade, mas em pontos de referência e iluminação - ao músico-poeta Erik Satie. Do compositor extravagante, que Oswald admirava(4) - e que, como ele, passou por um longo processo de descrédito até ser reabilitado, na década de 1950, pela voz indisciplinada de John Cage -, caberia acentuar aqui o despojamento, o "retour à la simplicité" (Cocteau) e sobretudo a face "satie­rik" (para recorrer ao anagrama perfeito de Picabia) ­o riso subversivo contra a obra "séria", exibido em epigra­mas musicais que metamorfoseiam o clichê em nonsense. E, especificamente com relação ao Primeiro caderno, o Satie de Sports et Divertissements (1914), que, numa seqüência ininterrupta de anedotas-composições, mistura textos bre­víssimos e notas musicais em partituras-poemas caligrafa­das em preto e vermelho, a demandar, também, o fac-sími­le, pois o design faz parte da criação.

Menos aparentada à obra de Villa-Lobos, cuja proli­xidade está nas antípodas de sua verve sintética - mal­grado seja o Villa- Lobos dos anos 1920, do Noneto e dos Choros (o n. 3, de 1925, dedicado, por sinal, a Oswald e Tarsila), o melhor e o mais moderno dos Villas -, a obra poética de Oswald parece ter em comum com a de Satie o absoluto desprezo pelos valores "artísticos". O Oswald poeta (nisto diverso do prosador pós-machadiano) não é um syntaxier ou um artesão, como Mallarmé. Há em sua poesia - avessa, como é, a toda estilização literária e, por outro lado, aberta ao elementarismo da linguagem crua, à colagem brutalista e aos malapropismos da fala cotidiana - uma natural adesão a tudo quanto seja por definição "não-poético", assim como o ruído (já incorpo­rado por Satie na criação de Parade, 1917, cuja partitura previa até sirenes, tiros de revólver e máquinas de escre­ver) é aparentemente "não-musical"; uma recusa crítica, que se avizinha da renúncia feroz e humorada de Satie ("J'emmerde l'Art"). Será essa uma outra chave para se entender o "livro livre" de Oswald. Ao seu ver-com-olhos­-livres haveria de corresponder um ouvir-com-ouvidos-livres.

Parêntese auditivo. Oswald chegou a gravar alguns de seus poemas, entre os quais "balada do esplanada" e "soi­dão" deste Primeiro caderno. Pouco importa a precariedade técnica desses registros feitos despretensiosamente, em fa­mília, nos últimos anos de sua vida. Quem ouve o poeta dizendo, com tanta graça e ironia, esses e outros poemas, assim como as estrofes iniciais do "Cântico dos cânticos para flauta e violão" (com a voz ligeiramente embargada pela emoção na linha "cais da minha vida quebrada"), não esquece, e não pode deixar de sentir quase em casa a pre­sença dessa poesia incorrigível. (5)

Entre a poesia de Pau Brasil e a do Primeiro caderno não há, em termos de linguagem, diferença senão de grau. "Em comprimidos, minutos de poesia", equaciona­ra Paulo Prado, em sua introdução a Pau Brasil. Já prati­cante do poema-minuto, Oswald avança no Primeiro ca­derno e radicaliza o radical, até o poema instantâneo, o poema-flash, de duas ou três linhas, associando-se aos poucos modernos que tentaram com sucesso o miniepi­grama - um Cendrars, um Pound, um Maiakóvski, um Ungaretti, um cummings. E chega ao poema-de-uma­-nota-só, síntese das sínteses: "amor (título) humor (poema)". Pílula-cápsula para explodir o bem-dizer do amor em humor dissonante, duplo sentido, gracioso-­genital. Semente de outras revoluções, essa provocação poética faz lembrar as rupturas mais significativas com a tradição em pintura - o Quadrado negro (1915) e o Branco sobre branco (1917) de Maliévitch, logo respon­dido pela série Negro sobre negro de Ródtchenko -, embora a poética de Oswald, movida a riso e ação, não se esgote nessa prática nem sistematize tal gesto-limi­te. Ao definir a poesia de Oswald como "uma poesia ready-made” (6), Décio Pignatari trouxe à baila uma outra mo­dalidade de radicalismo, o de Marcel Duchamp, mais afei­çoado, talvez, à tipologia do humor oswaldiano. Um humor­amor que vira de ponta-cabeça as poéticas conservadoras para constituir-se em fonte renovadora da poesia.



AUGUSTO DE CAMPOS
São Paulo, outubro de 2005.



Notas:

(*) Versão revista de "Oswald livro livre", texto publicado no caderno Letras, Folha de S.Paulo, São Paulo, 8.2. I 992, p. 10. (N. O.)

1- "Contribuição ao julgamento do Congresso de Poesia" (1948), em Augusto de Campos. Pagu: vida-obra. São Paulo, Brasiliense, 1982, pp. 182-184.

2- Poesias Reunidas de Oswald de Andrade (introd. e org.: Haroldo de Campos; capa: Flávio de Carvalho). São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1966.

3- Segundo Rudá de Andrade, a posição correta do desenho seria mesmo a da primeira edição. Ele se recorda de um comentário de Nonê (Oswald de Andrade Filho), afirmando que a imagem representaria um canhão da guerra de 1914.

4- "Se houve ultimamente um gênio em França, esse se chamou Erik Satie ... ", escreve Oswald de Andrade em Ponta de lança. São Paulo, Martins, 1945, p. 113. [5~ ed. São Paulo, Globo, 2004, p. 158.]

5- As leituras de Oswald, preservadas por Rudá de Andrade, foram incluídas no CD Ouvindo Oswald (Funarte, 1999), totalizando cerca de treze minutos. A meu cargo ficou a coordenação literária e o roteiro. Cid Campos incumbiu-se da produção musical e do tratamento sonoro dos textos. Participaram do CD, complementando as leituras de Oswald, os poetas Décio Pignatari, Haroldo de Campos, Omar Khouri, Paulo Miranda, Walter Silveira, Lenora de Barros e Arnaldo Antunes, caben­do-me também algumas das oralizações.

6- Décio Pignatari. "Marco Zero de Andrade", em Contracomunicação. São Paulo, Perspectiva, 1971, pp. 141 - 155.


Fonte:

Primeiro Caderno do Aluno de Poesia Oswald de Andrade (pgs. 13-23), Editora Globo, 2008.

0 comentários: