segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

A linguagem parece sonhar


Saussure, o pai da lingüística moderna, uma vez começou a estudar anagramas latinos - um corpo poético obscuro, usado em grande parte ocasionalmente - para ver que provas eles poderiam conter a respeito da natureza da linguagem. À medida que ele comparava os anagramas com outros tipos de poesia latina, começou a perceber anagramas nestes outros textos. Certas letras, sempre formando palavras que reforçavam o assunto do poema, estavam embutidas e padronizadas de acordo com a superfície lingüística dos textos. Quando ele investigou a prosa latina, também encontrou anagramas. Poesia latina medieval? Mais anagramas. Mesmo a poesia moderna, escrita por estudiosos, trazia tal sintoma. Seria uma conspiração bizarra, uma tradição passada silenciosamente de poeta a poeta, mas alheia à filologia? Saussure começou a agir de forma estranha. Escreveu uma carta a um professor de literatura clássica, que vivia na Suíça e era conhecido por seus versos em latim polido. "Por que sua poesia está cheia de anagramas?", perguntava Saussure. "O que está acontecendo?" Desnecessário dizer que ele não obteve resposta. Nesse ponto, Saussure cambaleou para trás como se estivesse sentindo a vertigem de cair num abismo. Ou a conspiração era real, ou então a própria linguagem era a fonte de tantos anagramas. A própria linguagem tinha uma espécie de inconsciente, um processo onírico, que se organizava em jogos sinistramente sagazes, de palavras sobre palavras, de palavras dentro de palavras, significativos anagramas ocultos, embutidos, inscritos em todo texto que ele examinava. Havia um nível de linguagem além da langue/parole, do signo e do significado? Ou ele estava enlouquecendo? Abalado, Saussure abandonou o projeto. (1)



Nota:


1 - Veja o estudo de Jean Starobinski (1979) sobre os cadernos não publicados de Saussure sobre anagramas, Words Upon Words: The Anagrams of Ferdinand de Saussure. (N. A.)



Extraído de:


Peter Lamborn Wilson - Chuva de Estrelas : o sonho iniciático no sufismo e taoísmo

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Leminski e o haicai




"Quatro anos depois, Paulo Leminski lança Distraídos venceremos, sua última obra poética em vida. O livro reúne cerca de trinta poemetos na seção "KAWA CAUIM, desarranjos florais". Harmonizando o idioma da terra de Wa (Japão) com o tupi, Leminski erige, com a precisão de quem domina a carpintaria poética, um pequeno e comovente oratório para o haicai."




cortinas de seda

o vento entra

sem pedir licença


(Leminski)




Texto e poema extraídos do livro boa companhia: haicais.


quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Sobre o materialismo



O materialismo deve ser uma forma de idealismo, já que está errado - também.


(Marshall Sahlins - Esperando Foucault, ainda - pg. 8)

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Chuva de Primavera



春雨やものがたりゆく蓑と傘  蕪村

harusame ya monogatari yuku mino to kasa

A viva conversa
Da capa e do guarda-chuva —
Chuva de primavera.

Buson




Extraído de: http://www.kakinet.com/caqui/antojapp.shtml

sábado, 28 de novembro de 2009

Outrem


"Pode ser absurdo que uma antropóloga social sugira ser possível imaginar um povo que não tenha sociedade. Contudo, o argumento deste livro é que, por mais útil para a análise que o conceito de sociedade possa ser, não justificaremos seu uso apelando para as contrapartes nativas. Na verdade, os antropólogos deveriam ser os últimos a contemplar tal justificação. Intelectuais formados na tradição ocidental não podem realmente esperar encontrar nos outros a solução para problemas metafísicos do pensamento do Ocidente. Igualmente absurdo, se refletirmos sobre isso, é imaginar que os que não participam dessa tradição irão de alguma forma focalizar suas energias filosóficas sobre questões como as da 'relação' entre a sociedade e o indivíduo."

(Marilyn Strathern - O gênero da dádiva - pg. 27)

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Homenagem a Lévi-Strauss na USP


Alunos da USP homenageiam Lévi-Strauss com Selvagens Trópicos, festa de despedida e aniversário

Nada de chororô ou liturgia. O que alunos da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP) escolheram para homenagear um dos mais ilustres ex-professores da casa, Claude Lévi-Strauss, que faleceu no último dia 30 de outubro e faria aniversário no dia 28 de novembro, próximo sábado, foi realizar uma festança gratuita, regada a cerveja vendida a R$ 1,50 e animada por sons bem brasileiros.

O nome do evento, Selvagens Trópicos, faz referência ao livro "Tristes Trópicos", publicado pelo antropólogo e filósofo francês em 1955 - uma etnografia romanceada que narra a experiência do autor entre grupos indígenas brasileiros.

O show da banda Totens & Tabus, formada por professores e alunos da Universidade de São Paulo, promete experimentos musicais intrigantes. Um samba-enredo para Lévi-Strauss, talvez? Ou uma bossa nova em Bororo, quem sabe? De qualquer forma, não será algo que ocorre ordinariamente nos corredores da Cidade Universitária.

Entrando no jogo, as garotas Jamille Pinheiro, Larissa Barcellos e Nana Ribeiro cuidam da discotecagem. Tropicalistas como Caetano Veloso, Os Mutantes e Tom Zé devem dar o tom no repertório, além do soul funk de Tim Maia, o sambalanço de Jorge Ben Jor e outras batucadas, acústicas e eletrônicas.

Serviço
Selvagens Trópicos
Data: 27/11, sexta-feira
Horário: 22h - ******* IMPORTANTE: Não-alunos da Universidade de São Paulo devem chegar à Cidade Universitária antes das 20h. ******
Local: Espaço Verde, no Prédio de Ciências Socias da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH)
Endereço: Av. Prof. Luciano Gualberto, 315, Cidade Universitária - São Paulo/SP
Cerveja a R$ 1,50
Entrada Franca

Banda
Totens & Tabus

DJs
Jamille Pinheiro
Larissa Barcellos
Nana Ribeiro

Se você é jornalista e deseja mais informações a respeito da Selvagens Trópicos, entre em contato pelo e-mail selvagenstropicos@gmail.com

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Claude Lévi-Strauss in memorian



Hoje o blog está de luto.

Por este motivo, reuni aqui alguns artigos a respeito do falecimento de Lévi-Strauss (cuja obra é bastante cidada neste blog, sendo de grande influência para os temas aqui tratados). Eu poderia ter colocado mais artigos e comentários, mas eram muitos e não tive tempo de ler todos. Quem quiser pode colocar links ou indicações de leitura na parte de comentários desta postagem.

Espero que gostem da homenagem, que, apesar de simples e tosca, é bastante sincera.



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Claude Lévi-Strauss, 1908-2009



From: Lydia Robin

Mes chers collègues,

J’ai la tristesse de vous annoncer la disparition de notre collègue Claude Lévi-Strauss, dans sa 101ème année.

Nous aurons prochainement l’occasion de nous retrouver pour lui rendre hommage.

Je vous prie de croire, mes chers collègues, en l’assurance de mes sentiments amicaux.

François Weil
—Lydia Robin
Secrétariat de la présidence
EHESS



Extraído de: Blog Savage Minds



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USP reconhece em Lévi-Strauss um de seus mais dignos fundadores


Valéria Dias / Agência USP


A reitora da USP, professora Suely Vilela, emitiu no início da noite desta terça-feira (3) uma mensagem em que expressa o pesar da instituição pela morte do etnólogo e antropólogo Claude Lévi-Strauss, ocorrido no último sábado, mas somente divulgado nesta terça-feira (3). Em 2 de setembro do ano passado, já em meio às comemorações dos 75 anos de fundação da USP, o Conselho Universitário (CO) aprovou a concessão do título de Doutor Honoris Causa ao mestre reconhecido internacionalmente como o pai do estruturalismo. “A Universidade de São Paulo reconhece em Claude Lévi-Strauss um de seus mais dignos professores fundadores, sobretudo por ajudar decisivamente, por meio de sua competência, à construção da grandeza de nossa Instituição”, expressa a reitora no texto.

Para a professora Sylvia Caiuby Novaes, do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, “a Universidade de São Paulo foi o início de uma carreira brilhante. Tivemos o privilégio de acolher Claude Lévi-Strauss”, aponta. Sylvia destaca que o professor contribuiu para que a antropologia passasse a ser uma disciplina de ponta dentro das Humanidades, não apenas no Brasil, mas em todo o mundo. Outra grande contribuição do antropólogo foi, segundo ela, colocar o pensamento indígena em pé de igualdade com qualquer pensamento encontrado na filosofia ocidental. “É importante citar isso num momento tão anti-indígena como este que estamos vivendo agora”, diz.

Sylvia lembra que Lévi-Strauss era um professor desconhecido, tinha menos de 30 anos quando aceitou integrar a missão que deu origem à USP, em 1934. Formado em Direito e Filosofia, acabou se decidindo pela Antropologia a partir da experiência que viveu no Brasil. “Ele ficou fascinado pelas populações indígenas que encontrou na viagem que fez pelo País. Após 20 anos dessa viagem, em 1955, ele publicou Tristes Trópicos, onde percebemos que ele era um jovem apaixonado pelas coisas que encontrou ao longo desta viagem.”

Sobre a morte do intelectual, Sylvia afirma que “na cabeça da gente ele não morre, mesmo porque a obra dele continua”. Ela cita que o pensamento de Lévi-Strauss é muito presente em outros antropólogos, como o brasileiro Eduardo Viveiros de Castro. “Existe uma continuidade na obra dele.”


Humanista


Para o professor Vagner Gonçalves da Silva, do Departamento de Antropologia da FFLCH, Claude Lévi-Strauss é um dos últimos grandes intelectuais do mundo, e pode ser enquadrado na categoria dos “gênios”. “A morte de Lévi-Strauss encerra um ciclo dos grandes heróis do pensamento. O mundo se tornará um lugar menos inteligente para se viver”, aponta, lembrando que além de sua importância enquanto teórico da antropologia, ele era também um grande humanista.

Vagner Gonçalves da Silva destaca que, em novembro de 1998, o Departamento de Antropologia fez uma homenagem aos 90 anos de Lévi-Strauss por meio do Seminário Lévi-Strauss e os 90 que reuniu especialistas na obra do intelectual francês. O material foi reunido e está disponível na internet. Segundo Silva, trata-se de um dos números mais requisitados da revista.

Em 2008, o departamento de Antropologia da FFLCH e o Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da FFLCH promoveram o ciclo de conferências Sentidos de Lévi-Strauss, no centenário do antropólogo. De acordo com a professora Sylvia Caiuby Novaes, a idéia dos organizadores do evento é também publicar este material.



Extraído de: http://www4.usp.br/index.php/institucional/17839-usp-reconhece-em-levi-strauss-um-de-seus-mais-dignos-fundadores



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Morre aos 100 anos o antropólogo Lévi-Strauss


Do UOL Notícias*
Em São Paulo

Atualizado às 15h46


O etnólogo e antropólogo estruturalista Claude Lévi-Strauss morreu na noite de sábado para domingo (1º) aos 100 anos, de acordo com um porta-voz da Escola de Estudos Avançados em Ciências Sociais de Paris, na França. Ainda não há informações sobre a causa da morte do antropólogo. O falecimento foi divulgado pela editora Plon.

Nascido em Bruxelas, na Bélgica, Lévi-Strauss foi um dos grandes pensadores do século 20. Ele, que completaria 101 anos no próximo dia 28, tornou-se conhecido na França, onde seus estudos foram fundamentais para o desenvolvimento da antropologia. Filho de um artista e membro de uma família judia francesa intelectual, estudou na Universidade de Paris.

De início, cursou leis e filosofia, mas descobriu na etnologia sua verdadeira paixão. No Brasil, lecionou sociologia na recém-fundada Universidade de São Paulo, de 1935 a 1939, e fez várias expedições ao Brasil central. É o registro dessas viagens, publicado no livro "Tristes Trópicos" (1955) que lhe trará a fama. Nessa obra ele conta como sua vocação de antropólogo nasceu durante as viagens ao interior do Brasil.

"Ele soube partir do empirismo para dialogar e colocar a antropologia em pé de igualdade com outras ciências humanas, como a filosofia. Lévi-Strauss é um autor fundamental", afirma Renato Sztutman, professor do Departamento de Antropologia da USP e mestre e doutor em Antropologia Social na área de etnologia indígena.

Exilado nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), Lévi-Strauss foi professor nesse país nos anos 1950. Na França, continuou sua carreira acadêmica, fazendo parte do círculo intelectual de Jean Paul Sartre (1905-1980), e assumiu, em 1959, o departamento de Antropologia Social no College de France, onde ficou até se aposentar, em 1982.

O estudioso jamais aceitou a visão histórica da civilização ocidental como privilegiada e única. Sempre enfatizou que a mente selvagem é igual à civilizada. Sua crença de que as características humanas são as mesmas em toda parte surgiu nas incontáveis viagens que fez ao Brasil e nas visitas a tribos de indígenas das Américas do Sul e do Norte.

O antropólogo passou mais da metade de sua vida estudando o comportamento dos índios americanos. O método usado por ele para estudar a organização social dessas tribos chama-se estruturalismo. "Estruturalismo", diz Lévi-Strauss, "é a procura por harmonias inovadoras".

