quarta-feira, 4 de maio de 2011

« O cinema de Guy Debord » por Giorgio Agamben




O meu intuito é o de aqui definir certos aspectos da poética, ou melhor, da técnica composicional de Guy Debord no domínio do cinema. Evito voluntariamente a expressão “obra cinematográfica”, nominação que ele próprio rejeitou e que se pudesse utilizar a seu propósito. “Considerando a história da minha vida, escreveu ele em In girum imus nocte et consumimur igni [1978], não podia fazer aquilo a que se chama uma obra cinematográfica”. De resto, não apenas penso que o conceito de obra não é útil no caso de Debord, como sobretudo me pergunto se hoje, cada vez que se quer analisar aquilo a que se chama de obra, quer seja literária, cinematográfica ou outra, não seria necessário colocar em questão o seu próprio estatuto. Em vez de interrogar a obra enquanto tal, penso que é preciso perguntar que relação existe entre o que se podia fazer e o que foi feito. Uma vez, como estava tentado (e ainda estou) a considerá-lo um filósofo, Debord disse-me: “Não sou um filósofo, sou um estrategista”. Ele viu o seu tempo como uma guerra incessante em que toda a sua vida estava empenhada numa estratégia. É por isso que penso ser preciso interrogar-nos sobre o sentido do cinema nessa estratégia. Porquê o cinema e não, por exemplo, a poesia, como o foi no caso de Isou, que tinha sido tão importante para os situacionistas, ou porquê não a pintura, como para um dos seus amigos, Asger Jorn?

Creio que isso se deve à ligação estreita que existe entre o cinema e a história. De onde vem essa ligação, e de que história se trata?

Tal deve-se à função específica da imagem e ao seu carácter eminentemente histórico. É preciso especificar aqui alguns detalhes importantes. O homem é o único animal que se interessa às imagens enquanto tais. Os animais interessam-se bastante pelas imagens, mas na medida em que são enganados por elas. Podemos mostrar a um peixe a imagem de uma fêmea, ele irá ejectar o seu esperma; ou mostrar a um pássaro a imagem de outro pássaro para o capturar, e ele será enganado. Mas quando o animal se dá conta que se trata de uma imagem, desinteressa-se totalmente. Ora, o homem é um animal que se interessa pelas imagens uma vez que as tenha reconhecido enquanto tais. É por isso que se interessa pela pintura e vai ao cinema. Uma definição do homem, do nosso ponto de vista específico, poderia ser que o homem é o animal que vai ao cinema. Ele interessa-se pelas imagens uma vez que tenha reconhecido que não se tratam de seres verdadeiros. Um outro aspecto é que, como mostrou Gilles Deleuze, a imagem no cinema (e não apenas no cinema, mas nos Tempos modernos em geral) já não é algo de imóvel, já não é um arquétipo, quer dizer, algo fora da história: é um corte ele próprio móvel, uma imagem-movimento, carregada enquanto tal de uma tensão dinâmica. É essa carga dinâmica que se vê muito bem na fotos de Marey e de Muybridge que estão na origem do cinema, imagens carregadas de movimento. É uma carga deste gênero que via Benjamin naquilo a que chamava uma imagem dialéctica, que era para ele o próprio elemento da experiência histórica. A experiência histórica faz-se pela imagem, e as imagens estão elas próprias carregadas de história. Poderíamos considerar a nossa relação à pintura sob este aspecto: não se trata de imagens imóveis, mas antes de fotogramas carregados de movimento que provêem de um filme que nos falta. Era preciso restituí-las a esse filme (vocês terão reconhecido o projeto de Aby Warburg).

Mas de que história se trata? É preciso esclarecer que não se trata aqui de uma história cronológica, mas a bem dizer de uma história messiânica. A história messiânica define-se antes de mais nada por dois caracteres. É uma história da Salvação, é preciso salvar alguma coisa. E é uma história última, é uma história escatológica, em que alguma coisa deve ser consumada, julgada, deve passar-se aqui, mas num tempo outro, deve, portanto, subtrair-se à cronologia, sem sair para um exterior. É essa a razão pela qual a história messiânica é incalculável. Na tradição judaica há toda uma ironia do cálculo, os rabinos faziam cálculos muito complicados para prever o dia da chegada do Messias, mas não paravam de repetir que se tratavam de cálculos proibidos, pois a chegada do Messias é incalculável. Mas, ao mesmo tempo, cada momento histórico é aquele da sua chegada, o Messias é sempre já chegado, está sempre já aí. Cada momento, cada imagem está carregada de história, porque ela é a pequena porta pela qual o Messias entra. É esta situação messiânica do cinema que Debord partilha com o Godard das Histoire(s) du cinéma. Apesar da sua antiga rivalidade – Debord disse em 68 de Godard que ele era o mais tolo de todos os Suíços pró-chineses –, Godard reencontrou o mesmo paradigma que Debord tinha sido o primeiro a traçar. Qual é esse paradigma, qual é essa técnica de composição? Serge Daney, acerca das Histoire(s) de Godard, explicou que era a montagem: “O cinema procurava uma coisa, a montagem, e era dessa coisa que o homem do século XX tinha uma necessidade terrível”. É o que mostra Godard nas Histoire(s) du cinéma.



O carácter mais próprio do cinema é a montagem. Mas o que é a montagem, ou antes, quais são as condições de possibilidade da montagem? Em filosofia, depois de Kant, chama-se às condições de possibilidade de alguma coisa os transcendentais. Quais são então os transcendentais da montagem? Existem duas condições transcendentais da montagem, a repetição e a paragem. Isto, Debord não o inventou, mas fê-lo vir à luz, exibiu estes transcendentais enquanto tais. E Godard fará o mesmo nas suas Histoire(s). Já não temos necessidade de filmar, basta-nos repetir e parar. Esta é uma nova forma epocal por relação à história do cinema. Este fenômeno espantou-me bastante em Locarno em 1995. A técnica composicional não mudou, é ainda a montagem, mas agora a montagem passa para primeiro plano, e mostra-se enquanto tal. É por isto que se pode considerar que o cinema entra numa zona de indiferença em que todos os gêneros tendem a coincidir; o documentário e a narração, a realidade e a ficção. Faz-se cinema a partir das imagens do cinema.

Mas voltemos às condições de possibilidade do cinema, a repetição e a paragem. O que é uma repetição? Há na Modernidade quatro grandes pensadores da repetição: Kierkegaard, Nietzsche, Heidegger e Gilles Deleuze. Os quatro mostraram-nos que a repetição não é o retorno do idêntico, do mesmo enquanto tal que retorna. A força e a graça da repetição, a novidade que traz, é o retorno em possibilidade daquilo que foi. A repetição restitui a possibilidade daquilo que foi, torna-o de novo possível. Repetir uma coisa é torná-la de novo possível. É aí que reside a proximidade entre a repetição e a memória. Dado que a memória não pode também ela devolver-nos tal qual aquilo que foi. Seria o inferno. A memória restitui ao passado a sua possibilidade. É o sentido desta experiência teológica que Benjamin via na memória, quando dizia que a recordação faz do inacabado um acabado, e do acabado um inacabado. A memória é, por assim dizer, o órgão de modalização do real, aquilo que pode transformar o real em possível e o possível em real. Ora, se pensarmos nisso, trata-se também da definição do cinema. Não faz o cinema sempre isso, transformar o real em possível, e o possível em real? Podemos definir o já visto como o fato de “perceber algo do presente como se já tivesse sido”, e o inverso, o fato de perceber como presente algo que já foi. O cinema tem lugar nessa zona de indiferença. Compreendemos então porque o trabalho com imagens pode ter uma tal importância histórica e messiânica, pois é uma forma de projetar a potência e a possibilidade em direção ao que é por definição impossível, em direção ao passado. O cinema faz então o contrário do que fazem as mídias. As mídias dão-nos sempre o fato, o que foi, sem a sua possibilidade, sem a sua potência, dão-nos portanto um fato sobre o qual somos impotentes. As mídias adoram o cidadão indignado mas impotente. É o mesmo objetivo do telejornal. É a má memória, a que produz o homem do ressentimento.

