quarta-feira, 2 de junho de 2010

Ele quer destruir o cinema. Você pode gostar do seu filme?


Rogério Sganzerla
por Marcos Ferman

Entrevista realizada em 15 de dezembro de 1969



Marilyn olha para nós. Contra a parede, o cartaz de um velho filme de Marilyn Monroe. Helena Ignez faz ginástica e na eletrola Johnny Cash canta tão alto que é quase impossível ouvir a voz de Sganzerla.

-Não, eu não sou um cineasta tropicalista. Não estou interessado em me filiar a uma corrente estética. Minha ligação com esse pessoal todo, Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil, é nossa disposição de voltar a Oswald de Andrade. Oswald é o ponto de ligação entre o meu trabalho e Caetano, Gil os poetas concretistas de São Paulo, que têm essa nova compreensão estética, e Fernando Coni Campos, Zé do Caixão. Todos nós trabalhamos numa perspectiva de renovação que se baseia numa recusa das perspectivas culturalistas, até então dominantes.

Os filmes do cinema novo começaram a piorar sensivelmente a partir de 1964. A autenticidade foi perdida (esta autenticidade já fazia parte dos filmes feitos antes de 1964, semiamadorísticos, rodados no sertão, na maioria das vezs feitos com uma certa ingenuidade, um certo fetichismo que eu ainda acho bacana). A partir de 1964, sofrendo uma série de reveses, problemas de fincanciamentos e etc, o cinema novo começa a se sofisticar e ficou mais grosso porque perdeu a grossura inicial que era realmente autêntica e poética. Aí ele revelou sua verdadeira condição de contemplação culturalista da cultura européia (na verdade o que se fazia era olhar para o Brasil com fórmulas e reflexões européias). O cinema novo estava deslumbrado e na medida que o tempo foi passando, os diretores foram piorando, os filmes perderam a informação inicial que era quase essencialmente brasileira para se voltarem para as individualidades relativas e medíocres de cada diretor. Assim, cada diretor saiu do universo brasileiro dos filmes iniciais, para se voltar para essa interioridade, para seu próprio temperamento. Na medida em que o cinema novo se interiorizou, os filmes tentando ser requisitados ficaram vulgares, menos autênticos, menos fortes. Esse segundo cinema novo foi apenas um fantasma daquilo que o movimento se propôs em 1962. 1962, que era mais radical que o Teatro de Arena e quase tão eficaz quanto o movimento da bossa nova.

(Rogério Sganzerla passa as mãos no cabelo, uns cabelos muito grandes, tão grandes que nem se pode ver suas mãos nete momento. Ele ouve minha pergunta: "Você vê alguma afinidade entre sua obra e o cinema underground, cladestino, norte-americano?" Ele está apoiado sobre os joelhos quando recomeça a falar).

-Em 1967, na Europa, vi muitos filmes underground, um festival inteiro de vexame. Não tinha nada que prestasse. Em Nova York, vi alguns melhores, mais bacanas, mas eu não levo isso a sério pois tem a mesma ingenuidade do cinema novo - e mais exacerbada ainda. Este é o tipo de cinema feito por americanos deslumbrados com a Europa. Cinema que tenta se incorporar numa tradição literária e estética é ainda um cinema do século dezenove. (Embora tenha alguns momentos de poesia, de loucura selvagem que eu acho muito bacana.) Mas o underground sofre de uma falta de linguagem. É o cinema antilinguagem, o contrário do meu cinema, em que volto 25 anos atrás, pra o cinema americano como do mundo criado conforme a visão do cinema americano. Uma civilização que surgiu a partir do cinema e que eu tento criticar através do cinema. Eles ainda fazem um fetichismo à Godard, Fellini, inconsistente. A idéia de passar filmes underground eu acho ótima. O que não me agrada é exatamente por serem marginais, os diretores underground começarem a formar uma casta aristocrática, fechada.



(Rogério, você não era um cara muito bem comportado, antes de sua explosão no Bandido da Luz Vermelha? Você não era um cara bem comportado assim como Caetano Veloso antes da loucura e da genialidade de Alegria, alegria?)

-Sabe, eu sempre tive uma certa desconfiança daquela música, daquilo que vinha sendo feito desde 1962, 1961, a busca de uma cultura brasileira, nacional e tal, um negócio meio fascista, com a mesma linguagem de Mussonin, de buscar uma "cultura brasileira". Isso eu acho errado porque se a gente enterrou toda uma cultura ocidental, por que vai salvar a nossa? Eu acho que é um sentimento possessivo de guardar os pequenos elementos daquilo que se produz. Eu acho que a gente devia botar no fogo na cultura brasileira. Aconteceu em 1967, exatamente quando eu estava na Europa como correspondente de um jornal. Nessa viagem extremamente acidentada pude refletir e resolvi acabar com aquela proteção que havia manifestado no meu curta-metragem, tudo certinho e bem comportado - percebi que isto não dava pé. Então fiz o roteiro do Bandido da Luz Vermelha. Quando eu voltei, o Rei da Vela ia estrear - aí eu vi que era aquilo mesmo que eu queria fazer. Tinha coisas no meu roteiro que eu achava grossas e pouco conceituais demais. Depois não tive mais dúvidas. E logo surgiu Caetano, então houve a identificação. Terra e transe, de Glauber, teve alguma influência, pois é um filme pré-tropicalista, mas ainda está ligado a uma preocupação européia, estetizante.