A corrente estruturalista da antropologia, da qual Lévi-Strauss é o principal teórico, surgiu na década de 40 com uma proposta diferente da antropologia de viés funcionalista, predominante até então. "O funcionalismo se preocupava com o funcionamento de cada sociedade e em saber como as coisas existiam na sua função social. O estruturalismo queria saber do trabalho intelectual. Olhar para os povos indígenas e buscar uma racionalidade e uma reflexão propriamente nativa", diz Sztutman.

Suas pesquisas, iniciadas a partir de premissas linguísticas, deram à ciência contemporânea a teoria de como a mente humana trabalha. O indivíduo passa do estado natural ao cultural enquanto usa a linguagem, aprende a cozinhar, produz objetos etc. Nessa passagem, o homem obedece a leis que ele não criou: elas pertencem a um mecanismo do cérebro. Escreveu, em "O Pensamento Selvagem", que a língua é uma razão que tem suas razões - e estas são desconhecidas pelo ser humano."

Ele abriu um caminho para pensar a filosofia indígena, valorizar o lado intelectual dos povos estudados, e não ficar naquela coisa 'nós (ocidentais) temos uma grande teoria e eles não'. Lévi-Strauss abriu caminho para valorizar o aspecto intelectual de outras populações", acrescenta Sztutman.

Lévi-Strauss não via o ser humano como um habitante privilegiado do universo, mas como uma espécie passageira que deixará apenas alguns traços de sua existência quando estiver extinta.

Membro da Academia de Ciências Francesa (1973), integrou também muitas academias científicas, em especial européias e norte-americanas. Também é doutor honoris causa das universidades de Bruxelas, Oxford, Chicago, Stirling, Upsala, Montréal, México, Québec, Zaïre, Visva Bharati, Yale, Harvard, Johns Hopkins e Columbia, entre outras.

Aos 97 anos, em 2005, recebeu o 17o Prêmio Internacional Catalunha, na Espanha. Declarou na ocasião: "Fico emocionado porque estou na idade em que não se recebem nem se dão prêmios, pois sou muito velho para fazer parte de um corpo de jurados. Meu único desejo é um pouco mais de respeito para o mundo, que começou sem o ser humano e vai terminar sem ele - isso é algo que sempre deveríamos ter presente".






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Claude Lévi-Strauss (nota da ABA)

A ABA tem o pesar de informar a seus associados a morte de Claude Lévi-Strauss, um dos mais destacados antropólogos da atualidade, no dia 01 de novembro, aos 101 anos de idade.





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O album do UOL traz belas imagens do e com o antropólogo

Há também a matéria do Estadão

Alguns comentários acerca da morte de Lévi-Strauss e, embaixo, um link com entrevistas interessantes (O Globo)

Para quem lê em francês, há trambém os seguintes artigos:

Entrevista com Roland Pourtier, geógrafo da Sorbonne

Artigo no Le Monde, com comentários de diversas pessoas, incluindo Philippe Descola e Nicolas Sarkozy

Entrevista com Françoise Héritier

Lévi-Strauss e a literatura

Editorial do Le Monde

No site do Le Parisien há mais informações e comentários.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

O Portador



Antonio Candido



É preciso afastar, em relação a pensadores como Nietzsche, o conceito de guerra, propagandístico ou ingênuo, que o encara como uma espécie de Rosenberg mais fino e procura ver no seu pensamento o precursor do nazismo. Esse antipangermanista con­victo deve ser considerado o que realmente é: um dos maiores inspi­radores do mundo moderno, cuja lição, longe de estar exaurida, pode servir de guia a muitos problemas do humanismo contemporâneo.

