quinta-feira, 11 de junho de 2009

Carta de Lévi-Strauss a André Breton (e resposta)



Carta de Lévi-Strauss a André Breton (e resposta)
[capítulo XX de Olhar escutar ler – Claude Lévi-Strauss]

Contei alhures* em quais circunstâncias conheci André Breton, a bordo do navio que nos levava à Martinica; uma longa travessia, cujo tédio e desconforto evitávamos discutindo a natureza da obra de arte, inicialmente por escrito, depois em conversas.

Para começar, eu tinha entregado uma nota a André Breton. Ele respondeu, e eu guardei preciosamente sua carta. Quis o acaso que, anos e anos mais tarde, eu encontrasse minha nota quando classificava papéis velhos; Breton provavelmente a tinha devolvido a mim.

Ei-la, seguida do texto inédito de André Breton, que agradeço a Elisa Breton e Aube Elléoüet por me terem autorizado a publicar.




Nota acerca das relações entre a obra de arte e o documento, escrita e entregue a André Breton a bordo do Capitaine Paul-Lemerle, em março de 1941

“No ‘Manifeste du surréalisme’ [Manifesto do surrealismo], A. B. define a criação artística como atividade absolutamente espontânea do espírito; uma tal atividade pode ser concebida como resultado de um treinamento sistemático e da aplicação metódica de um determinado número de receitas; contudo, a obra de arte se define – e se define unicamente – por seu caráter de liberdade total. Parece que, quanto a isso, A. B. modificou sensivelmente a sua atitude (em La situation surréaliste de l’objet [A situação surrealista do objeto]).

Entretanto, a relação existente, segundo ele, entre a obra de arte e o documento não é perfeitamente clara. Se é evidente que toda obra de arte é um documento, poder-se-ia admitir, como decorreria de uma interpretação radical de sua tese, que todo documento seja, por isso mesmo, uma obra de arte? Partindo da posição do Manisfeste, três interpretações são na realidade possíveis.

1) O valor estético da obra de arte depende exclusivamente de sua maior ou menor espontaneidade, sendo a obra de arte mais válida (enquanto tal) definida pela absoluta liberdade de sua produção. Como qualquer pessoa, adequadamente treinada, é capaz de atingir essa completa liberdade de expressão, a produção poética está aberta a todos. O valor documental da obra se confunde com seu valor estético; o me; o melhor documento (assim considerado em função do grau de espontaneidade criativa) é também o melhor poema; de direito, senão de fato, o melhor poema pode ser não apenas compreendido, mas produzido por qualquer um. É possível conceber uma humanidade cujos membros, exercitados por uma espécie de método catártico, seriam todos poetas.

Tal interpretação aboliria o conjunto dos privilégios eletivos compreendidos até o momento sob o nome de talento; e se ela não nega o papel do esforço e do trabalho na criação artística, no mínimo desloca-os para um estágio anterior ao da criação propriamente dita: o da busca difícil e da aplicação dos métodos para suscitar um pensamento livre.

2) Mantida a interpretação precedente, constata-se, contudo, a posteriori, que se os documentos obtidos de um grande número de indivíduos, do ponto de vista documental, podem ser considerados como equivalentes (isto é, resultantes de atividades mentais igualmente autênticas e espontâneas), não o são do ponto de vista artístico, já que alguns deles proporcionam gozo e outros não. Como continuamos definindo a obra de arte como um documento (produto bruto da atividade do espírito), aceitaremos a distinção sem procurar explicá-la (e sem ter para isso a possibilidade dialética). Constata-se a existência de indivíduos poetas e de outros que não o são, apesar da completa igualdade de condições de suas respectivas produções. Toda obra de arte continua sendo um documento, mas cabe distinguir, entre esses documentos, os que são também obras de arte e os que não passam de documentos. Mas como uns e outros seguem sendo definidos como produtos brutos, essa distinção, impondo-se ‘a posteriori’, será ela mesma considerada como um dado primitivo que escapa, por sua natureza, a qualquer interpretação. A especificidade da obra de arte será reconhecida, sem que seja possível explicá-la. Constituirá um ‘mistério’.

3) Finalmente, uma terceira interpretação, embora mantenha o princípio fundamental do caráter irredutivelmente irracional e espontâneo da criação artística, distingue entre o documento, produto bruto da atividade mental, e a obra de arte, que é sempre uma elaboração secundária. É evidente, contudo, que tal elaboração não pode ser obra do pensamento racional e crítico; tal possibilidade deve ser definitivamente excluída. Mas supõe-se que o pensamento espontâneo e irracional pode, em certas condições, e em alguns indivíduos, tomar consciência de si mesmo e tornar-se verdadeiramente reflexivo, contanto que essa reflexão se exerça segundo normas que lhe são próprias, e tão refratárias à análise racional quanto a matéria a que se aplicam. Essa “tomada de consciência irracional” acarreta uma certa elaboração do dado bruto, exprime-se pela escolha, a eleição, a exclusão, o ordenamento em função de estruturas imperativas. Se toda obra de arte continua sendo um documento, ela ultrapassa o plano documental, não apenas pela qualidade da expressão bruta, mas também pelo valor da elaboração secundária, que, aliás, só é chamada de “secundária” em relação aos automatismos de base, mas que, em relação ao pensamento crítico e racional, apresenta o mesmo caráter de irredutibilidade e de primitividade que os próprios automatismos.