(Rogério Sganzerla fala em Zé do Caixão, entusiasmado. Penso logo no espanto de algumas "culturas" bem comportadas, acadêmicas ou rebelde-acadêmicas, quando lerem isto, se lerem isto. É o que falo a ele).

-Eu acho que o Zé do Caixão é talvez o melhor cineastas do Brasil, não como autor - embora ache ele um bom autor que engloba tudo aquilo que Nelson Rodrigues jamais teve. Cineasta exacerbado, verdadeiro, ele é o dono de um estilo, um diretor com grande sentido de cinema um grande sentido de poesia, com uma personalidade forte, que produz uma obra bárbara, sanguinária, como a que estou procurando fazer, embora eu ainda tenha resquícios de delicadeza e bom comportamento.

(Infância. Agora, peço a Sganzerla que fale de sua infância, principalmente de como o menino de uma pequena cidade do interior de Santa Catarina chegou ao cineasta agressivo, polêmico, maldito).

-Eu sempre fui muito desadaptado, introvertido, agressivo. Aos sete anos de idade, quando morava em Santa Catarina, eu fiz um livro de histórias infantis e eu mesmo levei até uma tipografia.
(Rogério pára de falar e tenta descobrir o livro. Que nada. Vai, fala com Helena Ignez. O livrinho está no apartamento deles, no Rio de Janeiro).

-Eu era um menino barulhento, diferente dos padrões catarinenses. Com dez anos eu comecei a fazer roteiro de cinema, fazia um atrás do outro. Em 1959, com 12, 13 anos, não tinha meio nenhum de ir mais longe. Não tinha cineclube, não tinha nada. Para mim foi um momento meio chato porque estava preso pelos padres, no internato em que estudava. Tem um padre, que está lá em Porto Alegre - ele não é mais padre, agora -, Décio Andreotti, que na época estava querendo fazer um cineclube. Ele era muito apaixonado por cinema americado, John Ford, René Clair. Eu estava tentando sair desta, pensando em ver cinema antigo, estudar história do cinema, história do cinema brasileiro. Foi um momento de primeiro encontro com o cinema, depois, em 1961, quando vim morar em São Paulo. Estudava no Mackenzie, e de cara já não acompanhava as aulas, se bem que passasse de ano. Meu interesse era me envolver com cultura. Desde logo, desde 1961, conheci todo mundo. Eu era uma pessoa muito estranha, muito agressiva, vivia escrevendo roteiros. Com 17 anos comecei a fazer crítica de cinema no suplemento literário do Estado de São Paulo (quem me levou pra lá foi o Décio de Almeida Prado). Depois, Capovilla e eu fundamos a página de cinema do Jornal da Tarde, desde o número zero. Aí ele fez o filme dele e eu um curta-metragem, prêmio de montagem no festival do JB. Fiz jornalismo algum tempo, mas depois larguei tudo, jornais e a Faculdade de Direito, no terceiro ano. Larguei tudo, fui fazer O Bandido da Luz Vermelha. Foi duro fazer filme, faltava dinheiro, a coisa parava, etc. O filme foi feito com dois, três fotógrafos, por causa disto. O pessoal da produção criava problemas, atrasava a comida, era caótico, quase amadorista. Toda hora quebrava o pau, havia briga com o pessoal da técnica, depois a gente ia ver o copião, todo mundo ficava entusiasmado e a filmagem recomeçava.





(Peço a Sganzerla que fale de sua técnica de direção)

-Eu tenho facilidade em dirigir, pois meu diálogo é solto por causa de minha prática jornalística. Assim é mais fácil para o ator. E quando o ator não é muito bom eu dou um jeito para que isso não apareça, usando primeiríssimos planos e outros artifícios. Quando o ator é bom, uso outra técnica. Tenho muita segurança para fazer isso. Em Nova York, fiz um filme com Jorge Mautner... O Norman Mailer ia participar como ator, mas não pôde por causa da sua campanha eleitoral. Ele ia participar, sabe, é um cara muito Narciso, é tarado por mulher. Ele ia contracenar com Helena... É um filme sobre uma mulher, Betty Bomba, uma marginal internacional, um filme que é tão irreal como Mulher de todos. Betty Bomba se envolve com marginais, lixeiros, massagistas brasileiros que moram em Nova York. E eu coloquei no filme esses caras mesmos, uns brasileiros que moram lá, porque precisava que falassem inglês e portugues. Sabe, os caras estão muito bem no filme. Este filme já está pronto e dentro de uma semana já vou ter a cópia (a entrevista aconteceu em São Paulo, no dia 15 de dezembro). Estou esperando agora o sucesso de A mulher de todos para ver como o público reagirá neste terceiro filme. O título, acho que vai ser A exibicionista. Tem um outro que eu quero fazer, O picareta.



Fontes: Encontros⎮Tropicália - Azougue Editorial 2008
fotos: http://www.cinelatinotrieste.org
http://www.pontodefuga.jor.br


Extraído de:
http://amescachees.blogspot.com/2010/06/ele-quer-destruir-o-cinema-voce-pode.html

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