Mesmo rejeitando o conteúdo das suas idéias, devemos reter e ponderar a sua técnica de pensamento, como propedêutica à supe­ração das condições individuais. “O homem é um ente que deve ser ultrapassado”: disse ele; e o que propõe é ultrapassar incessantemente o ser de conjuntura, que somos num dado momento, a fim de buscar estados mais completos de humanização. Talvez pudéssemos indicar os rumos da sua propedêutica dizendo que visa a uma expansão mais completa das energias de que somos portadores, e nesse sentido é elucidativa a preocupação de ascese, de exercício preparatório, que atravessa toda a sua obra. Por isso invoca ou sugere uma certa dureza e a abolição da autocomplacência: ver duro e cru, em si e nos outros, para ser capaz de ver justo e bom, posto que justiça e bon­dade repousam sobre a energia com que superamos as injunções, as normas cristalizadas, tudo enfim que tende a imobilizar o ser em posições já atingidas e esvaziadas de conteúdo vivo. O que é tacita­mente aceito por nós; o que recebemos e praticamos sem atritos in­ternos e externos, sem ter sido por nós conquistado, mas recebido de fora para dentro, é como algo que nos foi dado; são dados que incor­poramos à rotina, reverenciamos passivamente e se tornam peias ao desenvolvimento pessoal e coletivo. Ora, para que certos princípios, como a justiça e a bondade, possam atuar e enriquecer, é preciso que surjam como algo que obtivemos ativamente a partir da superação dos dados. "Obtém a ti mesmo" - é o conselho nietzschiano que o velho Egeu dá ao filho, no Teseu, de Gide. Para essa conquista das mais lídimas virtualidades do ser é que Nietzsche ensina a combater a complacência, a mornidão das posições adquiridas, que o como­dismo intitula moral, ou outra coisa bem soante. Na sua concepção há uma luta permanente entre a vida que se afirma e a que vegeta; parecia-lhe que esta era acoroçoada pelos valores rotinizados da civi­lização cristã e burguesa.

Realmente, se submetermos à análise rigorosa a maneira por que damos abrigo aos valores espirituais, veremos que em nossa atitude há mais de comodismo e flacidez moral do que propriamente crença ativa e fecundante. Aceitamos por via de integração, participação submissa no grupo, tendendo a transformar os gestos em simples repetição automática. E fazemos isso para evitar as aventuras da per­sonalidade, as grandes cartadas da vida, julgando pôr em prática va­lores conquistados por nós mesmos. Ora, a obra de Nietzsche nos pretende sacudir, arrancar deste torpor, mostrando as maneiras pelas quais negamos cada vez mais a nossa humanidade, submetendo-nos em vez de nos afirmarmos. Encarada assim, a exaltação do homem vital e sem preconceitos vale, de um lado, como retificação do huma­nitarismo freqüentemente ingênuo do século XIX; de outro, como reivindicação da complexidade do homem, contra certas versões racionalistas e simplificadoras.

Com efeito, ele afirma longamente em sua obra (de modo quase sistemático na primeira parte de Além do bem e do mal, por exemplo) que o homem é mais complexo do que supõem as normas e con­venções. Bem antes das modernas correntes da psicologia, analisou a força e importância dos impulsos de domínio e submissão, con­cluindo que há em nós um animal solto que também compõe a per­sonalidade e influi na conduta. Naquela obra, insiste sobre a pre­sença, no tecido da vida humana, dessas componentes que a moral e a convenção procuram eliminar, depois de as haverem condenado.

A sua teoria da consciência como superfície, afloramento de obs­curidades que não se pressentem, anuncia a psicanálise, como podemos ver nas longas exposições da Vontade de poderio. Sob este ângulo, e apesar do desvirtuamento da expressão, o super-homem aparece como tipo superiormente humano, - um ente que consegue manifestar certas forças de vida, mutiladas em outros por causa da noção parcial que a psicologia e a moral convencionais oferecem de nós. Em meio à hipocrisia, à debilidade da consciência na burguesia européia do fim do século, ao humanitarismo manhoso com que procurava adormecer o sentimento de culpa, Nietzsche assume por vezes uma estatura de justiceiro. E um exemplo da ironia que espreita na posteridade as idéias dos filósofos é o fato de muitas dessas vir­tudes de dureza propedêutica terem sido encarnadas, no século xx, por uma raça de homens que ele sempre considerou progênie de escravos. Na elite revolucionária que implantou o socialismo na Rússia, encontravam-se, como a realização impressionante duma profecia, as qualidades de implacável retidão que atribui, em Vontade de poderio, ao "Legislador do Futuro", - que poda sem dó a fim de favorecer a expansão plena, e cuja dureza aparente é, no fundo, amor construtivo pelos homens.

Nele, porém, esta atitude só adquire significado reposta no con­junto da obra, - naquela mistura, tão sua, de fervor e irreverência, destruição raivosa e júbilo construtivo, que é a única possibilidade do nosso tempo e ele anteviu como profeta. Para a opinião domi­nante, a sua crítica violenta fez dele um personagem incômodo, ante o qual se fecham as portas da cidade, como as que, na parábola final de Humano, demasiado humano, rejeitam o peregrino para a noite do deserto. Ele vinha romper uma série de hábitos tacitamente acei­tos, e mostrar que a própria filosofia não dava mais conta das obri­gações para com a vida.