A primeira interpretação não está de acordo com os fatos. A segunda diminui o problema da criação artística de análise teórica. A terceira, ao contrário, parece ser a única capaz de evitar certas confusões, das quais o surrealismo parece nem sempre ter escapado, entre o que é esteticamente válido e o que não é, entre o que é mais ou menos esteticamente válido. Todo documento não é necessariamente uma obra de arte, e tudo o que constitui uma ruptura pode ser igualmente válido para o psicólogo ou para o militante.

A obra de um débil mental tem um interesse documental tão grande quanto a de Lautréamont, pode ter uma eficácia polêmica superior, mas uma é obra de arte e a outra não, e é preciso dispor do meio dialético de explicar a diferença, assim como a possibilidade de Picasso ser um pintor maior do que Braque, Apollinaire um grande poeta e Roussel, não, Salvador Dali, um grande pintor e ao mesmo tempo um escritor detestável, sendo estas opiniões registradas apenas à guisa de exemplo(1), mas opiniões desse tipo, ainda que possivelmente diferentes ou opostas, devem constituir o termo absolutamente necessário da dialética do poeta e do teórico.

Como as condições fundamentais da produção do documento e da obra de arte foram reconhecidas como idênticas, essas distinções essenciais só podem ser atingidas deslocando-se a análise, da produção para o produto, e do autor para a obra.”

Relendo hoje essa nota manuscrita, incomodam-me o desajeitado do pensamento e o peso da expressão. Não me basta a desculpa de tê-la escrito diretamente (apenas duas palavras foram rasuradas). Teria preferido esquecê-la. Mas isso não teria sido justo para com o texto importante que Breton me entregou como resposta. Sem o meu, não seria possível compreender de que trata o dele.

No manuscrito de Breton, rasuras cuidadosas tornam indecifráveis uma dezena de palavras ou trechos de frases, substituídos por uma nova redação nas entrelinhas, em que há também alguns acréscimos. As correções feitas nas últimas linhas, bastante rasuradas, não permitem decidir se Breton, menos apressado em concluir, teria optado por uma construção gramatical ou se a rejeitou deliberadamente.





Resposta de André Breton


“A contradição fundamental que o sr. sublinha não me escapou: permanece, apesar de esforços meus e de outros para reduzi-la (mas ela não me preocupa, e não poderia confundir-me, pois sei que nela reside o segredo do movimento para a frente que permitiu ao surrealismo durar). Sim, naturalmente, minhas posições variaram sensivelmente depois do primeiro manifesto. No interior de tais textos-programa, que não suportam a expressão de nenhuma reserva, de nenhuma dúvida, cujo caráter essencialmente agressivo exclui qualquer espécie de nuance, é claro que meu pensamento tende a adquirir uma forma extremamente brutal, simplista até, que eu não lhe reconheço internamente.

Tal contradição, que lhe chama a atenção, é, creio, a mesma que Callois, como eu lhe dizia, ressaltou com tanta severidade. Tentei explicar-me num texto intitulado ‘La beauté sera convulsive’ [A beleza será convulsiva] (Minotaure n. 5) e retomado no início de L’amour fou [O amor louco]. De fato, eu cedo alternadamente – mas, afinal, por que não? não sou o único – a duas tendências bem distintas: a primeira leva-me a buscar na obra de arte um gozo (é a única palavra adequada, o sr. a utiliza, pois a análise desse sentimento em mim apresenta-me apenas elementos para-eróticos); a segunda, que pode manifestar-se independentemente da primeira ou não, leva-me a interpretá-la em função do desejo geral de conhecimento. Essas duas tentações, que distingo no papel, nem sempre são destrinçáveis (tendem igualmente a confundir-se em diversas passagens de Une saison em enfer [Uma temporada no inferno].

É evidente que, se toda obra de arte pode ser considerada do ângulo do documento, a recíproca não poderia de modo algum sustentar-se.