Ao colocar a repetição no centro da sua técnica composicional, Debord torna de novo possível aquilo que nos mostra, ou melhor, abre uma zona de indecidibilidade entre o real e o possível. Quando mostra um trecho do telejornal, a força da repetição é tal que deixa de ser um fato consumado, e volta a ser, por assim dizer, possível. Nos perguntamos: “Como isto foi possível?” – primeira reação –, mas ao mesmo tempo compreendemos que sim, tudo é possível, mesmo o horror que nos fazem ver. Hannah Arendt definiu um dia a experiência final dos campos como o princípio do “tudo é possível”. É também nesse sentido extremo que a repetição restitui a possibilidade.



O segundo elemento, a segunda condição transcendental do cinema é a paragem. É o poder de interromper, a “interrupção revolucionária” de que falava Benjamin. É muito importante no cinema, mas, mais uma vez, não apenas no cinema. É o que faz a diferença entre o cinema e a narração, a prosa narrativa, com a qual se tem tendência a comparar o cinema. A paragem mostra-nos, pelo contrário, que o cinema está muito mais próximo da poesia que da prosa. Os teóricos da literatura sempre tiveram bastante dificuldades em definir a diferença entre a prosa e a poesia. Muitos elementos que caracterizam a poesia podem dar-se na prosa (que, por exemplo, do ponto de vista do número de sílabas, pode conter versos). A única coisa que se pode fazer na poesia e não na prosa são os enjambements e as cesuras. O poeta pode opor um limite sonoro, métrico, a um limite sintático. Não se trata apenas de uma pausa, mas de uma não-coincidência, uma disjunção entre o som e o sentido. Por isso Valéry pôde uma vez dar ao poema esta definição tão bela: “O poema, uma hesitação prolongada entre o som e o sentido”. É também por isso que Hölderlin pôde dizer que a cesura, ao parar o ritmo e o desenrolar das palavras e das representações, faz aparecer a palavra e a representação enquanto tais. Parar a palavra é subtraí-la do fluxo do sentido para a exibir enquanto tal. Poderíamos dizer a mesma coisa da paragem tal como Debord a pratica, enquanto constitutiva de uma condição transcendental da montagem. Poderíamos retomar a definição de Valéry e dizer do cinema, pelo menos de um certo cinema, que é uma hesitação prolongada entre a imagem e o sentido. Não se trata de uma paragem no sentido de uma pausa, cronológica, mas antes de uma potência de paragem que trabalha a própria imagem, que a subtrai do poder narrativo para a expor enquanto tal. É neste sentido que Debord nos seus filmes e Godard nas suas Histoire(s) trabalham com essa potência da paragem.

Estas duas condições transcendentais não podem nunca estar separadas, elas formam un sistema conjuntamente. No último filme de Debord há um texto muito importante logo no início: “Mostrei que o cinema se pode reduzir à esta tela branca, e à esta tela preta”. O que Debord entende por isto é precisamente a repetição e a paragem, indissolúveis enquanto condições transcendentais da montagem. O preto e o branco, o fundo em que as imagens estão tão presentes que nem as conseguimos ver, e o vazio em que não há imagem alguma. Existem aqui analogias com o trabalho teórico de Debord. Se tomarmos, por exemplo, o conceito de “situação construída” que deu nome ao situacionismo, uma situação é uma zona de indecidibilidade, de indiferença entre uma unicidade e uma repetição. Quando Debord diz que é preciso construir situações trata-se sempre de algo que se pode repetir e também algo de único.