Talvez se possa dizer, com efeito, que a partir do século XVIII e até o nosso, ela cuidou mais da natureza do espírito e das condições do seu funcionamento, que do seu caráter de aspecto da atividade hu­mana total. Doutro lado, analisou de preferência tudo que condi­ciona e resulta do comportamento; raras vezes desceu às suas raízes vivas. Semelhante tarefa coube não raro à arte, cuja importância como forma de conhecimento não decresceu no mundo moderno, como se poderia pensar à primeira vista. A acuidade psicológica, por exemplo, não se confunde com a competência dos especialistas, e deve ser buscada menos neles do que em obras como as de Dostoievski, Proust, Pirandello ou Kafka; e não é de estranhar que o maior psicólogo do nosso tempo, Freud, seja uma espécie de ponte entre o mundo da arte e o da ciência; entre os processos positivos de análise e a intuição estética.

Nietzsche se situa no universo dos psicólogos artistas, e daí de­corre o significado central da sua obra. Enquanto algumas e por muitos lados melhores tendências do pensamento oitocentista pro­curavam resolver o problema da vida em sociedade criticando as condições de existência, ele tentou atingir diretamente o núcleo da personalidade. Se Marx ensaiava transmudar os valores sociais no que têm de coletivo, ele ensaiou uma transmutação do ângulo psi­cológico, - do homem tomado como unidade duma espécie, pela qual é decisivamente marcado, sem desconhecer, é claro, todo o equipamento de civilização que intervém no processo. São atitudes que se completam, pois não basta rejeitar a herança burguesa no nível da produção e das ideologias; é preciso pesquisar o subsolo pessoal do homem moderno tomado como indivíduo, revolvendo as convenções que a ele se incorporam e sobre as quais assenta a sua mentalidade.

Daí a conseqüente transmutação dos valores morais. Discípulo dos grandes analistas franceses, apaixonado de Stendhal e Dostoievski, dando uma sentença de Pascal por toda a metafísica alemã, continua os grandes investigadores da conduta, concebida como arte. O seu objetivo é lançar as bases de uma nova ética, acessível aos homens que se obtêm, - homens superiores que alargarão até os outros aquilo que conquistaram penosamente, cauterizando em si a herança de uma ci­vilização desvirtuada. "É certo que todos nós temos laços e afinidades que nos ligam ao santo, assim como um parentesco espiritual nos vincula ao filósofo e ao artista”, - diz numa das Considerações intem­pestivas. Em conseqüência, todo progresso no sentido da realização do super-homem significa riqueza coletiva, na medida em que atuam essas afinidades secretas que, ligando-o a todos, a todos enriquecem pela comunicação da seiva.

Para favorecer o aparecimento dos homens superiores, é preciso alterar o modo de encarar a vida e o conhecimento. O ideal nie­tzschiano seria o pensador que passeia livremente pela vida e recusa considerar a atividade criadora uma obrigação intelectual; o homem que, para fecundar a si e aos outros, suprime o hiato existente as mais das vezes entre conhecer e viver.

No belo trecho final d'A irreligião do futuro, Guyau chama ao filó­sofo - amigo do desconhecido: cet ami de l'inconnu. Ele é, com efeito, irmão do aventureiro, e não deve renegar o parentesco vivificante. Enquanto um se desapega da estabilidade e da rotina para obter em torno de si a mudança permanente das pessoas, lugares ou situações, outro opera de maneira semelhante no terreno do espírito, jogando fora convicções, crenças, noções, para obter alguma coisa nova ao cabo dessas rejeições múltiplas e por vezes fatais. Ambos atiram lenha à fogueira, aquecendo-se ao calor de coisas arrancadas à sua norma de vida: fogueira da existência ou fogueira do pensamento. Em muitos casos, ambas.


Vindo após séculos de filosofia catedrática, Nietzsche se revoltou violentamente contra a mutilação do espírito de aventura pela ofi­cialização das doutrinas. E a seu modo foi um aventureiro, não só na existência agitada e ambulante, à busca de lugares novos, emoções renovadas, (como alguém que necessita atritar-se com o mundo para despedir faíscas de vida), mas também no pensamento, à busca de ângulos novos, posições inexploradas, renovando sem parar as técnicas do conhecimento. A intervenção feliz de um gênio familiar impediu sempre as suas tentativas de amarrar as idéias em sistemas amplos e fechados (1). Exprimiu-se de preferência em trechos breves, aforismos e cânticos, a fim de que tudo o que borbulha não fosse canalizado pelo desenho geométrico dos tratados; e para que a filosofia não renunciasse ao privilégio da permanente aventura, a troco da estabilidade que se obtém fechando os olhos ante a fuga vertiginosa das coisas. O tipo de pensador nietzschiano é o Peregrino, o Wanderer, cuja sombra se projeta pelos quatro cantos e nunca vende a alma ao estável, ao tranqüilo, porque deseja manter-se fiel ao desconhecido, enfrentando-o com a coragem da aventura. A men­cionada página final de Humano, demasiado humano (1ª parte) define este repto permanente da filosofia, e é das mais belas que se escreveram sobre o destino do pensador, rejeitando a segurança ilu­sória de que se nutrem os homens médios, para não permanecer de olhos baixos, cegos em meio à vida que estua no desconhecido, ofe­recendo aventuras que glorificam e consomem:

“Quem atingiu dalgum modo a liberdade da razão, não se pode considerar na terra outra coisa que um Peregrino, embora não viajante rumando para uma meta final, - pois esta não existe. Contemplará e terá os olhos abertos para tudo o que acontece no mundo; não ligará o coração em definitivo a nada de único; deve haver nele algo erradio, pois a sua alegria está no mutável e no inconstante. Por certo cairão noites penosas sobre um homem desses, - quando estiver cansado e encontrar fechadas as portas da cidade, que lhe deveria dar repouso. Pode ser, ainda mais, que o deserto chegue até elas, como no Oriente, e as feras ululem, ora perto, ora longe, e um vento forte se eleve, e os salteadores lhe roubem os animais de carga. Desce então uma noite terrível, como um segundo deserto no deserto, e o Peregrino se sentirá exausto no coração. Quando o sol levantar, abrasando como a divindade da ira, abre-se a cidade, e nas faces dos habitantes ele verá talvez mais deserto, mais sujeira, mais embuste e mais insegurança do que fora de portas, - e o dia será quase pior do que a noite. Isto pode, na verdade, ocorrer a um Peregrino; mas depois virão, como recompensa, manhãs deleitosas, noutra paragem e noutro dia, onde, através do dilúculo, verá bandos de musas bailarem perto, na névoa das montanhas; onde, em seguida, quando passear à sombra das árvores, na serenidade da manhã, cair-lhe-ão, dentre os ramos e a folhagem, coisas boas e claras, dádivas dos espíritos livres, que se acomodam bem, como ele, nos montes, florestas e solidões, e são, como ele, de maneira ora alegre, ora pensativa, pe­regrinos e filósofos. Oriundos do mistério da madrugada, pensam no que pode fazer tão pura, luminosa, jovialmente transfigurada a fisionomia do dia entre a décima e a décima segunda pancada do sino: andam a buscar a Filosofia da Manhã.”

Sob esta roupagem alegórica, sob a graça deste estilo a que a tradução retira o aspecto por assim dizer miraculoso, Nietzsche é eminentemente um educador. Propõe sem cessar, como aqui, uma série de técnicas libertadoras, levando-nos ao paradoxo de pensar, como Gide, nos Pretextos, que a sua "influência (...) importa mais do que a sua obra". Talvez seja verdade, grata a quem exclamou na Gaia Ciência: "Para que serve um livro que não for capaz de nos trans­portar além dos livros?" Os seus conduzem para o terreno da aven­tura espiritual; livros de movimento, que têm um pacto misterioso com a dança, elemento-chave do seu pensamento:

“Há escritores que, pelo fato de representarem o impossível como possível, e falarem do que é moral e genial como se ambos não passassem de fantasia, capricho, provocam um sentimento de alegre liberdade, como se o homem se pusesse sobre a ponta dos pés e, graças a um júbilo interior, fosse obrigado literalmente a dançar." (Humano, demasiado humano)

É claro que os seus livros, que ensinam a dançar, não emanam de um filósofo profissional, mas de alguém bastante acima do que nos habituamos a conceber deste modo. Como poucos, em nosso tempo, é um portador de valores, graças ao qual o conhecimento se encarna e flui no gesto de vida. "Aqui, a certeza é um jogo; dir-se-ia que o conhecimento encontrou o seu ato, e que de repente a inteligência aceita as graças espontâneas.” (Valéry)

Há, com efeito, seres portadores, que podemos ou não encontrar, na existência quotidiana e nas leituras que subjugam o espírito. Quando isto se dá, sentimos que eles iluminam bruscamente os cantos escuros do entendimento e, unificando os sentimentos desparelhados, revelam possibilidades de uma existência mais real. Os valores que trazem, eminentemente radioativos, nos trespassam, deixam translúcidos e não raro prontos para os raros heroísmos do ato e do pensamento. Geralmente, ficamos ofuscados um instante quando os vemos e, sem força para os receber, tergiversamos e nos desviamos deles. A opaci­dade se refaz, então, a mediania recobra o domínio e só resta a lem­brança, de efeitos variáveis. Os coevos lobrigavam chamas do inferno na barra da túnica de Dante; nos nossos olhos resta igualmente a nostalgia do reino perdido, como no soneto de Antero de Quental:

E assentado entre as formas imperfeitas,
Para sempre fiquei pálido e triste.

