quinta-feira, 18 de junho de 2009

As idéias não têm autor




Antes de mais nada, trata-se de objetos de apropriação; a forma da propriedade que relevam é de tipo bastante particular; está codificada desde há anos. Importa realçar que esta propriedade foi historicamente segunda em relação ao que poderíamos chamar a apropriação penal. Os textos, os livros, os discursos começaram efetivamente a ter autores (outros que não personagens míticas ou figuras sacralizadas e sacralizantes) na medida em que o autor se tornou passível de se punido, isto é, na medida em que os discursos se tornaram transgressores. Na nossa cultura (e, sem dúvida, em muitas outras), o discurso não era, na sua origem, um produto, uma coisa, um bem; era essencialmente um ato - um ato colocado no campo bipolar do sagrado e do profano, do lícito e do ilícito, do religioso e do blasfemo. Historicamente, foi um gesto carregado de riscos antes de ser um bem preso num circuito de propriedades. Assim que se instaurou um regime de propriedade para os textos, assim que se promulgaram regras estritas sobre os direitos do autor, sobre as relações autores-editores, sobre os direitos de reprodução, etc. - isto é, no final do século XVIII e no início do século XIX -, foi nesse momento que a possibilidade de transgressão própria do ato de escrever adquiriu progressivamente a aura de um imperativo típico da literatura. Como se o autor, a partir do momento em que foi integrado no sistema de propriedade que caracteriza a nossa sociedade, compensasse o estatuto de que passou a auferir como o retomar do velho campo bipolar do discurso, praticando sistematicamente a transgressão, restaurando o risco de uma escrita à qual, no entanto, fossem garantidos os benefícios da propriedade.


Michel Foucault - saque/dádiva - Revista Azougue

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