Examinando sucessivamente as suas três interpretações, não sinto nenhum incômodo em dizer-lhe que só me sinto próximo da última. Direi, contudo, algumas palavras a respeito das anteriores:

1) Não estou seguro de que o valor estético da obra de dependa de sua maior ou menor espontaneidade. Eu tinha em vista muito mais sua autenticidade do que sua beleza, e a definição de 1924 é testemunho disso: ‘Ditada pelo pensamento... fora de qualquer preocupação estética ou moral’. Não lhe escapará sem dúvida que a omissão deste último trecho da frase teria privado o autor de textos automáticos de uma parte de sua liberdade: era preciso começar por protegê-lo de qualquer julgamento dessa ordem se se quisesse evitar que fosse por ele constrangido ‘a priori’ e se comportasse de acordo.

Isso não foi, infelizmente, de todo evitado (mínimo de arranjo do texto automático em poema: deplorei-o em minha carta a Rolland de Reneville, publicada em Point du jour, mas é fácil isolar a preocupação e abstrair-lhe a obra em questão).

2) Não estou tão seguro quanto o sr. da grande diferença qualitativa que existe entre os diversos textos totalmente espontâneos que podem ser obtidos. Sempre me pareceu que ‘o principal’ elemento de mediocridade suscetível de intervir devia-se à impossibilidade em que se encontram muitos seres de colocar-se nas condições exigidas para a experiência. Eles se contentam em registrar discursos sem nexo, cujo sem pé nem cabeça, o despropósito, nos ilude mas que, por sinais facilmente perceptíveis, podemos constatar que não se jogaram realmente naquilo, o que basta para afastar seu alegado testemunho. – Se digo que não estou tão certo quanto o sr., é principalmente porque ignoro como o ‘eu’ (comum a todos os homens) se encontra repartido (igualmente ou, se desigualmente, em que medida?) entre os homens. Apenas uma investigação de caráter sistemático ‘e que deixe provisoriamente de lado os artistas’ poderia instruir-nos a esse respeito. A hierarquização das obras surrealistas não me interessa nem um pouco (ao contrário de Aragon, que afirmava outrora: “Se se escreve de maneira puramente surrealista tristes imbecilidades, serão tristes imbecilidades”); bem como, o que já declarei, a hierarquização das obras românticas ou simbolistas. Minha classificação destas últimas seria profundamente diferente da corrente e, principalmente, objeto a essas outras classificações pelo fato de nos fazerem perder de vista o significado profundo, histórico, desses movimentos.

3) A obra de arte exige ‘sempre’ essa elaboração secundária? Sim, certamente, mas apenas no sentido bastante lato em que o sr. a entende, como “tomada de consciência irracional”; e, mesmo assim, em que nível da consciência essa elaboração se opera? Em todo caso, não sairíamos do pré-consciente. As produções de Hélène Smith em estado de transe não podem ser consideradas como obras de arte? E se conseguissem provar que determinados poemas de Rimbaud são pura e simplesmente devaneios, sonhos em estado de vigília, o sr. os apreciaria menos? Relegá-los-ia à gaveta dos “documentos”? A distinção continua a parecer-me arbitrária. Torna-se, a meu ver, enganosa quando o sr. opõe Apollinaire poeta a Roussel não-poeta ou Dali pintor a Dali escritor. O sr. tem certeza de que o primeiro desses julgamentos não por demasiado tradicionalista, que não leva demais em conta a “velharia poética”? Não considero Dali um grande pintor, e isso pela excelente razão de que sua técnica é manifestamente regressiva. Nele, é realmente o homem que me interessa, e sua interpretação poética do mundo. Assim, não posso associar-me a sua conclusão (mas disso o sr. já sabia). Outras razões mais imperiosas militam em favor de sua não-aceitação de minha parte. Essas razões, insisto, são de ‘ordem prática’ (adesão ao materialismo histórico). O aligeiramento da responsabilidade psicológica é necessário para a obtenção da atitude inicial de que tudo depende, sim, mas a responsabilidade psicológica e moral muito mais: identificação progressiva do eu consciente com o conjunto de suas concretizações (a expressão é desajeitada) considerado como teatro no qual ele é chamado a produzir-se e reproduzir-se, tendência à síntese do princípio de prazer e do princípio de realidade (perdoe-me permanecer sempre a beira de meu pensamento a esse respeito); concordância a qualquer custo entre o comportamento extra-artístico e o da obra: anti-valerysmo.”

*em Tristes Trópicos

(1) Ainda que formuladas de modo hipotético, parecem-me hoje em dia bastante ingênuas. Meus horizontes de 1941 iriam, felizmente, expandir-se ao contato com os surrealistas.

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[capítulo XX de Olhar escutar ler – Claude Lévi-Strauss]




Nota do Blog:

Como o leitor pode facilmente perceber, o texto acima contém alguns erros. Ele foi extraído do site: http://www.esnips.com/doc/f8567214-8eb7-451f-bab0-7fed5b54ded1/Carta-de-L%C3%A9vi-Strauss-a-Andr%C3%A9-Breton , e não diretamente do livro indicado. Caso alguém saiba como ele originalmente se apresenta, por favor, envie-me a correção.

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