Debord o menciona ainda no final de In girum imus nocte et consumimur igni, quando, em vez da tradicional palavra “Fim”, aparece a frase: “A retomar do início”. Há aqui igualmente o princípio que trabalha no próprio título do filme, que é um palíndromo, uma frase que se volta nela mesma. Neste sentido, há uma palindromia essencial no cinema de Debord.

Juntas, a repetição e a paragem realizam a tarefa messiânica do cinema de que falávamos. Esta tarefa tem essencialmente a ver com a criação. Mas não é uma nova criação depois da primeira. Não se deve considerar o trabalho do artista unicamente em termos de criação: pelo contrário, no fundo de cada ato de criação há um ato de des-criação. Deleuze disse um dia, acerca do cinema, que cada ato de criação é sempre um ato de resistência [O Ato de Criação por Gilles Deleuze]. Mas o que significa resistir? É antes de mais nada ter a força de des-criar o que existe, des-criar o real, ser mais forte que o fato que aí está. Todo ato de criação é também um ato de pensamento, e um ato de pensamento é um ato criativo, pois o pensamento define-se antes de tudo pela sua capacidade de des-criar o real.

Se esta é a tarefa do cinema, o que é uma imagem que foi assim trabalhada pelas potências da repetição e da paragem? O que muda no estatuto da imagem? É preciso repensar aqui toda a nossa concepção tradicional da expressão. A concepção corrente da expressão é dominada pelo modelo hegeliano segundo o qual toda a expressão se realiza numa mídia quer seja uma imagem, uma palavra ou uma cor, que no fim deve desaparecer na expressão acabada. O ato expressivo é consumado quando o meio, a mídia, já não é percebida enquanto tal. É preciso que a mídia desapareça no que nos dá a ver, no absoluto em que se mostra, que nele resplandece. Pelo contrário, a imagem que foi trabalhada pela repetição e pela paragem é um meio, uma mídia que não desaparece no que nos dá a ver. É o que eu chamaria de “meio puro”, que se mostra enquanto tal. A imagem dá-se a ver ela própria em vez de desaparecer no que nos dá a ver. Os historiadores do cinema assinalaram como uma novidade desconcertante o fato de que, em Monika de Bergman (1952), a protagonista, Harriet Andersson, fixa de repente o seu olhar na objetiva da câmara. O próprio Bergman escreveu a propósito desta sequência: “Aqui e pela primeira vez na história do cinema estabelece-se de súbito um contato direto com o espectador”. Desde então, a fotografia e a publicidade banalizaram este procedimento. Estamos habituados ao olhar da estrela de pornô que, enquanto faz aquilo que tem a fazer, olha fixamente a câmara, mostrando assim que se interessa mais pelos espectadores do que pelo seu partner.

Desde os seus primeiros filmes e de forma cada vez mais clara, Debord mostra-nos a imagem enquanto tal, isto é, e segundo um dos princípios teóricos fundamentais de A sociedade do Espetáculo, enquanto zona de indecidibilidade entre o verdadeiro e o falso. Mas existem duas maneiras de mostrar uma imagem. A imagem exposta enquanto tal já não é imagem de nada, é ela própria sem imagem. A única coisa da qual não se pode fazer imagem é, por assim dizer, ser imagem da imagem. O signo pode significar tudo, exceto o fato de estar a significar. Wittgenstein dizia que o que não se pode significar, ou dizer num discurso, o que é de alguma forma indizível, isso mostra-se no discurso. Existem duas formas de mostrar essa relação com o “sem-imagem”, duas formas de fazer ver o que já não há nada para ver. Uma é o pornô e a publicidade, que fazem como se houvesse sempre o que ver, ainda e sempre imagens por detrás das imagens; a outra a que, nessa imagem exposta enquanto imagem, deixa aparecer esse “sem-imagem”, o que é, como dizia Benjamin, o refúgio de toda a imagem. É nesta diferença que se articulam toda a ética e toda a política do cinema.

(Giorgio Agamben, «Le cinéma de Guy Debord» (1995), in Image et mémoire, Hoëbeke, 1998, pp. 65-76.)


Extraído de: Blog Intermídias

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