Os portadores, que eletrizaram um instante, por via da partici­pação misteriosa de que fala Nietzsche, esses, continuam, como ele próprio continuava, irrequietos e irremediáveis.




Entretanto, embora nos iluminemos apenas um instante e os por­tadores sigam, o que seria da vida e do pensamento se não houvesse oportunidades semelhantes? As idéias e valores existem ante nós como alvos inatingíveis, e o nosso destino é tender a eles. Por isso a vida é uma tendência sem fim, excetuados os momentos de plenitude que suspendem a corrente do tempo. Não obstante, enquanto per­manecermos de um lado, e os valores de outro, o esforço e a lucidez da nossa visão serão mais ou menos frouxos. Na vida, só sentimos a realidade dos valores a que tendemos, ou que pressentimos, quando nos pomos em contacto com certos intermediários, cuja função é encarná-los, como portadores que são. A abstração e o sentimento adquirem vida (la connaissance a trouvé son acte, diria Valéry) e somos capazes de sentir plenamente, viver os valores. Ao contrário da vida, que dispersa, os portadores condensam e unificam extraor­dinariamente; daí se imporem como um bloco e fazerem ver a vida como um bloco, que nos afasta por um momento da mediania e impõem uma necessidade quase desesperada de vida autêntica.

"Os homens necessitam constantemente de parteiras". A teoria do super-homem é o conjunto de técnicas necessárias, segundo Nietzsche, para formar estas parteiras de que fala. A profundidade do seu des­conhecido humanismo provém da decisão fundamental de nada conceber na vida se não for como encarnação de valor, corporizado na presença humana. E para encerrar estas notas sobre um dos maiores portadores do nosso tempo, nada mais oportuno que a citação de um dos seus escritos de mocidade:

“Os gregos eram o oposto de todos os realistas, porque, a falar verdade, só acreditavam na realidade dos homens e dos deuses, e consideravam a natureza inteira como uma espécie de disfarce, de mascarada e metamorfose desses homens-deuses. Para eles, o homem era a verdade e essência das coisas; o resto não passava de fenômeno e miragem.”

Na nossa época, ao se abrir a primeira fase da história em que será preciso reorganizar o mundo sem apelo ao divino, o que se poderia dizer de melhor para instalar o homem na sua pura humanidade?

Recuperemos Nietzsche.


Diário de São Paulo
/ 1946




NOTAS


1 - Hoje, após os trabalhos e a edição de Karl Schlechta, sabemos com certeza que a Vontade de poderio, como foi publicada, sobretudo nas últimas edições, chamadas completas, não passa duma ordenação arbitrária de fragmentos que não haviam sido destinados a qualquer obra sistemática. O sistema e suas implicações capciosas nasce­ram do interesse fraudulento de sua irmã e respectivos colaboradores, ingênuos ou cúmplices conscientes. (Nota de 1959)

Fonte:
Candido, Antonio. "O Portador" in: O Observador Literário, ed. Ouro sobe Azul. Rio de Janeiro, 2004.

domingo, 13 de setembro de 2009

Do tédio ao mundo


A música punk nos ensinou que o tédio era um guia bem confiável para a identificação de todas as formas de conhecimento que eram irrelevantes para entender o mundo que viamos ao nosso redor e o nosso lugar nele.

(Peter Gow - An Amazonian myth and its history)





Tradução livre, feita para o blog. Abaixo, o orignial:


(…) punk music had taught us that boredom was a very reliable guide to the identification of all forms of knowledge that were irrelevant to understanding the world we saw around us and our places within it. (Oxford University Press, pg. 5)

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Os ciclos da vida, para & por Lew Welch


For/From Lew

Lew Welch just turned up one day,
live as you and me. "Damn, Lew" I said,
"you didn't shoot yourself after all."
"Yes I did" he said,
and even then I felt the tingling down my back.
"Yes you did, too" I said—"I can feel it now."
"Yeah" he said,
"There's a basic fear between your world and
mine. I don't know why.
What I came to say was,
teach the children about the cycles.
The life cycles. All other cycles.
That's what it's all about, and it's all forgot."




(Gary Snyder)